segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos, de Leonardo Valente

 



Por Adriane Garcia

 

Livro interessantíssimo, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos, de Leonardo Valente, é um romance escrito em primeira pessoa, cuja personagem “D.” nos leva ao seu mundo por meio de uma experimentação de escrita. Já nas primeiras páginas D. nos alerta para o fato de que possui a “síndrome da imunodeficiência afetiva”.

 

De D. não sabemos se é homem, se é mulher, se é cis, trans, se é hétero ou homossexual, não temos qualquer definição nesse sentido. Também não sabemos com o que trabalha, ou seja, não é uma pessoa definida pelo que faz dentro da cadeia produtiva. Sabemos que é uma pessoa, é o que importa, e essa é uma das características mais marcantes nesse romance, dar-nos a perceber que as situações vividas, as emoções narradas poderiam se passar com qualquer ser humano, sem precisar que seja definido um grupo sexual, um gênero ou uma profissão. E mais, como o texto nos convence, seja qual for a maior identificação de gênero que façamos da personagem, o autor acaba por mostrar, de modo eficiente, que a verossimilhança com relação a uma personagem não precisa depender necessariamente de qualquer afiliação, característica ou orientação da autoria. Nesse sentido, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos é também um livro que se destaca nos debates sobre lugar de fala e criação. Ao jogar com os artigos e pronomes masculinos e femininos e com as desinências de gênero variadas para uma mesma pessoa, sem que isso atrapalhe a fluidez da narrativa, Leonardo Valente adiciona à história um jogo delicioso para quem lê. A universalidade do que é humano se sobrepõe. “perdão pela indelicadeza de até o momento não me apresentar. sou D. creio tratar-se de informação suficiente diante de tudo o que pretendo vomitar e que é infinitamente mais importante que minha identificação social ou o que exerço no trabalho.”

 

D. expõe seus problemas quanto nos relacionamentos com seus ex-maridos, o marido atual e seu futuro marido, assim como confessa a vigilância que exerce sobre eles nas redes sociais, na demonstração consciente de apego ao passado e ansiedade pelo futuro, entregando sua agonia por nunca estar no presente: “atropelo a vida com essas antecipações”. Um detalhe curioso é que todos os seus maridos possuem o mesmo nome, o que reforça a fixação da personagem por esse outro que a ocupa. Nas crises dos relacionamentos, D. costuma deixar a eles a responsabilidade pelo término, pelo fim das próprias histórias, revelando sua covardia. No fundo, ela/ele está sempre buscando a mesma pessoa em várias, como um narcisismo que busca a si mesmo; em outros momentos parece tratar-se de uma fragmentação de personalidade. D. só ama o que perde, desdenha do que tem, age como uma pessoa superficial, sendo alguém muito profundo.

 

Para dar conta de sua profundidade e da dificuldade que é viver e se relacionar, D. escreve. É a escrita seu método de criogenia. D. escreve para congelar o sofrimento, a ansiedade e o passado. Congelar para interromper a vida, mas um dia, quem sabe, poder reavivá-la. Assim, toda criogenia é uma morte pela metade, e é um exercício de esperança. Falando de si, a personagem de Leonardo Valente também constrói um texto metalinguístico em que discute a própria ficção. D. mistura suas confissões com o exercício de escrever, a ponto de, depois de nos convencer de algo, simplesmente dizer na página seguinte: “minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes”, ou de nos confessar o oposto do que há pouco nos dissera: “suprimi aqui uma parte inteira que tanto gostei – meia página – apenas por não acreditar que o que escrevi seja realmente eu. falsificar-me é vício que quero substituir por outros, pelo menos aqui”.

 

Quanto aos prazeres perdidos, D. confessa, por exemplo, fantasias sexuais para, em seguida, registrar a repressão, a vergonha e a culpa, dando satisfação à sociedade, que denuncia como falsa. Tudo isso é feito de modo muito bem-humorado – um humor cítrico – e utilizando a ambiguidade de cenas que podem bem ser metáforas, como nas suas confissões culinárias em que a cozinha se dá como lugar de falsificações. D. chega a nos dar uma receita de penne ao funghi verdadeira que ele nunca experimentou, depois de nos informar várias vezes de como já falsificou molhos utilizando creme de leite e sopinhas industrializadas. Cama e mesa se estabelecem como lugar de prazer, onde pode estar a verdade, mas também a mentira elaborada, verossímil. Comida e literatura.

 

Página a página, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos surpreende com um uso muito consciente do texto como ocupação gráfica na página.  O texto é escrito com minúsculas, na maior parte do tempo, o que tem um uso justificado na narrativa. O capítulo todo escrito em maiúsculas deixa claro a intenção de gritar, de ser agressivo. As páginas irregularmente preenchidas, os espaços em branco, a mancha reduzida na página 82, por sinal uma página de cor invertida, preta com letras brancas, tudo é intencional: “esta, por exemplo, sou eu do avesso”. D.  tem ciência de que escreve e sabe que escrever é seu único espaço de plenitude.  Com a leitora/o leitor nas mãos, D. nos reafirma uma das lições da literatura, a de que não se deve confiar em narradores: “Não confiem em nada do que acabo de escrever”, e ainda completa, “pois minha essência é fraudulenta”. No entanto, confiamos em D. até a última página.

 

“cozinhar é o ato perfeito de transubstanciação, a ciência mais depurada em prol da vida. já fiz muitos pratos elogiados para os amigos, mas hoje não mais. afastei-me deles por causa de meus maridos. afastei-me deles por minha causa. converso com esses não mais tão amigos de vez em quando, curtimos uma ou outra coisa nas redes sociais, mas nunca mais comemos juntos. e se não comemos reunidos é porque nossos laços não são mais os mesmos. o afeto vive ao redor das mesas, tanto que é delas que queremos afastar rapidamente aqueles que não mais convêm ou que decepcionaram. as mesas revelam mais intimidades do que as camas. um estranho pode conhecer a textura dos lençóis e a densidade da mola de meu colchão com apenas minutos de convivência, mas jamais sentará em minha mesa sem antes tornar-se um alvo de meus afetos, um significante com vários significados em meus relacionamentos, e isso leva tempo. na noite insone por causa daquele conhecido que vi na TV, fiz macarrão após adormecer. fervi a água, escolhi um espaguete bem fino e de massa italiana e o depositei delicadamente na panela. não ponho um fio de azeite na água, como muitos vangloriam-se de fazer. azeite na água é pós-verdade de quem acha que entende de cozinha. tenho muitas restrições ao termo pós-verdade, mas considero a expressão perfeita para a necessidade do uso do azeite para o bom cozimento do macarrão. acompanhei todo o processo sem sair de perto da panela. senti por alguns minutos o vapor d’água chegar ao rosto, até que soberanamente decidi estar pronto, pois sou a senhora do ponto da minha massa.”

(excerto da pág. 17/18)

 

***

 Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos

Leonardo Valente

Romance

Ed. Mondrongo

2021

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário