Por
Adriane Garcia
“(...)
É
certo que nasci para nada e nascer para nada é libertador:
nascer
para nada não me exige títulos,
não
me assinala vencimentos,
não
subtrai o que sou.
(...)”
p. 38
Conheci
o trabalho de Lisa Alves pela internet. Li alguns poemas da autora,
espalhados por blogs e revistas deste infinito universo virtual. De
um poema que lia, era levada a outro, motivo pelo qual, fui em busca
da poeta e seu livro Arame farpado (Lug editora, 2015), cuja primeira crítica eu já
havia lido no recomendado A nova crítica, de Sérgio Tavares.
O que
havia me chamado a atenção no trabalho de Lisa era a linguagem tão
contemporânea, direta, aliada a um vocabulário rico (sem ser, de
forma alguma, anacrônico) e cheio de referências (literárias,
históricas, geográficas, cinematográficas...). Ao mesmo tempo, uma
rebeldia e uma coragem. A rebeldia de assumir o mundo que é o mundo
e uma coragem de denúncia e de reflexão sobre o caos. Ao encontrar
o livro, vi que essas características acompanhavam toda a sua
coletânea de poemas.
Arame
farpado, na própria forma, é um tanto irregular. Até mesmo o
ritmo, a maneira de utilizar ou não estrofes, espaçamentos, leva,
ora a momentos melódicos circulares, ora a momentos sincopados. No
princípio, tive mesmo um incômodo, alguns de seus poemas,
abertamente políticos, poderiam beirar o panfletário – mas ela sabe não
atravessar a linha tênue – há algo que foge um tanto do que nos
acostumamos (apesar de todas as vanguardas, hoje antigas) a
considerar como “limpo”, “lírico”, na poesia “correta” e
tantas vezes insossa. Mas a verdade é que Lisa Alves faz em Arame
farpado um retrato, um grito, absolutamente coerente com o país onde
escreve (a terra do sol de Glauber), com o mundo que chega à sua
percepção, à nossa percepção, o mundo terrível dos atentos. Como a poesia, estando viva, não se sujaria com um mundo destes? Para que serve uma poesia que não tem consonância alguma com o tempo em que é escrita? Um bom livro nos faz perguntar muitas coisas.
Com
inteligência e sensibilidade, Lisa Alves nos leva à viagem insólita
de pensar e ver o planeta que habitamos; muitas vezes, faz isso de
modo inesperado – sujo e exuberante. Sua liberdade de elaboração
(aliás, liberdade é uma palavra-chave na poesia da autora), bem
articulada ao seu/nosso tempo, pode tanto nos colocar nas Minas do
Barroco, cheias de conservadorismo e tradição, quanto na Faixa de
Gaza, onde crianças palestinas são assassinadas por Israel, com a
mesma frieza e pragmatismo com que judeus foram assassinados pelo
Nazismo.
Na
geopolítica, sua crítica é direcionada ao capitalismo e seus
tentáculos, como a manipulação midiática ou o uso político-social
das religiões, não escapando orientações de esquerda ou de
direita, ou mesmo a imundície de Brasília. O espírito em Arame farpado é anárquico. No mesmo
cenário, Lisa utiliza-se de seus poemas mais confessionais para
falar de amor e, por esta via, expressar-se quanto às questões de
gênero, a condição da mulher e sua ancestralidade, a condição da
mulher homossexual e o machismo em nossa sociedade. A vida e a morte
não poderiam escapar à sua poesia. E não escapam.
Construída
com um discurso farpado, agressivo, de resistência, há um tipo
sutil de delicadeza nos versos de Lisa Alves, muito bem retratados
pela capa de seu livro. Palavra de aço, vontade drummondiana de ir
de “mãos dadas”.
[o
descobrimento]
Eles
caminhavam em busca de uma terra
com
rios, lagos e água abundante.
Eles
defendiam-se do sol com tecidos
especialmente
feitos para proteger a pele da invasão ostensiva dos raios.
Eles
construíam casas em qualquer local
propício
para uma nova cerca.
Eles
não cansavam, eram dromedários
capazes
de seguir em frente até darem de cara com o final.
Eles
não choravam, eram hienas, seus
lamentos
pareciam risadas com o poder
de
afastarem os inimigos de perto.
Eles
não se machucavam, eram elefantes
capazes
de segurarem um dos seus em
qualquer
momento de dificuldade.
Eles
não fugiam dos obstáculos, eram macacos,
pulavam
e suportavam qualquer tipo de superfície.
Eles
mergulhavam no mundo mais profundo,
eram
peixes e desbravavam qualquer oceano
em
busca de alimento e abrigo.
Eles
nos descobriram e até hoje não encontramos
o
antídoto certo para esse resfriado.
[o
tear de gaza]
ATO I:
A AGULHA
Contaram
que
em
Gaza duas crianças
brincavam
de tabuleiro
quando
a Estrela de Seis Pontas
expediu
um míssil que emudeceu a casa inteira.
(vermelho,
cinzas e fogo)
A mãe
(em seu tear) acolheu
a
notícia através do padeiro e logo após
cravou
uma agulha no coração (repetidas vezes)
enquanto
proferia uma maldição repleta de pranto:
“Oh,
filhos de Israel!
Não
haverá espigões para resguardarem vossas rosas.
A
agulha que me lança
nos
braços dos meus antepassados
derramará
veneno sobre
a
ceifa futura e
teus
filhos não terão mais mãos
para
brincarem com tabuleiros de usura”
Dizem
por aquelas trincheiras que
para
cada filho assassinado em Gaza
há
uma maldição professada contra os seus inimigos
até o
ultimar de uma quinta geração.
ATO
II: SILENCIADORES
Pelo
cadáver lançado
a mais
de cem metros.
Pela
pegada de sangue
da mãe
rebelada.
Pelos
filhos escoltados
ao
futuro orfanato.
Convocamos
um minuto de revolta por Gaza,
pois o
silêncio, até hoje, só serviu de munição.
ATO
III: ANTROPOFAGIA
Dois
foguetes
para
cada “Não” inconfesso.
Devorarei
os ossos de meus filhos
quando
não sobrarem mais suprimentos e
para
que não se tornem iguaria basilar do Inimigo.
Insurgente
alma,
durma
nessa carne
nomeada
corpo
e não
desperte mais pelas manhãs – nem labute
ao
lado de nossos fantasmas.
Gaza,
eu não desejo mais nenhuma noite.
[non
cacare nec abieris rubus]
Ergo
uma religião que sangra metáforas.
Tracejo
a pele com a pena que pagas por viver.
Favoreço
toda crença em figuras inertes e inanimadas.
Minha
cabeça gira 360 graus e flutua em nuvens artificiais.
Silício
reconstitui meu útero – menstruo alianças binárias.
Fluir
é desastroso na passagem para o nível gasoso de ideias coletivas.
Permaneço
então na base de uma pirâmide de palavras obsoletas que
não
cagam e nem desocupam a moita.
***
Arame
Farpado
Lisa
Alves
Poesia
Lug
Editora
2015
Vim pela crítica, amei os poemas e vou seguir seu blog e comprar esse livro .
ResponderExcluirSempre feliz que seja despertado o desejo por um livro, Metamorfoses.
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