quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva




Por Adriane Garcia


Entre outras mil/ és tu Brasil/ ó, Pátria amada


Esse excelente e essencial romance Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva começa com uma dedicatória:

Este livro é dedicado ao meu pai, Rubens Paiva, que viveu como poucos, fez o que deveria ser feito, e foi morto porque arriscou ser solidário.

O pai do autor, Rubens Paiva, preso pela ditadura militar em 1971, torturado e assassinado, foi um dos tantos desaparecidos políticos do regime criminoso.

Em Não és tu, Brasil, o narrador, em primeira pessoa, conta-nos de sua infância e adolescência no Vale do Ribeira, na cidade de Eldorado, sul de Minas Gerais. Misturam-se ficção e fatos históricos, em uma ambientação do cotidiano de cidade do interior, ao mesmo tempo em que se vai mostrando o retrato do país pré e pós AI5.

Por minha determinação e disciplina virei o mascote da turma e o queridinho do instrutor. Era o começo de um ano pesado, 1969, nas aulas muitos inscritos, executivos apavorados pelos novos tempos, convencendo, por tabela, esposas e filhos a se armarem e prepararem para o pior; organizações de guerrilha ameaçavam famílias de donos de jornal, banqueiros capitalistas, estrangeiros imperialistas, empresários que financiavam a repressão e americanos suspeitos de pertencerem à CIA. Um pedaço do Brasil se armava, era tudo ou nada. E eu solto por ali.

A centralidade dos acontecimentos se dá entre abril e maio de 1970, quando o Exército Brasileiro descobre que o guerrilheiro Lamarca e seus companheiros estão no Vale do Ribeira – Lamarca tinha escolhido o lugar para criar um campo de treinamento para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O Exército, então, envia 1500 homens para combater menos de uma dezena de jovens.

Marcelo Rubens Paiva, de maneira hábil e munido de farta pesquisa histórica, recria o cerco aos guerrilheiros da VPR, além de retratar a violenta repressão que vem após o cerco. Não és tu, Brasil denuncia o modo como o Estado brasileiro tratou o cidadão, com todas as garantias suspensas, fazendo amplo uso das prisões, torturas e assassinatos.

Foi a partir da operação no Vale do Ribeira que o Exército repensou sua ação contra os guerrilheiros e militantes, inclusive desaparecendo com os corpos para que, assim, não houvesse a chance de trocá-los nas ações de sequestro da guerrilha. Foi também quando o exército profissionalizou a tortura trazendo o Doi Codi, dando carta branca para os torturadores, sem estabelecer qualquer limite, na implantação do que, na falta de melhor palavra, pode-se chamar de barbárie.

Uma personagem que chama a atenção na narrativa é a tia Luiza, a tia guerrilheira. Crítica dos costumes e da moralidade vigente, tia Luiza encanta o sobrinho, além de instalar o inusitado entre os conservadores.

Com três vértices – cada capítulo é denominado Vértice 1, Vértice 2 e Vértice 3 – Marcelo Rubens Paiva encontra as pontas desse triângulo dos horrores chamado ditadura militar. Com uma linguagem clara, fluida, objetiva e domínio de ritmo, o livro oferece uma história forte e densa.

Não és tu, Brasil fala das pessoas que deram a vida para mudar o país e instaurar a democracia. Sem romantismos, de forma complexa, ajuda a entender e a sentir aquilo que não podemos admitir que aconteça novamente. Um apelo à humanidade e à memória.


“ – Josimar mora por aqui? – perguntei ao balconista.
Sei não.
E Batico?
Sei não.
E seu Avelino, Zeca França, Ribeirinho, Benê, Ari Mariano, Edgar Carneiro, João Cândido, Zé Arantes, Laudico, Gérson, Feliciadade, Jairo Moraes, Doenha e Bartira, a que levou um tiro dos guerrilheiros?
Que guerrilheiros?
Paguei e voltei para o carro. Estrada que vai dar na Caverna do Diabo; recém-asfaltada. Fui em frente. Construído um outro bairro, um ginásio de esportes, vizinho ao campo de futebol, novo armazém, oficina de tratores. Duas lombadas, não mais cidade. Laranja e banana. Uma curva, o pasto, a cachoeira abandonada, o lago e a sede da fazenda no alto do morro, cercada pelo muro mediterrâneo; na mesma cor. Fazenda Apassou, não uma qualquer, mas meu berço, meu passado. O abacateiro? Não existia mais. Nem a fazenda se chamava mais Apassou.
Entrei à direita, estradinha que dá no rio. Lá no meu tempo uma praia natural de areia branca, acampamento de todas as crianças e das bandeirantes. Não existe mais; venderam a areia. Desci do carro, pensei em dar meia-volta, imagens me provocando, passado atropelado pelo fim desgovernado. Mortes, abandonos e falências saíram dali.” (p. 95)


***
Não és tu, Brasil
Marcelo Rubens Paiva
Romance
Ed. Objetiva (Cia das Letras)
2007









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