terça-feira, 14 de novembro de 2023

PISTAS FALSAS, DE JOSÉ EDUARDO GONÇALVES



Por Adriane Garcia



Pistas falsas, de José Eduardo Gonçalves, é uma coletânea de narrativas breves, algumas das quais podendo ser classificadas como contos breves, micronarrativas ou microrrelatos. Nelas, a maestria do autor está em, principalmente, no tempo curto, conseguir desenhar um cenário, escolher aquilo que tem importância para a ambientação, enredo e a construção de personagens. Até mesmo as várias referências, deste que é um autor que lê muito, entram nos contos sem pedantismo, fluindo naturalmente nas narrativas. O conto, e seus derivados, sabemos, só tem vaga para o acerto.


Na era digital, observa-se um dinamismo das comunicações – o que não necessariamente significa eficiência. Há uma tendência que favorece a leitura das narrativas breves e brevíssimas, menores que um conto clássico (o tamanho para Edgar Allan Poe, “de meia hora a uma ou duas horas de leitura atenta”). A sociedade muda, mudando assim a literatura que produz e a sensibilidade na leitura. Um dos desafios da literatura, em tempos velozes, talvez seja o de, adaptando-se à leitura mais dinâmica, não ser superficial. Para além da brevidade, os contos breves e brevíssimos devem trazer narratividade e intertextualidade. O encadeamento da história é essencial, assim como o acesso aos conhecimentos – e sentidos – de quem lê, para que esse mundo prévio (uma coautoria) preencha as lacunas da narrativa e encontre as elipses, as entrelinhas, as sugestões, completando o texto com aquilo que não está escrito, mas está.


É assim, com uma dicção de frases econômicas, considerando a maximização dos elementos narrativos, que José Eduardo Gonçalves compõe os 53 contos de Pistas falsas. Em todos eles, maiores ou menores, há tensão, concisão e um suspense especial. Não o suspense que alivia com a descoberta no final, mas um suspense que se prolonga para o depois da leitura. Os narradores de Pistas falsas, maioria em primeira pessoa, conseguem de imediato a empatia do leitor, pois são complexos, humanos, fora de qualquer maniqueísmo, e seus destinos, em geral, deixam oculto o que ainda irá acontecer. É a leitora/leitor que deduz, imagina. Quem lê está convidado a um jogo que conhece bem, o da incerteza, pois a vida é esse devir do qual nada sabemos e é preciso conviver com a frustração de ter que adivinhar sem ser adivinho, de ter que deduzir por pistas que não necessariamente são o que interpretamos. Tudo pode acontecer.


Os personagens de Pistas falsas estão em constante hesitação, não sabem como agir e registram sua angústia diante da necessidade de escolher. São personagens que possuem a contenção que exige o cotidiano, porém, seus sentimentos são transbordantes. A maior parte se constitui de vidas trágicas que procuram um porto seguro, como no conto O corsário. Suas relações são incompletas, cheias de falhas. Os temas tratados são universais. Assim, temos a virilidade envelhecida em Crepúsculo, uma reflexão sobre a efemeridade, o erótico que nos perturba quando o corpo se deteriora porque Chronos é um grande devorador. Em Crepúsculo, o narrador está seduzido por pintas que aparecem no curto espaço de corpo descoberto de uma jovem (parte do ombro à mostra) que ele encontra casualmente em uma loja de discos. O desejo é sentido como uma invasão, um desnorteamento para uma época errada da vida. 


Pistas falsas nos leva a ambientes traumáticos, mães tóxicas, gente que abandona e é abandonada; pais e filhos, seus relacionamentos, medos (um dos maiores, perderem-se um do outro na multidão). No conto Davi, dois narradores, o pai e a mãe na dor de perder um filho, os caminhos possíveis que a vida toma a partir disso, decepções, horrores; a herança dos aprendizados. 


Em O tigre e outros bichos (uma das sessões do livro) o autor usa de muita imaginação. O bicho recorrentemente toma o lugar do personagem, em uma espécie de duplo. Nossa porção animal, viva, instintiva é bem aproveitada por José Eduardo Gonçalves em narrativas que possuem um tom onírico. O especismo, a vulnerabilidade dos animais sob nosso poder (de vida e morte) e a nossa própria vulnerabilidade são colocadas em evidência, ser caça e caçador, comer e ser comido. Há a representação da animalidade como fantasia, fuga da realidade, o desejo de morar com (e nos) bichos. Nessa sessão o autor desperta o alumbramento que nos causa as histórias de transformação em animais, antropomórficas, fantásticas, transmutadas, indo de encontro ao nosso encantamento primitivo, anímico, totêmico, fabuloso.



