sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Mauricéa, de Adrienne Myrtes





Por Adriane Garcia

Vão nos deixar bordar pássaros
Nas bandeiras da pátria livre?
Pedro Lemebel

Mauricéa (ed. Edith), título do romance de Adrienne Myrtes, faz referência à Cidade Maurícia e a Maurício de Nassau, à época da invasão holandesa; é também o nome escolhido por Omar, quando decide assumir a transgeneridade.

Diferente dos demais, deslocado, identificado, desde a infância, com o gênero feminino, Omar, quando nos narra em primeira pessoa sua vida, já é uma velha e  está, como nos diz, na melhor idade: “melhor idade para morrer”, “melhor idade para ir pro asilo”, “melhor idade para ter Alzheimer”, “melhor idade para brincar no Parkinson”. É com humor melancólico, alguma nostalgia e constatações de muita dureza que Mauricéa conta sua vida. A vida de uma sobrevivente, em um país com um dos mais altos níveis de homofobia do mundo, onde a expectativa de vida das travestis não chega aos 40 anos.

A história nos chega enquanto Mauricéa está de cama, na casa que divide com duas amigas, Izildinha e Paula Klee. Está imobilizada, devido às sequelas de um traumatismo craniano que sofreu, quando foi surrada por uma gangue de, acredite, outros velhos. É interessante que Adrienne Myrtes tenha escolhido para os criminosos a idade da velhice, revelando uma continuidade: o que, a princípio, soa inusual para uma gangue de caçada a pessoas LGBT, logo nos leva a refletir sua atualidade. Há pouco, na própria realidade brasileira, um senhor de 63 anos, ocupante de cadeira legislativa e concorrendo à Presidência da República, vociferava em vídeos de redes sociais e programas de televisão seu preconceito contra gays. Os problemas não resolvidos com a sexualidade duram o ódio de uma vida inteira, velhos capazes de espancar o que julgam ser um homem vestido de mulher podem estar na fila do posto de saúde. E estavam.

Sendo amparada e cuidada por Izildinha, cuja bondade e caridade chegam a irritar Mauricéa, “quem faz caridade oprime sorrindo”, ela rememora toda a sua trajetória. O leitor se instala no pensamento da protagonista. Dali, é possível saber quais foram seus caminhos, seja em Recife, onde, órfã, foi criada pela tia e trabalhou no Chanteclair, ou São Paulo, para onde foi tentar ser uma estrela, uma grande artista, se revelar no feminino. Porém, a realidade fez o que costuma fazer com os transgêneros, empurrou-a, mais uma vez, para a prostituição. Para complementar a renda, Mauricéa foi também manicure.

Passando por grandes amores, Jonas, Gilmar, Romero, Mauricéa nos conduz à sua vida amorosa, o amor terminando ora em traição, ora em morte, “o amor não é saudável nem compreensível”. “Mona é bicho que gosta de se iludir”. É no amor que a vida mais se confunde, pois não há uma educação amorosa e, no caso de Mauricéa, o preconceito social determina muitos abandonos; não se ensina em lugar algum o amor, essa “coisa” que todos buscam e em nome do qual se pratica tudo quanto é desamor.

De maneira fluente, verossímil, suspensa de julgamento, íntima, Adrienne Myrtes consegue estabelecer uma conexão perfeita entre sua protagonista e o leitor. A naturalidade com que as lembranças surgem é notada, inclusive, nos “ganchos” de memória. De modo recorrente, uma palavra do parágrafo acima é o que desencadeia a memória que virá no parágrafo seguinte, ou de uma linha para outra: “E o que eu mais queria era ver a segurança familiar dizimada, se eu pudesse espatifava a dele pra começo de papo, atirava no coração dela, a tirava de circulação...”, “ele foi fraco, homem é assim mesmo, tem necessidades. Não havia necessidade era de você nascer na família”.

