quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Por cima do mar, de Deborah Dornellas




Por Adriane Garcia


Por cima do mar (ed. Patuá), de Deborah Dornellas, conta a história de Vitalina da Conceição Brasil, mulher negra, historiadora, professora da UNB, filha de pai cearense e mãe mineira, nascida em Brasília quando da construção da capital do país. Na infância, moradora em uma favela no Distrito Federal, logo se muda juntamente com a família para a Ceilândia, cidade satélite.

Indo e vindo em memórias, a protagonista, depois tornada Lígia Vitalina por uma ousadia da mãe, reconstrói a própria história e, nesse percurso, leva o leitor a muitos lugares. É em Benguela, Angola, que a narrativa começa. Fazendo o caminho contrário da diáspora africana, Lígia Vitalina busca as suas origens e, na África, reconhece as mulheres que lhe antecederam. Por cima do mar é tecido de muitas delas, são as mulheres que vão compondo o mundo neste romance.

Ao oferecer ao leitor a história de Lígia, Deborah Dornellas mostra também uma parte importante da história do Brasil, a dos candangos, migrantes que, vindos de vários lugares do país a partir de 1957, dispuseram-se a construir Brasília, sob condições precárias de trabalho e moradia. A capital não é feita para abrigar a classe de trabalhadores que a construiu. Pronta, aqueles que não podem estar dentro do Projeto Piloto são empurrados para as cidades distantes, sem serviços públicos adequados e sob forte repressão policial.

Também é destacável que a autora, a partir do personagem José Augusto Luacute, nos dá um panorama da Guerra Civil em Angola, só terminada em 2002. É comovente a história do jovem, único filho homem, que é enviado pela mãe ao exterior para que não lutasse na guerra fratricida. Luacute parte em um cargueiro holandês, mas não sem culpa por abandonar os seus. À ação de amor e desapego da mãe, Luacute deve a instrução intelectual e a vida.

Compreendendo, diariamente, e não sem dor, a diferenciação entre brancos e negros, ricos e pobres, homens e mulheres, patroas e empregadas domésticas, Lígia Vitalina busca o seu lugar – a despeito do que lhe deram – nas relações pessoais e sociais. Deborah Dornellas, neste Por cima do mar, leva-nos na companhia de uma personagem de muita beleza e luta. Uma história atravessada pelo racismo, pela misoginia (com um de seus eventos culminantes: o estupro), pela inadequação e invisibilidade social.

Um dia, em 1986, na Ceilândia, jovens reunidos para dançar em um baile black, no Quarentão, foram cercados por viaturas e um policial gritou: “branco sai, preto fica!” Em seguida, começaram a atirar. É importante lembrar. É importante não deixar esquecer. Por cima do mar é um livro que sabe que Minas Gerais e seus pretos, que Paracatu e seu congado, que Brasília e seus candangos, que Angola e suas zungueiras, que o Rio de Janeiro e o Mercado do Valongo falam da mesma dor e da mesma resistência.


Nunca achei que fosse o tipo de pessoa que faria terapia. Pensava que jamais ficaria confortável com isso. Não porque achasse que é coisa de gente doida, mas porque achava que terapia não era coisa para gente pobre. Que uma coisa não combinava com a outra. Era refém dessa crença inútil, reforçada por preconceito e desconhecimento. E, mesmo quando fui à primeira sessão, caminhei até o consultório da psicóloga carregando uma tonelada de culpa no lombo. É gastar dinheiro à toa, bobagem, frescura de branco, coisa de rico. Escutei essas expressões sei lá quantas vezes ao longo da vida. Inclusive da boca de gente da minha família. Mas aprendi a impedir que essa ideia me entrasse ainda mais pelos poros e circulasse nas minhas veias. Tenho, sim, o direito de buscar ajuda profissional que me auxilie a lidar comigo mesma e com meus problemas. Todo ser vivente tem. E de pagar uma terapia, mesmo que com sacrifício, se achar que é o caso. Era.
Sobrevive entre as mulheres negras a ideia de que, por ser preta e de origem pobre, uma mulher tem que ser sempre forte e aguentar tudo, sem sucumbir. E sem pedir ajuda. Minha mãe nunca me disse isso com todas as letras, mas sempre agiu como se esse comportamento estivesse subentendido. De tia Maria, ouvi absurdos a esse respeito. Minha tia não segurava palavra. Era uma tagarela para os padrões mineiros. Mas mãe e tia não foram as únicas que me incutiram essa crença estúpida, da qual elas próprias devem ter sido vítimas a vida toda. Vi e ouvi muitas vezes mulheres e homens negros, no espaço familiar, na vizinhança, nas rodas de amigos, falando e agindo como se para nós, pessoas negras, não houvesse a possibilidade da fragilidade.
Passei anos da minha vida guardando dentro de mim todos os detalhes do ataque. Aqueles escrotos me violaram o corpo e a alma naquele dia. Parte de mim ficou no chão seco do cerrado. Mas ainda estou aqui. E decidi não mais dar aos monstros o poder de me roubarem o gosto pela vida.
Antes de começar a falar, na primeira sessão de terapia, captei nos olhos de Míriam, a terapeuta, uma profunda empatia. Confiei nela e falei tudo que consegui em uma hora e pouco. Agradeci mil vezes por estar ali e por conseguir falar. Foi a primeira vez que mencionei a palavra feia sem constrangimento. Estupro. Estupro. Estupro. O que sofri foi um duplo estupro. Hoje se diz gang rape ou coisa parecida.
Míriam era a terceira pessoa que ficava sabendo do estupro. Além dela, até então, apenas o professor João Luís e Docas sabiam. Foram os dois, inclusive, que, cada um no seu front, me convenceram a procurar ajuda psicológica.
Um alívio conseguir falar da violência que meu corpo sofreu sem medir as palavras. A ferida ainda dói, mas já não sangra.” ( p. 169/170)

***
Por cima do mar
Deborah Dornellas
Ed. Patuá
Romance
2018

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