É interessante notar que em um jogo de metalinguagem, o autor recorre em mais de um conto à indagação de “como retornar ao enredo original?”. Essa, que é uma pergunta sobre a vida, mas que se transmuta em uma pergunta sobre a escrita. Como se ter o controle sobre a história que escrevemos pudesse nos dar a chave para controlar a própria história, depois de termos seguido tantas pistas falsas. O dilema colocado nesses contos sempre retorna à angústia da escolha e seus efeitos, suas consequências. “Sim, estamos perdidos” o autor diz no colofão. É o que acontece quando lidamos o tempo inteiro com a imprevisibilidade e, convenhamos, escolhemos onde pisar no terreno movediço do qual sequer conhecemos a profundidade, mas sabemos bem que já nos afundamos muitas vezes. Esses sentimentos que o autor faz a leitora/o leitor acessar garantem um efeito que estende o que foi dito para outras experiências. É como se conhecêssemos, em algum íntimo, seus personagens.



Mentiras


Corto os meus cabelos porque talvez assim eu consiga dizer a ele que não o amo mais. Aquela mulher morreu, e eu preciso dizer a ele como sou agora, diferente daquela a quem ele destinava as melhores mentiras. As mais lindas, falsas e inacreditáveis mentiras que um homem poderia dizer a uma mulher - e nas quais eu acreditei. Anos e anos a fio. Agora descobri que também posso mentir a ele. Por isso vou dizer a ele que não o quero mais. Então, corto os cabelos que ele gostava de puxar enquanto nos incendiávamos na cama. Assim, talvez ele acredite. Talvez eu mesma acredite.”




Abismo



tudo o que eu queria era uma chance. 

Ora, sua chance é agora. Pule antes que se arrependa.”



O caçador


No fundo da água turva, em meio à lama que desce das margens, galhos retorcidos e algas em profusão, enxergo o que os outros não enxergam. Os outros me temem justamente pela capacidade de ataques improváveis, quando tudo é silêncio e a escuridão é o refúgio dos menos ágeis. Dizem que sou um grande caçador. Sorrateiro, rápido, nada confiável. Acontece que há dias infelizes. Acabo de ser atravessado por um arpão e sei que não adianta me debater. Daqui a pouco serei içado à superfície e exibido como um troféu. A agonia da morte não me amedronta, já a testemunhei centenas de vezes. Aos que ainda não aprenderam, escutem uma coisa. Tudo é inútil. Seremos mesmo devorados em algum momento. Até lá, divirtam-se. E até que nos encurralem, sejamos impiedosos.”


*** 


Pistas falsas 

José Eduardo Gonçalves

Contos

2023

ed. Patuá



 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

CAMINHANDO COM OS MORTOS, DE MICHELINY VERUNSCHK

 







por Adriane Garcia


Sabemos que não apenas lemos os livros, mas que eles nos leem. Um livro com o qual nos identificamos de alguma forma, que nos apreende, que nos leva com ele, é de certa maneira um livro cujos elementos reconhecemos. Neste reconhecimento – e nos bons livros – encontramos muitas surpresas, novas formas de organização, reflexão, (re)visão do conhecido, o encontro com o desconhecido. Assim, uma figura me assomou de imediato na leitura de Caminhando com os mortos, de Micheliny Verunschk: a de Santa Quitéria e sua cabeça degolada.

 

À visão de Santa Quitéria me vieram à mente os estudos de Donald Winnicott sobre a psicose. Para o pediatra e psicanalista o bebê precisa de um ambiente suficientemente bom para integrar mente e corpo, cabeça e tronco, mundo de fora e mundo de dentro, reconhecendo os limites de cada um desses mundos. A qualidade da maternagem é essencial no processo, carregar e ser apoio, borda que protege do precipício, alimento para a ilusão de onipotência do bebê e, depois, falhar com amor, para que a ilusão se desfaça de modo saudável, mas com a marca indelével do mágico que o bebê pensa ter sido. No psicótico (e no borderline, fronteira entre a neurose e a psicose) acontece uma falha para o desenvolvimento emocional, e uma das possibilidades causais é não ter havido um ambiente suficientemente bom (holding) para integrar sua identidade, para mitigar os danos de uma cisão e promover uma pessoa total. Dinâmicas familiares perturbadoras e disfuncionais podem gerar a degola psíquica.

