segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Rocketman, de Rique Ferrári




Por Adriane Garcia


Surpresa boa me foi o livro Rocketman (ed. Patuá), de Rique Ferrári. A edição, além de bonita, com 22 ilustrações produzidas por tatuadores, traz uma poesia que nos proporciona, no mínimo, duas viagens.

A primeira delas, a viagem a que um bom livro, por si só, nos leva. As segunda e demais viagens nos transportam para vários países da América do Sul: Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia. Em Rocketman, Rique Ferrári elabora uma geografia afetiva, onde o olhar perscruta e refaz as paisagens, atenta-se para detalhes que só a poesia poderia ver e dar a ver.

Nessa chave generosa daquele que possui e reparte, Rocketman emociona. São camadas de cores. O olhar deste poeta é atento à luz nas cidades, especialmente à luz solar. Em consequência, sua poesia possui amplidão e privilegia a imagem. Do cenário para dentro, de dentro para fora, verdadeira usinagem que se manifesta em versos: o desenho tanto pode se dar na pedra, na arquitetura, nos muros, quanto na pele. As cores (com predominância para o amarelo) são uma presença recorrente nesta poesia e um símbolo da diversidade humana. Há algo de holístico a ser aprendido: “ – não estamos na natureza, somos a natureza – ” , na transmutação da noite para o dia, o próprio homem se transforma.

Viajar é abrir horizontes, contatar culturas. O bom viajante reflete, repensa, traz para vida o antes impensado do outro. Um viajante atento desfaz preconceitos, pois viajar é uma das melhores maneiras de conhecer. Rocketman faz dessas viagens o motor para a sensibilidade. Elementos corriqueiros, como a chuva, não lhe passam despercebidos. O olhar de um viajante precisa ter o frescor infantil para aproveitar a novidade. O poeta, melhor que ninguém, possui esse olhar infantil, que é também o olhar do sábio: “sabe-se desde os pré-colombianos: o sol marca as horas, a chuva o tempo”.

Utilizando-se de versos longos, Rique Ferrári lida à vontade com a linguagem, permitindo o pensamento solto, como se deixasse até certo ponto um fluxo. Contudo, os poemas são bem amarrados, sabem onde querem chegar, mesmo quando confessam não saber, caso do último poema, homônimo da coletânea. Também é de se notar a maneira como sua poesia é brincante, lúdica, com onomatopeias, ironia e citações por vezes inusitadas; em uma palavra muito usada pelo próprio poeta, Rocketman tem uma poesia “transante”.

Tendo o cenário e a viagem como gatilho, Rique Ferrári desenvolve uma poesia que passa pelos temas do conflito interior, da observação do mundo, da contemplação, da constatação da desigualdade social, da guerra e da violência promovida pelos colonizadores, dos gestos do cotidiano e da simplicidade como peça chave para viver bem, da importância da imaginação e do sonho, das indagações acerca do nosso ser/estar no mundo e do avesso das coisas. Se a viagem nos deixa tanto, também deixamos nas viagens nossos resquícios.

Rocketman é uma viagem de foguete para confirmar a frase de Gagarin, “a Terra é azul”, e para acrescentar que é preciso que deixemos que a luz amarela do Sol nos invada. Uma viagem de foguete pode dar a impressão de ser rápida, mas Rique Ferrári dá direito a belas paradas, ainda que nos confesse (os poetas são terríveis) uma verdade tirada do Mistério: “o mundo é só um dia”.


confissão

roubei duas coisas ontem

as quais, obviamente, não posso revelar aqui

se me apreenderem nos encontros calmos do meio
terei constitucionalmente o direito de permanecer calado,
o qual já o faço por dever, apenas deslizando nas leituras
escutando o som de vvvvvvvvvv
ou zzzzzzzz da minha própria respiração
(a depender de gripes)

infelizmente a ladroagem é uma arte não-reconhecida pelos noticiários

o índice de roubos mente
já que a maioria dos furtos é desapercebida

e nesta categoria estão chicletes, isqueiros, bebidas, principalmente

o guiness book dos roubos também mente
não foi o depósito Knightsbridge, em Londres, o maior furto da história
foram as terras;
a dizer, os colonizadores e colonizados, você sabe

no entanto, pode-se roubar algo ruim de alguém bom:
um sentimento podre, um desassossego de domingo, uma fúria ao patrão
e assim, na bela arte fina, além do ladrão não ser preso
ainda liberta a queridíssima vítima

está na categoria dos pequenos furtos leves
que ou cabem no bolso ou na consciência.