Enquanto acompanhamos a existência de Mauricéa, aparece-nos o país de fundo, a época da ditatura militar, na qual Mauricéa passa parte de sua juventude e vida adulta. A eterna tentativa hipócrita e higienista da sociedade brasileira de “limpar” as ruas dos “indesejáveis”. A direita e a extrema-direita usando do bullying aos grupos de extermínio e a denúncia de Mauricéa de que até entre os subversivos (a esquerda) ela era uma subversiva, pois nem ali os travestis encontravam apoio para os seus corpos.

“... Tempos de maremoto, de força policial específica, embora não oficial, treinada para limpar as ruas da imundície que representávamos: o esquadrão antibichas era conhecido e temido; por sua vez temiam e, por isso, paravam o ataque quando começávamos a nos cortar. Guardavam medo do mal anunciado veladamente. Naquela noite, além de me deixarem a cara inchada de porrada, fui obrigada a engolir a porra de quatro deles; conseguiram me tomar a gilete quando me caçaram. Aqui se misturam em mim a dor da humilhação revisitada e a ternura do encontro com Gilmar, meu salvador, meu querubim.”

Mauricéa, contrariando prognósticos, chega à velhice, e a homofobia acompanha a história. É na contemporaneidade, na suposta democracia, que ela é abatida, como se humana não fosse. Na narração das lembranças de Mauricéa, poderíamos supor que ela frisa apenas seu lugar (ou não-lugar) social, mas não, o grande mérito de Adrienne Myrtes é nos dar uma personagem que faz isso, mas, antes, é uma vida humana completa e complexa, com dores, alegrias, desejos, sentimentos de vingança, pontos de vista pessoais, reflexões que independem de gênero, orientação sexual, rótulo. Parte da raiva dos “quadrados” é não conseguir “encaixar” as variantes da sexualidade, achando que, mais seguro, é o mundo conhecido, que mata.  A sexualidade de Omar/Mauricéa também não pode ser totalmente compreendida (ou encaixada), pois pertence ao campo da liberdade, ao delicioso campo do “fluir”. Mauricéa é gente, que acerta e erra. Gente que aprendeu a construir distâncias, que sabe que o tempo é “esse gigolô que nos fode e nos vende em troca de momentos(...). Gente que, como toda gente, quer amar e ser amada. E, parafraseando Mario Quintana, todas as histórias são mesmo de amor.

Omar, meu amor, você está acordado? É hora dos exercícios e da massagem nas pernas, o médico falou pra não descuidar, e você tem ficado tempo demais deitado, precisa se mexer.
A única coisa que mexi de modo involuntário foi o peito. As mãos de Izildinha aqueceram minhas pernas, as palmas esfregando a pele. Meus músculos, tocados, libertaram soluços velhos, coisas guardadas. Cobri o rosto com o braço a ver se escapava da piedade, mas, igual a um filhote de cão quando sonha, deixei escapar pequenos ruídos, gemidos de choro contido; um vira-lata sem dono aprendendo a lei da rua, do asfalto. Minha mãe precisou conhecer as ruas, pode-se dizer que sua vida foi mais fácil? Mais fácil foi aceitar que o calor das mãos de Izildinha massageando minhas pernas  e pés surtiram o efeito de acalmar a alma, pacificaram a guerra em meu peito, mas acordaram involuntariamente meu pau, adormecido e abandonado entre as pernas havia tanto tempo, rebaixado à tarefa de expelir urina feito fosse outra vez criança, meu velho amigo alquebrado pela jornada; sobreviveu ao mata-pombos e a minha condição de fêmea para chegar até aqui e ser trazido de volta à vida pelas mãos de uma mulher. Fechei os olhos e me permiti sonhar com o amor, esse belo desconhecido, enquanto Izildinha me acarinhava e me lembrava: a vida é maior que a dor e tem o costume de impor sua presença. Izildinha tem a manha do negócio, é profissional.
Omar, meu filho, relaxe. Veja se dorme. Vou ao banheiro lavar a boca.

***
Mauricéa
Adrienne Myrtes
Ed. Edith
Romance
2018






Nenhum comentário:

Postar um comentário