 

Fazendo uma breve sinopse, Caminhando com os mortos conta uma história que se passa em um vilarejo (local de produção algodoeira e de cestaria de taboa), na qual crimes bárbaros vêm acontecendo. Nas primeiras páginas, já estamos diante da morte de uma filha, Celeste, queimada viva pela mãe Lourença. O crime fora incentivado pelas palavras do pastor de uma igreja neopentecostal que se instalou no lugarejo e que converteu grande parte da população não às práticas comunitárias e solidárias de Jesus Cristo, mas ao medo do Diabo. Há uma narradora tentando ordenar essa história, buscando suas origens, aquilo que desencadeou toda a série de tragédias locais que, sabidamente, Verunschk nos dá para que vejamos o universal: “Diferentemente das moscas, porém, ninguém consegue ter uma visão total que explique o que aconteceu”. Do parcial para o total, do vilarejo para um país, de uma casa em ruínas para trazer tudo que foi morto à vida, uma história de muita dor se ergue. Uma história também de denúncia e de esperança: “Se Deus é grande, o mato é maior.”

 

Do que é velho, passado, fantasmagórico e espectral, surgem esses mortos-vivos, e muito do que podemos pensar a respeito do papel da mulher em um patriarcado, em uma sociedade que dela tudo exige mas nada apoia, pode ser lido nesse romance de Micheliny Verunschk. Contudo, há ainda algo da ordem do sutil e do implícito que perambula suas páginas: o transtorno mental. Em especial, Lourença tem uma tendência à cisão, à despersonalização, ou seja, em mãos erradas, sem tratamento e com o agravamento de suas condições materiais e psíquicas Lourença pode ser uma bomba para os outros ou para si mesma: “Então não, não consegue ouvir direito, com clareza, seus ouvidos estão tapados, submersos, o zumbido na cabeça ocupando espaço demais, e então sente que ela, a cabeça, está solta(...)”. Noutro trecho: “Por um momento, a cabeça retorna para o lugar e ela volta a ter um corpo todo seu (...)”. A ideação suicida acompanha essa personagem todo tempo. 

 

O que podemos depreender da personagem Lourença (mas não só dela, pois quase todas as personagens passam por grandes traumas, por aquilo para o qual não se encontra qualquer simbolização, pois, maior que o sujeito, o atropela sem palavras) é que sua condição de infância, regida pela violência machista/misógina que repassa para sua filha Celeste, só pode encontrar o desfecho de mais violência, plena de continuidade, nunca de interrupção. E que diante de um trauma que lhe encheu de culpa e ódio (o destino de sua filha Quiterinha), Lourença jamais encontrou o apoio que pudesse levá-la a simbolizar e elaborar o evento traumático. 

 

É cada vez mais estudada a relação entre religião e transtornos mentais. Ainda que a religião seja um amparo em momentos críticos como luto, dependências químicas, depressão, ansiedade, perdas graves de modo geral, pois a fé tem um papel no alívio de transtornos psíquicos, não deve substituir tratamentos de saúde mental especializados, podendo mesmo agravar os problemas. É o que se vê acontecer com Lourença que, em seu momento de fragilidade extrema, encontra um  dos inúmeros líderes religiosos desonestos que infestam o país. Ainda que a história que Micheliny Verunschk nos conta não seja exatamente uma história sobre a loucura, ela o é também. A falta de condições financeiras para pagar os serviços de saúde mental, a falta de  uma rede pública de atendimento amplo, a falta de conhecimento sobre os transtornos mentais prejudicada pelos vários tabus que enevoam o tema, leva a pessoa transtornada a buscar na religião o acolhimento que não encontra em nenhum outro lugar. Porém, líderes religiosos não são – a priori – habilitados a resolver questões de saúde mental, nem mesmo parecem estar empenhados em resolvê-las encaminhando os fiéis corretamente. O que acontece em Caminhando com os mortos, a arte imitando a vida, é um grande oportunismo com relação ao drama de Lourença. A figura do Diabo, também do Deus megalomaníaco caem muito bem para psicóticos, borderlines, ideias paranoides, alucinações e delírios, pois se encaixa em simbolizações que querem ser feitas e que precisam de algo externo para nominar aquilo que está dentro, mas sem a percepção das fronteiras dentro/fora. Daí, a perfeição de uma metáfora neste romance, a santa degolada carregando a própria cabeça. 

 

Segundo a OMS, dados de 2022, o Brasil é o país mais depressivo da América Latina, sendo que nas Américas , perde apenas para os EUA. O Brasil também lidera os números de ansiedade. A relação transtorno mental/religiosidade passa pela oferta de esperança. Quando essa esperança é manipulada, como vemos em Caminhando com os mortos, um grande perigo se apresenta. O delirante não sabe mais reconhecer a realidade compartilhada por todos. Sua realidade delirante é a única que existe. Lourença, que vem de uma dinâmica familiar e social perturbadora e disfuncional é acolhida por uma instituição que continua dinâmicas perturbadoras e disfuncionais. Em nome de Deus, a mulher – sempre subjugada – matará a filha por não suportar dores aniquiladoras. Diante do sentimento de aniquilação, a mulher que não tem palavras para elaborar o trauma encontra a palavra que o pastor lhe empresta. Esta palavra é demônio, libertação do demônio, o demônio na pele do diferente, do que pensa e age diferente, tendo o texto bíblico como referência de padrão. Para Lourença é uma questão de sintoma, para o pastor é uma questão de dinheiro e poder. 