***

Rocketman
Rique Ferrári
Poesia
ed. Patuá
2017












terça-feira, 6 de novembro de 2018

Começa em mar, de Vanessa Maranha




Por Adriane Garcia



Começa em mar (ed. Penalux), romance da escritora Vanessa Maranha, traz para bem perto do leitor mais de uma viagem. Não só a viagem a que um bom livro leva, mas a própria viagem que a personagem Alice Zuma empreenderá. Filha de mãe espanhola e pai português, fugidos do salazarismo, a criança Alice se vê refugiada em uma ilha da Bahia. Ali começará sua história de inadaptação, cujo sentimento constante será o do exílio.

Os pais de Alice, no Brasil, não se adaptam. O conflito é interessante, pois mistura humilhação secreta com externação de sentimento de superioridade. O pai, com o tempo, definha, cada vez mais “diminuto”. A mãe insiste em narrar as glórias do passado europeu, enquanto se recusa a partilhar dos hábitos locais, inclusive não vestindo a filha como as outras crianças. Alice irá para a escola com a indumentária espanhola, mesmo que isso lhe aumente a inadequação de uma infância visivelmente forasteira. Essa infância determinará o cenário de Alice, esteja ela onde estiver: o não-lugar.

Simultaneamente à figura do pai que se enfraquece até desparecer, a mãe vai se “emasculando” naquilo em que ele se omite e retira; autoritária e cruel: “Para Concha, sofrimento era pedagogia (...)”. A influência (ou a falta de influência) do pai medíocre será determinante para o modelo de casamento da filha, cujo marido, também medíocre, escreve livros que ninguém lerá, preso no porão do hotel, agora, negócio em que Alice ganha a vida.

Assim como a incompletude está presente desde o início da narrativa, o mar é o constante contraponto: Alice sabe que ele é a possibilidade de encontro, chegada e partida e nele deposita esperanças de curar uma vida inteira de faltas.

Deste modo, planeja partir e descobrir suas origens na Ibéria, mas, inexorável, acaba por descobrir que também não pertence à Europa. No entanto, é em pleno mar e somente nele, a bordo de um navio, que Alice descobre uma natureza sexual desconhecida, sua sexualidade libertina, farta como as águas do oceano, onde é absoluta senhora de si e de seu corpo.

É interessante notar o destaque das personagens femininas em Começa em mar, todas trazendo relacionamentos conflituosos entre si e seus homens, entre si e seus filhos; também entre patroas e empregadas: “não se pode amar quem nos chefia, é antinatural”, sogra e nora. Situações muito próprias da experiência das mulheres como maternidade, estupro, aborto, objetificação são abordadas.

A linguagem se aproxima da prosa poética, às vezes trazendo construções parecidas com o português de Portugal; utilizando, amiúde, a inversão sintática. Uma história envolvente sobre despertencimento e solidão, ainda que nossos pés estejam em terra e que uma multidão nos acompanhe. Começa em mar também fala do desejo humano pela volta ao princípio. É a água o nosso primeiro lugar.

A ideia era atirar-se no mar, tornar à água, ninguém nesse mundo suspeitava que em Jordana tal intenção fermentasse tão lenta e longamente. Eram planos que desenhava desde muito antes, o perigo, nela, jazia acomodado, sem iminências nem rompantes, uma fera dormente, delicadamente alimentada em autofagia, de pouco em pouco a devorando por dentro.
A Jordana sempre sentira viver uma vida que não lhe pertencia. Nascida em negativo. Ainda mulher. Muito olho contra, quem sabe perecesse semente mesmo vingasse não. Desenvolvida para não ser. A mulher era só superfície de alisar. A mulher era vaso onde despejar tremores líquidos, sua carne de fundo infinito aberta em rasgo. Pra baixo de réptil, imbecil, amordaçar-lhe a sua muita fome.” (pg. 120)


***
Começa em mar
Vanessa Maranha
Romance
ed. Penalux
2017
Menção honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016.