quarta-feira, 17 de março de 2021

O sentido e o fim, de Mike Sullivan

 



Por Adriane Garcia

 

Diz Montaigne que “a meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira?” Cegueira que parece querer ser evitada, no livro O sentido e o fim, de Mike Sullivan, que escreve onze contos, todos eles com histórias que são atravessadas diretamente pela morte ou por sua iminência.

 

A morte coloca o ser humano diante do questionamento sobre o sentido da vida. Na abertura do livro, é ela mesma quem fala, é sua voz soberana que se apresenta: “Não me encontrarás em cemitérios. Para que me servirá um cadáver? Habito quartos e corredores superlotados dos hospitais, salas de quimioterapia, campos de guerra, conflitos civis, ambulâncias, acidentes em rodovias, atentados terroristas, armas nucleares, tempestades, terremotos, hemorragia, quedas, incêndios, afogamentos, desequilíbrio, surtos psicóticos. Passeio ao lado da fome, nos quatro cantos do planeta. Sou também a salvação dos que têm dores e pressa por alívio imediato.

 

Se seguimos por Montaigne, que ao citar Cícero nos ensina que “filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte”, percebemos que já no primeiro conto de O sentido e o fim, intitulado Dentro de mim há um tempo se esgotando, não há qualquer garantia a respeito. O protagonista é um especialista em pacientes terminais, considerado o maior estudioso de Tanatologia do país, uma vida inteira dedicada a compreender a morte – dos outros – e que agora se vê, ele mesmo, diante do que não compreende: “Pensar em minha própria morte é absurdo demais”. Mike Sullivan trabalha com o paradoxo: escreve sobre a morte, no exercício de pensar sobre ela e, ao mesmo tempo, seu próprio personagem mostra o quanto isso pode ser inútil.

 

Em alguns dos contos é a situação limite da morte que se apresenta, noutros é a sua proximidade ou mesmo aquela morte em vida que acomete tantos. Em Eu não sou louca a mãe acumuladora, provavelmente tomada em algum momento pela síndrome de Diógenes, relata uma visita do filho e a impossibilidade do encontro, nas diferenças de mundo entre eles. Estamos no terceiro conto e, até aqui, o livro nos fala de um filho abusado sexualmente pelo pai, um filho que quer conduzir a mãe a uma clínica de tratamento e um filho abandonado; um bebê entregue a uma instituição, criado em um convento e que, misteriosamente não envelhece, o que desperta o interesse da ciência, ciosa por entender os caminhos de uma delirante imortalidade. “Todos os dias, Tereza desejava a morte do filho. Mas, por amor ou meramente por vingança, ele não morria nunca. Parecia eterno.” Esse é o conto A um passo da imortalidade, em que os ditames sociais colaboram para o abandono infantil.

 

Em O fogo da salvação, a morte era encaminhada para chegar como vingança contra Iolanda, porém o conto deixa claro que ninguém conduz a morte, ela é quem conduz a si mesma. E aqui, novamente é a figura do filho que se mostra. Um filho adotivo, utilizado pela figura materna para exploração sexual. Em Justiça, o filho não existe, foi abortado. A mãe, profissional que vai assumir uma Comissão de Direitos Humanos, questiona-se com relação ao aborto a que se submeteu e à sua participação na punição dos homens que a estupraram. Já em Seus olhos de azeviche, o filho relata sua experiência de alívio com a morte do pai, a dificuldade de passar tanto tempo com um doente terminal: “Mas ninguém é capaz de suportar por tanto tempo a áurea de decadência imposta pela aparente presença da morte. Amigos e familiares acabam se afastando, perdendo-se em promessas vãs de “pode contar comigo”. Ao mesmo tempo, esse filho agora luta pela adoção de uma filha e não guarda mais o grande segredo que escondeu do pai ao escolher um carrinho quando seu desejo era a lousa mágica rosa.

 

No conto Distantes, um conto curto preenchido por longo silêncio que diz de uma vida inteira, o filho, que amava a princesa Diana, sofre com sua morte e busca materializar a distância que sempre existiu entre ele e sua família: “Meu irmão idolatrava Romário e Bebeto. Falava abertamente sobre futebol no jantar. Eu, calado, sentado à mesa, engolia a comida junto com meus segredos”. Em seguida, em Vivo ou morto um paciente com paralisia corporal e respiratória só vive por meio de aparelhos. A hipótese levantada pelo médico é a de Síndrome do Encarceramento ou Esclerose Lateral Amiotrófica e a discussão ética é pelo desligamento ou não dos recursos artificiais, se o paciente está vivo ou morto, mas o apego do médico se deve a questões muito mais pessoais e profundas do que profissionais. No conto O enterro dos ossos, um senhor muito idoso, que vive em um asilo, cuja família e amigos já morreram todos, vê-se inusitadamente solicitado a comparecer ao cemitério que será destruído a fim de transferir os ossos de seus familiares para outro lugar. Em Garotos I, a partir do anúncio de que o hamster de Diogo morreu, coloca-se o desejo do narrador em consolar o amor longínquo, amor que sempre se encontra impossibilitado e substituído por outro tão impossível quanto: “Um amor impossível que me salva de outro amor impossível” e em Garotos II, a visita do narrador à casa do pai do amigo/amor morto compõe o retrato da incompreensão e do preconceito separando duas pessoas por suas diferenças de orientação sexual. Na atmosfera desse conto, a pequena trégua da morte, os personagens estão momentaneamente unidos pela mesma tragédia.