 

Desintegrada, Lourença nos mostrará toda a tragédia de sua história ao reduzir-se ao extremo vulnerável em uma delegacia, na frente de outro homem: o delegado. Aqui Micheliny Verunschk nos traz outro de seus temas recorrentes, a tortura praticada por policiais, agentes de poder, os resquícios jamais apagados da ditadura militar em nosso país. Em todo lugar em que Lourença esteve, foi repetida a falha ambiental. Quando se junta patriarcado e suas violências com condições materiais difíceis de sobrevivência, o mundo das mulheres se torna um mundo infernal e – em consequência – o inferno alcança as crianças. Li Caminhando com os mortos como um livro que relaciona religião e transtorno mental, religião e política, religião e economia, religião e poder de homens.

 

Com a capacidade de nos comunicar as cenas nos mínimos detalhes, pintando os cenários de forma a vermos até mesmo sua vegetação, dando um ritmo que amplifica a sinestesia do texto em um jogo caleidoscópio que monta a estrutura, Micheliny Verunschk mais uma vez nos entrega uma obra literária importante. Sua linguagem artística nos transporta para o que chamamos de “em carne viva”. A artista plástica Adriana Varejão tem uma obra exposta no Museu de Inhotim chamada Linda do Rosário. Nesta obra – também inspirada em uma tragédia – uma parede azulejada em ruínas, após um desabamento, mostra por dentro suas entranhas, sua carne sangrando. Caminhando com os mortos me remeteu a essa obra, nas metáforas que traz: “A casa trocará de pele como um lagarto, deixando à mostra músculos e gordura e tendões avermelhados sem reboco”. É assim, deixando à mostra as feridas de uma sociedade que erra feio, que Micheliny Verunschk vai desenhando um país degolado, capaz de toda catarse, mas incapaz de elaboração.

 

“Os ombros de Lourença estão caídos e os braços pesados sobre o corpo dão a impressão de que os ossos dos braços, pescoço, costelas vão todos se ajuntar sobre o colo, como se sob alguma força eles se tivessem desconjuntado e a pele e a musculatura desprendido, um tecido amontoado em refolhos, a cabeça pendurada e os cabelos em redemoinho, um caroço engelhado. A mulher, uma boneca de pano, mal-acabada, encardida, afundada na cadeira da delegacia, o estofado azul desbotado, a espuma do assento já fina pelo uso despontando nas bordas desgastadas. O ventilador ligado numa música monótona quebrada a cada retorno, da direita para a esquerda, da direita para a esquerda, e um estalido.

 

Não foi minha filha que eu matei, não, doutor. O que eu fiz foi outra coisa. Eu não matei. A menina vai se levantar. O senhor vai testemunhar esse milagre da salvação. No terceiro dia. O senhor vai ver, ela vai fazer a sua páscoa e vai voltar pela graça de Deus. Matar Letinha? Matei, não, senhor. Jamais. O verdadeiro crente expulsa o espírito maligno, o senhor sabe, eu sei que o senhor sabe. O senhor já viu o espírito maligno? Já percebeu com ele age? É esperto, manhoso, ele. Anda pelo mundo espalhando malícia e falsidade. É feio. É torto. É o pai de toda mentira. Mas Deus não quer o pecado.”

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Caminhando com os mortos

Micheliny Verunschk

Romance

2023

ed. Cia das Letras

 

 


quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Genealogia das mulas, de Marília Kosby



Por Adriane Garcia


Uma poesia de impacto. Genealogia das mulas, de Marília Kosby, livro que compõe a coleção Biblioteca Madrinha Lua, da editora Peirópolis, já começa nocauteando pelas epígrafes. Os textos utilizados são de Receita para fazer mulas, do folclorista Luiz Carlos Barbosa Lessa. Uma grave violência ali se anuncia, violência naturalizada às custas de ser possível se obter o animal híbrido, mestiço, o muar, a mula. Um sadismo lancinante. No rastro da epígrafe chegam-nos os versos. O que leremos nos dirá sobre o poder e seus modos de se perpetuar. Diversas analogias, metáforas e metonímias serão criadas a partir da relação entre origem e violência, poder e subalternidade, opressão e resistência. A denúncia colocada por Marília Kosby parte do modo cruel de se tratar animais, plantas, mulheres, crianças e todos os grupos humanos que se estabelecem a partir da diferença. É o patriarcado o centro desse poder tentacular, que hoje se confunde com o capitalismo, mas que já se confundiu com outros sistemas econômicos no decorrer da história, gerando a população dos vulneráveis. A matança registrada nos versos da poeta é resultado de uma cultura patriarcal machista, misógina, racista, homofóbica, capacitista, bélica, especista e infanticida.

