quinta-feira, 11 de julho de 2019

Fundamentos de ventilação e apneia – de Alberto Bresciani


Fundamentos de ventilação e apneia – de Alberto Bresciani


Por Adriane Garcia


Ponho a cabeça para fora
da noite,
mas o que vejo
ainda não é dia.

(Alberto Bresciani)


Releio Fundamentos de ventilação e apneia (ed. Patuá), do poeta Alberto Bresciani. Dividido em duas partes, Ventilação espontânea e Apneia, o livro traz 76 poemas de grande beleza, riqueza de imagens, burilamento da palavra e profundidade.

A respiração, nosso primeiro movimento de troca com o mundo, inicia o ciclo inevitável de dar e receber. Recusar-se a esse exercício é encerrar o ciclo de vida como o conhecemos, ou seja, o ciclo respiratório. O pulmão é o órgão vital que nos submete ao contato sutil com o mundo. Se pela pele podemos evitar o contato indesejado, com o pulmão, a voluntariedade de não se comunicar com o mundo exterior significaria um suicídio, lento ou não.

Ocorre que a respiração, o exercício de dar e receber, pode ser harmônica ou desarmônica e seria muito fácil se aquilo que está dentro e aquilo que está fora permitissem fluir plenamente – estar vivo poderia significar ser feliz. Não à toa, na medicina chinesa, o sentimento relacionado ao adoecimento do pulmão é a tristeza. Não à toa, místicos e alguns cientistas alardeiam a prática da meditação (cuja base é inspirar, expirar) como solução para o reequilíbrio de nosso estar no mundo.

Ao escolher falar da respiração como centro temático de Fundamentos de ventilação e apneia, Alberto Bresciani, cuja poesia gira em torno da precariedade do humano, da incomunicabilidade, da inconsciência do sentido da vida (se é que o há) e da inadequação, vai direto ao ponto agônico. Viver e respirar são sinônimos para plantas e animais; animais diversos que, no ar ou na água, o poeta traz para figurar a linguagem, para transformar em literatura uma questão absolutamente universal.

Da apneia, depreende-se o movimento voluntário de ficar sem ar. Para alcançar outros territórios, o dos peixes, por exemplo. O ser humano pode treinar a apneia, ficar momentaneamente sem respirar – passar dos limites pode levar à morte – usando apenas o oxigênio já capturado nos pulmões e no diafragma para frequentar outros cenários, interromper a troca para alcançar outra visão. A apneia de Alberto Bresciani é a poesia. Em Habitat I, o nosso ato mais ancestral vai de encontro à origem da vida, que os poetas não sabem (e sabem):

Guardei sob a pele
todos os peixes, as conchas,
anêmonas, veleiros antigos
e recuperados aos sargaços

Ninguém conheceu
os oceanos que devoravam
as moças e os rapazes
de olhos castanhos

O silêncio da maré baixa
sabe o doce
de frutas selvagens,
um mundo híbrido,
primeiro, anfíbio

À custa de nomes marinhos,
sobrevivo
Aprendi a respirar na água.


Porém, contraditoriamente, respirar no nossa habitat “natural” surge como enorme esforço:

Então sobe, engole ar, arranca ar,
aceita armas, palavras de gente
distante, curativos no que se foi
Sobe, sai da água, tem asas
peixe-voador, tem forma, a chave,
uma porta, agora pernas, ouve,
são os verdes deuses da água,
sente a porta, pode e vai abrir.



A troca efetuada em um mundo marcado pela violência e pelo medo pode levar à síndrome de pânico, que se apresenta frequentemente sob a forma de falta de ar. A apneia também pode se dar de forma involuntária, durante o sono ou a vigília:

Surto

O que é essa trava
no meio da respiração?

Houve erro, desvio
do centro eletromagnético

orientador de tartarugas
homens e tubarões?

Dizem os manuais
que o surto não passa

de dez minutos
: o tempo certo

para cortar
os pulsos.

Trocar com o mundo é muito mais complexo do que dar gás carbônico e receber oxigênio. Toda a dinâmica da vida interior e exterior precisa encontrar um ritmo de menor dano. Não sabemos fazê-lo. Talvez a história humana seja a história da nossa respiração difícil, inconsciente, inconsequente, que torna o planeta mais e mais irrespirável. A tristeza atinge até os lemingues, que passam a saltar dos prédios, traindo o próprio DNA. Se Alberto Bresciani nos coloca junto dos animais não é apenas porque quer usar de metáforas, analogias, mas porque estamos juntos mesmo, com uma ilusão de separação. Porque somos animais com eles. Porque tanto em nós quanto nas girafas, nos bisões, nos moluscos há uma ordem de viver, ainda que ali na frente esteja o nosso predador, que quer viver também. Tanto o mundo natural quanto a civilização (cultura) que construímos são tomados pela violência. Saber por que trouxemos mais sofrimento do que o existente por si torna a vida humana indecifrável. Que tenhamos nos tornado nosso próprio predador é asfixiante:

Porco-espinho

Acantonado pela fera
na touceira seca,
pensa o porco-espinho

era então só isso, noite e dia,
um passo atrás do outro
um passo atrás do outro,

esperando o que viesse
à frente, fugindo
do que ficou para trás.


Fonte vital, alguns minutos sem oxigênio e acaba a vida. O poeta é aquele que dá valor ao invisível, ao que nutre os corpos emocionais. Quanto negamos (e negamos a nós) na nossa relação com o mundo? Quanto da nossa tristeza, depressão, sofrimento envenenam o ar? Se a sanidade de nossos pulmões dependesse da sanidade de nossas trocas afetivas, talvez a alegria fosse um antídoto; antídoto, por sinal, amplamente recomendado pelo filósofo Spinoza, pois a alegria aumentaria a nossa potência para a ação e o pensamento.

Na sobrecarga dos dias, entre poemas que dão conta de nossa claustrofobia, o poeta nos diz de uma pausa para respirar: voltar-se para dentro, para o lugar onde ainda respirávamos na água.


Submersos


Submersos, somos leves,
com cabelos de algas

Nenhum fruto se iguala
ao que nada

Sim, morder a maçã
limpa os dentes

Mas escute um pouco
o arrepio que sobe

do fluxo cadenciado
das brânquias

No fundo
sempre fomos felizes.


***
Fundamentos de ventilação e apneia
Alberto Bresciani
Poesia
ed. Patuá
2019

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