segunda-feira, 1 de junho de 2020

Velhos, de Alê Motta




Por Adriane Garcia

A velhice afigurou-se-me repentinamente doce e harmoniosa.
Cícero

Diabos!, Catarata é a constatação irrefutável da velhice.
Alê Motta


O livro Velhos, da escritora Alê Motta, é uma coletânea com trinta contos curtos, todos versando sobre o tema intitulado.

Em um outro livro, o clássico A velhice, escrito em 44 a.C, Cícero fala de um envelhecimento amparado pela filosofia e pela prática das virtudes, uma velhice feliz, sábia, com temperança e contribuições à sociedade que só uma vida experiente e sensata pode dar. Certamente, a velhice de Cícero é a velhice dos sonhos, mas está longe de ser aquela retratada nos contos de Alê Motta.  Em Herança, por exemplo, primeiro conto da coletânea, podemos conhecer este avô:

Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares.
Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar um emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter.”

Se no imaginário pode persistir a imagem de velhinhos fofos e inofensivos, é na contramão que Alê Motta trabalha. Suas narrativas não fazem concessões e seus personagens se contextualizam em uma sociedade em que, diferentemente do que indica Cícero para sua época, velhos são desvalorizados e considera-se que pouco têm a oferecer a uma sociedade como a brasileira, que despreza as experiências do passado. Alê Motta situa suas velhas e velhos em um lugar que não dá importância à memória, tanto é que nos contos em que os idosos se encontram com adolescentes, ora são ridicularizados, ora são ignorados, já que os jovens estão sempre com a cabeça baixa mexendo em seus celulares. Há exceções como em Viagem, em que o avô aprende com o neto sobre aplicativos de celular e marcas de chocolate ou em Festas, um conto no qual a família é surpreendida com as ações do aniversariante de oitenta anos, afinal, não o conheciam tão bem quanto julgavam.

Certamente um envelhecer contemplativo é um privilégio. Nem mesmo um sábio poderia considerar a velhice uma etapa leve, se estivesse na penúria. A máxima é universal e atemporal. Dados recentes apontam para um aumento significativo do número de idosos na população mundial. No Brasil, especificamente, para muitos idosos, as políticas públicas ou são inexistentes ou insuficientes no sentido de garantir a saúde e o bem estar psicológico e material dessa população. Em Mudanças, Alê Motta levanta a voz de um desses muitos velhos do país: “Antes era só deitar e afundar na velhice – minha e do meu colchão. Agora estou num colchão que não é meu, dividindo o quarto com dois netos, na casa do meu genro, que gosta pouco ou nada de mim.” Também em Encontros, além do tema do relacionamento amoroso na terceira idade, a autora expõe a necessidade de velhos terem que arrumar um emprego após a aposentadoria, ou por causa das necessidades materiais ou mesmo por não suportarem o isolamento e a solidão.

No conto Desculpas, o primeiro parágrafo traz a façanha de conter um capítulo inteiro da história do Brasil: “Sou preto e sou velho. Diferente da maioria dos pretos no Brasil, sou rico. Moro num condomínio sofisticado, num bairro de brancos que acham muito esquisito a minha família preta morar ali.” O racismo estrutural brasileiro também aparecerá em outras páginas.

Ainda que tratando de uma temática que traz reflexões – e às vezes soluções – graves, Alê Motta consegue fazer um livro de prazerosa leitura. Muito disso se deve a um humor que sabe trabalhar com o absurdo naturalizado e a crueldade. Do humor de Alê Motta rimos como se ri de um palhaço: rimos da queda (porque nós mesmos caímos); e como o velho de Lucros, acabamos por concluir que é melhor não nos levarmos tão a sério. Esse personagem tem setenta e sete anos, obesidade, vários problemas de saúde e é filmado por um jovem quando, ao se pesar, quebra a balança da farmácia. O andamento e o final desse conto são terrivelmente deliciosos.

Temas como choque de gerações, proximidade da morte, partilha de herança, Alzheimer, suicídio, passados obscuros, abandono, estadia em asilos, velocidade do tempo, novas tecnologias, tragédias familiares, palavras que ficaram por dizer, busca por companhia, precariedade da matéria estão todos presentes em Velhos. No livro de Cícero, ele classifica “quatro razões possíveis para acharem a velhice detestável. 1) Ela nos afastaria da vida ativa. 2) Ela enfraqueceria nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproximaria da morte.” Porém, Cícero oferece todos os contrapontos que transformam as desvantagens em vantagens. Parece realmente uma velhice ideal, e rara. Os velhos deixaram de habitar o reino ciceroniano para habitar o livro de Alê Motta. Nos contos da autora, a resposta à vida é dada com gestos desesperados ou melancólicos. Claro que também se encontra sabedoria nas soluções dessas pessoas, mas é uma sabedoria pé no chão, como a de quem sabe que há determinados problemas que só serão resolvidos com um assassinato – ou com uma maratona de Stranger Things.

“Emoções

Tomei um banho quente, escovei e ajustei a dentadura, penteei meus cabelos ralos e coloquei o arquinho. Engoli os comprimidos da manhã, café com leite, pão e requeijão. Escolhi minha roupa mais arrumada – saia marrom e casaquinho xadrez.
Fui para a varanda esperar. Meu neto tem problemas com horário. Essa geração é muito enrolada.

Vamos de carro para a zona e meu neto dirige muito mal. Acelera-freia-desvia e eu agarro no puta-que-pariu cinza-bebê do carro que ele tem porque eu cobri a metade das prestações que o pai dele não pagou. Sim, meu filho tem problemas financeiros. A geração dele também é enrolada.

Hoje é um dia de ouro, muito especial. E esses garotos vêm com calças caindo nas bundas, camisetas velhas-coloridas?, e essas garotas de blusinhas-e-calças-grudadas-indecentes? Não há respeito.

Tenho oitenta e nove anos. Cada passo que dou é lento, apoiado pela bengala que era do meu finado marido. Todos falam que meu voto é desnecessário.
Vovó, na sua idade não precisa...
Mãe, tem certeza?
Vizinha, os políticos não merecem!
Comadre, pra quê esse sacrifício?
A senhora tem quantos anos?, nossa!
Eu quero votar. É meu direito. Lembro da época que eu queria e não podia. Só os homens podiam.

Com meus passos lentos entro na sala e cumpro meu dever cívico. Fico emocionada e quase choro. Meu neto é um dos garotos com as calças caindo na bunda. Não fez a barba, não cortou o cabelo. Mas segura o meu braço com delicadeza e de novo estou com meu velhinho, que já mora com Deus no céu, viemos juntos votar, e ele está tão lindo de terno, vamos seguindo de braços dados pelo corredor e todas as mulheres olham para ele. Eu fico emocionada e quase choro.”  (p. 31/32)

***
Velhos
Alê Motta
Contos
Ed. Reformatório
2020





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