 No dicionário Aurélio, genealogia é a “lista ou diagrama com os nomes dos antepassados de um indivíduo e a indicação dos casamentos e das sucessivas gerações que o ligam a determinado ancestral”. É interessante que a poeta escolha para sua genealogia um animal estéril, cuja árvore genealógica só pode ir para trás. A mula é o resultado do cruzamento forçado e cheio de logro entre o jumento e a égua. Um ser do passado que não pode gerar-se no futuro. Ao mesmo tempo, antiteticamente, a poeta nos dá uma muar demiurga, um ser de cuja excrescência o mundo procede. E aqui volta sua ideia de retorno marcando a raça: a muar demiurga sabe que “de rompante se apagou o sol/ nasceu assim décadas de/ quase séculos atrás”.

Riquíssimo em metáforas, Genealogia das mulas retrata a população brasileira, formada da mestiçagem em um processo histórico de estupros, sequestros, separações e casamentos forçados. Uma sociedade que só podia resultar em violência a partir de seu cerne formador cujo motor é a continuidade e não o rompimento. A voz lírica pergunta: “a que ponto outro chegaríamos?” Assim, lemos um poema que fala do episódio ocorrido em 2021, do incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, facínora tratado como herói (em um país onde até o torturador Ustra o é). O atiçamento do fogo à estátua resultou na prisão dos trabalhadores responsáveis pelo protesto, sob a argumentação hipócrita de defesa do patrimônio público, quando sabemos que nosso patrimônio público rui em cada cidade que se passe, sem qualquer preocupação do poder público de modo geral. Em seus versos, Marília Kosby reflete: “as chamas são rastros/das mulas/desmioladas todas// as mulas sem cabeça”. No enfrentamento do poder, as mulas que reagem só podem ser mulas ousadas, “desmioladas”, que se arriscam diante do mais forte, sabendo que é luta perdida. 

 Também chama a atenção o quanto os poemas de Genealogia das mulas registra a escravidão como processo que deixa marcas profundas na sociedade, o que é confirmado por todos os efeitos do racismo e da violência policial, pelo genocídio da juventude negra que alcança números de guerra e os casos reiterados de assassinatos de crianças negras no Brasil, atingidas por balas “perdidas” ou “equívocos” de abordagens policiais, deixando claro que no Brasil existe uma infância branca e uma menoridade negra. O tratamento dos povos originários segue na mesma esteira racista e espoliadora. Quanto ao mundo do trabalho, os resquícios escravocratas podem ser observados  na vida difícil dos trabalhadores e trabalhadoras, na exploração de praticamente todo o tempo de vida das pessoas, para muitos o descanso sendo apenas um prazo para chegar em casa, dormir poucas horas, e ir novamente para o trabalho; tudo isso aliado à péssima gestão do transporte público nas cidades, mais as condições precárias de moradia, alimentação, baixos salários e todo tipo de assédio suportado de maneira estoica. A voz lírica nos comunica um sentimento de ter partido de si um barco malungo, vizinho de outra embarcação, expondo a ferida da identidade com os seus, marcada pelo sofrimento e nos remetendo àqueles navios negreiros, insalubres e mortíferos, nos quais se vinha sem malas, sem pertences, para aportar sem nome. Marília Kosby nos revela as marcas da escravidão todas presentes, inclusive como fantasmas da violência, que ainda vivem e atuam.

 Grande parte dos poemas faz referência ao período tenebroso da história brasileira, o do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, somando-se ao grande azar de sob seu governo boçal e genocida acontecer uma pandemia, ocasionando milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas se o presidente não estivesse exatamente do lado da morte: “a vacina que não vem”, o abandono e a desesperança. Comparecem nos versos de Marília Kosby a luta entre Eros e Tanatos. A fome, recorrente em alguns poemas, adensa a tragédia que atinge os pobres. A poeta é incisiva nos falando de um pão sem circo: “o pão neste poema é meramente figurativo”. E por mais que a situação leve os “muares” a uma paralisia, a poeta também convoca à participação política, um incômodo para os poderosos: “eu quis ir pra a rua/ ser um cisco /no olho da rua”. Uma vontade de vingança se abriga no coração muar: “...eu não/faria de algo/dão o chão de dor/ mir algoz”. 

Utilizando imagens inusitadas e fortes, como as figueiras, árvores simbólicas (as mais antigas as que tudo veem), sorvendo o sangue derramado sobre a terra, a poeta conta do poder de vida e morte do homem sobre a mulher e do poder da memória viva: “mandou enterrar a filha/ ainda viva sob a soleira da porta”. Aqui a ambiguidade alcançada pelo posicionamento palavra/verso, pois tanto dá-se a entender que o pai enterrou a filha viva sob a soleira da porta, quanto ela conservou-se viva em memória. A constatação da voz lírica é a de que o sentido da história tem sido de repetição: “a testosterona de ciro pulverizada /sobre o sertão da babilônia” vai até “o mitômano dando um giro de moto/pelo planalto”. Desse poder patriarcal a heteronormatividade massacra a população LGBTQIA+. Nos versos de Marília Kosby, a mulher lésbica resistirá com seu amor, ainda que haja uma desesperança por o humano obedecer a uma vocação de pensar “existir/ solução para os males/ do mundo que julgamos/ conhecer” e não conhecemos. Nisso reside o preconceito: não conhecer. Nossas soluções muitas vezes baseiam-se em nossa ignorância.

Se os muares carregam o estigma da linhagem obtida no abuso, são também eles/elas que detém a força e o conhecimento da sobrevivência nas piores condições. A voz lírica nos diz de um conhecimento ligado à natureza e suas forças elementais. O conhecimento do tempo como um relógio de sol, tempo natural que conhece as horas dos frutos. Aqui, a visão dos povos originários de que tudo está ligado, os elementos da natureza não se sobrepõem, mas se completam, simbioticamente. A humanidade não é algo apartado, como erroneamente se pensa e se destrói o planeta, nem mesmo apartam-se os tempos passado, presente e futuro. A poeta nos traz a lembrança da ancestralidade: “dos povos aborígenes/ tamborilando no cérebro/ tumoroso de minha avó”, resistindo a tanta tentativa de apagamento.

Marília Kosby, ao utilizar o vocábulo e o animal mula como centro de gravitação de seus poemas, lembra-nos a palavra de procedência pejorativa que por muito tempo classificou grande parte da população brasileira: as mulatas e os mulatos. Porém, encontra nesta origem não mais o pejorativo, mas a força dessa origem no que ela pode ter de consciência da violência histórica. Suas ferramentas para esse trabalho são múltiplas, de grande domínio poético. A poeta usa metalinguagem, fragmentação da forma quando o tema trata de fragmentação, deslocamentos quando o tema leva à voz lírica insone, deslocada, gerando trocadilhos deliciosos como: “deixava-me as tulipas enlatadas as pupilas digo/dilatadas”. Em sua estante, que comporta Szymborska ao lado de Audre Lorde, surgem muitos diálogos com outras poetas, como por exemplo este diálogo com Adélia Prado, num tom de era só isso que me faltava, já não fosse a carga da mulher tão pesada: “Muda já fui/ surda já fui/ cega/ agora, desdobrável…”. Em outro trecho de deslocamento interessantíssimo, a poeta ao contar de uma ave, provavelmente exuberante, troca o adjetivo de lugar: “era uma fome exuberante”. No bonito poema amoroso Duas jiboias, a voz lírica ao falar de um amor recorda um outro (invasão de lembranças), e quem lê não sabe mais qual amor viveu a história relembrada. Marília Kosby faz excelente arranjo posicional dos versos, sua partição para o melhor aproveitamento de ambiguidades: “aborto, nós não amamos/ necessário é, mas não conheço quem ame/ corpo algum” e é constante o uso de paradoxos muito bem elaborados com síntese notável. Aqui, por exemplo, no poema Cólera:  “a água pode acabar/ com tudo”. Nas pouquíssimas rimas que a poeta usa, o faz de maneira exemplar: o efeito de humor é conseguido com palavras de idiomas diferentes e de forma inusitada, trazendo na referência o poeta satírico romano (lembrando que sátira tem na sua origem “saciado”): “e a gente doente e com fome/ora, quem dera fosse um clown/ vivêssemos a sátira do juvenal”. Não falta ainda a ironia como arma linguística e o uso do particular para o universal: “já me quebrei toda” até “cacos de américa do sul pra cá/flancos de África bem pra lá”. 

 Genealogia das mulas leva-nos a perceber a onipresença da crueldade.  Sem condescendência consigo mesma, a voz lírica reconhece que sua educação com o dominador é um sintoma de burrice, flagra-se com inveja dos bichos e não dessa civilização “furreca” que nos sai cara demais.  Chama-nos a perceber nosso cio, do qual querem nos distrair. Convida-nos a deixarmos de ser míopes, reaprender a ver de longe, largar um pouco as telas, ver o céu, a copa das árvores, cultivar o amor, o acolhimento, ter refúgio nas tempestades: “te cuida que as árvores tombam/ me espera com mate?” É um livro bonito para ter, ler, e ficar relendo. 

 

Vocês que pensam

que a Terra está cheia demais

porque essa gente preta e pobre

não para de se reproduzir

vocês que sonham 

ardentemente com a volta

daquele tempo quando

 

oligofrênicos

parem de matá-los

cessem esse extermínio

essa sangria frigorífica

esse banquete de moscas

 

onde um vocês matam,

vis escrotos ignóbeis, 

outras três nascem.

srs. pulhas, é uma lei

da natureza onde se ora, onde se chora

com quem se come

 

É uma lei da natureza, canalhas!

Que encontra pusilânimes! pulso

onde vocês, abjetos, apostam na morte!

 

***

Já me quebrei toda

os dois braços de uma vez

e a cara por consequência

as mãos fraturadas empurrando o chão em vão

quebrei a cara

dos colegas e os cascos no chão

pedrento de minas

me esfolei no ouro toda

trago quebrado um pulmão

 

o sangue um oceano

rasgando a pangeia

 

deslumbre de horrores

qual não é o alçapão de maravilhas

ampliou-se o mundo

cacos de américa do sul pra cá

flancos de áfrica bem pra lá

 

ampliou-se o mundo

multiplicaram-se os precipícios

e os obstáculos

à revelia nós

nunca mais paramos 

de refazer aquele continente só

sob a sola de nossos pés

os cascos duros de mulas sobre


*** 

Genealogia das mulas

Marília Kosby

Poesia

Coleção Biblioteca Madrinha Lua

(curadoria de Ana Elisa Ribeiro)

Ed. Peirópolis

2023

 


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

COISAS DIFÍCEIS DE RESSUSCITAR, DE JULIANA GARBAYO

 



 Por Adriane Garcia

 

Grata surpresa foi ter em mãos Coisas difíceis de ressuscitar, de Juliana Garbayo, livro com o qual a autora ganhou o Prêmio Digital da Biblioteca do Paraná, em 2021. A coletânea publicada pela Caos e Letras é composta por vinte contos. Primeiro livro da autora, nele já podemos concluir que se trata de uma excelente contista. 

 

Suas personagens e situações são diversas, muitas delas inusitadas, sendo a maioria narrada em primeira pessoa, o que nos aproxima bastante dos seus protagonistas. Juliana Garbayo narra a vida nas suas nuances profundas, a vida como ela é. Flagra as pessoas como elas são, nas intimidades mais recônditas de seus pensamentos e pulsões. Em comum, os contos trazem momentos de trauma ou de suas consequências atuantes, em muitos deles destacam-se a questão da passagem do tempo e da consequente deterioração das relações, principalmente as de casamento. No centro da coletânea, o luto, por vezes a melancolia, a dor das perdas. 

 

Coisas difíceis de ressuscitar é um livro que lemos com o “coração na mão”. A sensação de estar em algum lugar conhecido, pois todos já perdemos algo ou alguém, faz a leitura ser conduzida por muita empatia. É assim que entramos em um quarto de hospital para visitar um rapaz que tem seu pé amputado enquanto seu amor de infância ecoa. Ao mesmo tempo, a autora nos faz perceber as relações que nos rodeiam quando estamos em extrema vulnerabilidade. Para além dos temas, há uma eficácia notável em saber contar literariamente. Juliana Garbayo oferece frases certeiras que aumentam a verossimilhança e nos dão um susto, por constituírem detalhes psicológicos em meio à narração dos fatos; detalhes estes que só poderiam mesmo saber aquele que passa por tal dor: “Glorinha se ofereceu pra carregar a sacola com minha escova de dentes, meu pente e o pé direito do meu tênis, que eu não sabia se devia jogar fora ou não.”

 

Habitadas por gente de carne e osso, as narrativas de Garbayo tratam de alcoolismo, recaídas, rejeição infantil, separações, depressão, vergonha, doença. Encontramos nelas mães cruéis, transtornadas, que competem com as filhas; filhos adolescentes que têm que tomar as rédeas da casa, perda da estrutura familiar e a dura constatação de que a vida tem que continuar sob novas condições. Um fio de tristeza perpassa situações de desamor, a ausência de um pai morto, o terror da anorexia, a solidão, a perda da liberdade em casamentos cuja divisão de tarefas é injusta e desigual, a perda da fantasia. Há um tom de desfazimento que nos diz sobre um mundo antes conhecido que não voltará jamais, a perda de objetos que antes faziam sentido – que davam um sentido à vida – trazendo na sua falta o vazio, a desestruturação emocional e financeira. 

 

Juliana Garbayo oferece uma galeria de coisas que podemos perder, entre elas, notável, aparece nosso convívio amoroso com os animais, seja o coveiro-jardineiro que adotou um bode, seja o homem que chora diante da dor da morte de seu cavalo, a mulher que ama uma porca ou a outra que empalha um cão. Até mesmo um peixinho nos comove. Há também, como no conto O antiquário da Madame Bernard, a perda do glamour, da juventude, a chegada da velhice e as perdas menores, quase não notadas, como um adeus que deixamos de dar a um amigo e simplesmente seguimos em frente. Neste sentido, brilhante a escolha de um antiquário e um brechó como significantes de uma vida que vai perdendo viço: “Quando eu descia do ônibus e pisava aquelas calçadas de granito e pedra portuguesa, tentava imaginar o glamour das épocas passadas, mas só via poças de mijo, guimbas de cigarro, mendigos pedindo esmola e baratas passeando de um lado para o outro. Era irônica a semelhança entre o que o tempo tinha feito com aquela rua e com a Madame Bernard.”

 

Ainda que as histórias sejam tristes, há um humor delicioso, bem medido, aqui e ali na coletânea: “Acho que a Justine confiava demais nos clientes, talvez não acreditasse que alguém roubaria uma grande dama do teatro como ela, mas eu, que já tinha levado pra casa dois dos seus anéis (sem falar numa presilha de cabelo cheia de pérolas falsas e strass), era mais cética.” No seu modo de contar, que encontra diferentes volumes tonais (inclusive formal, como em contos que utilizam uma espécie de associação livre na cabeça das personagens), o que deixa a leitura livre de qualquer cansaço, Garbayo narra coisas que acontecem, gente como a gente que não dá conta de ser “correto” o tempo todo, que deixa as relações sem respostas, que deseja vingança contra os algozes, mas que sofre quando esses amados algozes sofrem. Gente que tem inveja. Gente que perde a sanidade e que passa a viver em uma realidade apartada da maioria. A autora faz isso com uma competência enorme de captar os sentimentos e transmiti-los.

 

Coisas difíceis de ressuscitar é um livro que mantém suas alta qualidade e capacidade de interesse na leitura do primeiro ao último conto. Se as coisas são difíceis de ressuscitar, isso nos leva direto à ideia de morte. Na verdade, um eufemismo – pois precisamos de eufemismos para suportar o real – diante das coisas impossíveis de ressuscitar. É o que cada personagem de Juliana Garbayo vai descobrindo, uns com mais, outros com menos chance de superação. Como excelente contista que é, Juliana Garbayo não julga seus personagens, ela os compreende. E nós também podemos compreender melhor as perdas – e a dor – de todos nós quando passamos um tempo com os habitantes deste livro. 

 

Minhas amigas me estranham por ter empalhado o cão. Imagina se soubessem que me correspondo com um preso violento. Só contei à Jane. Ela se ofereceu pra doar livros, mas o presídio onde ele está fica longe demais. Melhor assim. Jane é muito engraçada. Diz que não acredita em Deus, mas é a pessoa mais santa que eu conheço. Já eu escrevo cartas pra um homem preso porque quero falar de mim mesma. Depois posto foto dos envelopes selados e escrevo Lembrai-vos dos presos como se estivésseis presos com eles. Rende muitas curtidas. Tirei da carta aos Hebreus. Jane é ateia, mas da forma que eu vejo é mais crente do que eu, a diferença é que o deus dela se chama Acaso. Ela diz que é por Acaso que as árvores parecem pulmões; as nozes, cérebros; as frutas, vaginas; os rios, veias. Só pode existir vida no nosso planeta entre cento e sessenta bilhões de outros porque a vida nasceu por Acaso. Uma partícula nadava na sopa molecular e por Acaso começou a se replicar, por acaso o universo explodiu e se expandiu, por Acaso os brotos de samambaia obedecem à mesma proporção que as conchas dos náutilus, por Acaso um homem nasce príncipe na Noruega e outro mendigo em Chade. Quando bebemos vinho juntas, ergo a taça e digo: ao deus mais poderoso de todos, o Acaso, e rio, mas Jane fica passada. Pra ela, o meu Deus não faz sentido e deve ser louco, nada que ele faz tem lógica, criou uma fruta que não era pra comer, deixou seu único filho ser morto e o mundo continuou igual, escolheu o povo hebreu sem qualquer explicação. Eu escrevo para um homicida a mil e trezentos quilômetros de distância e recuso a chamada quando ele liga a cobrar. Ele pensa que sou uma boa mulher. Em sua última carta me pediu pra rezar por ele. Como se minha oração tivesse peso diferente. Uma vez perguntou se aceitaria encontrá-lo, caso saísse na condicional. O bom de conversar por cartas é que você só responde o que quer.

(p. 107/108)







Coisas difíceis de ressuscitar

Juliana Garbayo

Contos

Ed. Caos & Letras

2023