 

Assim como o livro traz a introdução ditada pela morte, apresenta também uma espécie de posfácio ditado pela vida. O luto é feito, “um dia você acorda e não tem mais vontade de morrer para esquecer”. Talvez Montaigne estivesse mesmo certo. Talvez, inversamente, o percurso desenhado até a última página, pensando sobre o morrer, tenha ensinado a viver. Chama a atenção a recorrência da figura filial em quase todos os contos, do filicídio como caracterizado pelo pediatra e psicanalista Arnaldo Rascovsky: “o maltrato corporal e afetivo dos filhos mediante o abandono, a desvalorização, a superproteção, o abuso sexual, a mutilação e o assassinato, como acontece nas guerras de uma forma aceita socialmente”. Diferentemente da “fama” do parricídio, o filicídio contém um tabu, continua escondido nas camadas mais obscuras da sociedade e principalmente na “sagrada” família. Está presente desde as mitologias antigas, como Chronos engolindo seus filhos, Abraão indo matar Isaque, ou mesmo Laio, o pai de Édipo, tentando matá-lo de forma cruel quando criança. Filicídio dos filicídios: Jeová oferecendo Jesus ao holocausto.  O livro de Mike Sullivan também está dizendo, contra os conservadores que se beneficiam do silêncio (afinal, não raro, são os que perpetuam a violência infantil, principalmente sexual): prestem atenção ao que fazem com as crianças dentro das suas próprias casas. Em comum, na maior parte dos contos de O sentido e o fim, há também a questão da homossexualidade e, com ela, o autor nos transmite a dor e a solidão que a sociedade causa nessas pessoas, impondo a heterossexualidade como padrão normativo, por meio de comportamentos homofóbicos que muito mais revelam a fragilidade heterossexual, diante da necessidade de tamanha afirmação.

 

O sentido e o fim nos faz refletir, leva-nos ao encontro do outro, aproxima-nos de personagens que falam de vida e de morte, rodeados que estamos por ela, ainda mais a partir do ano de publicação do livro, 2020, quando a pandemia do Coronavírus assola o mundo e particularmente o Brasil, com seu governo aliado da mortandade. Claro, o fim é a morte, mas o sentido – Mike Sullivan o afirma no desejo de seus personagens – é o amor.

 

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O sentido e o fim

Mike Sullivan

Contos

Ed. Reformatório

2020

domingo, 7 de março de 2021

O coração pensa constantemente, de Rosângela Vieira Rocha

 





 Por Adriane Garcia

                     

Sim, o coração pensa constantemente. Alguns pensamentos não nos assustam, pois estão em conformidade com a moral, com a cultura, com os ensinamentos de nossos pais, com aquilo que nos mandam pensar. Porém, há outros tipos de pensamentos: “esses pensamentos parasitas são mais comuns do que parecem, mas ninguém fala sobre eles, por medo da crítica alheia”, alerta a escritora Rosângela Vieira Rocha.

 

De fundo autobiográfico, escrito durante a pandemia do Covid 19 e a partir da morte de uma irmã-modelo, a autora nos conta os pensamentos/sentimentos de Luísa, em seu processo de luto por Rubi. A narrativa, feita em primeira pessoa, permeada por lembranças em comum, movimenta-se de forma não linear, alcança o avanço terminal da doença de Rubi, reflete para organizar o vivido e trabalha a desmistificação necessária: “Têm de se esforçar bastante para desmistificar as mais velhas e tirá-las do pedestal em que foram postas durante a infância, muitas vezes influenciadas pelos pais. Fazer com que uma irmã mais velha se transforme para nós no que realmente é – irmã, independentemente do ano de seu nascimento – pode ser uma tarefa para a vida inteira.”

 

Quando nosso objeto fraterno morre, é preciso que não nos tornemos “sobremorrentes”, na expressão usada por Luis Kancyper em sua obra O complexo fraterno. O sobrevivente seria aquele que vivencia o luto e consegue, ao fim, direcionar a libido para outro objeto de amor, “vida que segue”. Já o “sobremorrente” faz do morto uma aparição fantasmática, cujo porão assombrado se situa dentro dele, passando a ser a sua principal ocupação, retroalimentando-se vitimário e vítima e interferindo na realidade ao seu redor.

 

Para não ser uma “sobremorrente”, Luísa rememora, repete e reflete. Revive e ressignifica. Engana-se quem pensa que a narrativa tem sua fagulha de ignição no capítulo I, quando sentindo o cheiro da bacalhoada (prato que Rubi adorava), Luísa sente náuseas e nós, lendo, começamos a partilhar do mundo fraternal que ela descreve. A fagulha de ignição de O coração pensa constantemente é o capítulo XLVIII em que os sentimentos de incompreensão, ciúme, inveja e ressentimento saltam à cena inequívocos, trazidos por um mensageiro, o filho da irmã morta, o sobrinho querido que quis ferir a tia, talvez movido por seu próprio ciúme, mas alegando lealdade. A narração de Luísa é o esforço de rechaçar, compreender e responder as acusações que vê como absolutamente injustas, quando tudo que fazia era exercer seu amor.

 

É desta complexidade das relações fraternais que o romance de Rosângela Vieira Rocha fala. Com passagens ternas, ambientação de cidade do interior na maioria das cenas, narração de acontecimentos simples e cotidianos de uma família trabalhadora e pobre, ascendendo para a classe média, ela tece a história de uma grande amizade. De uma relação que se deu na aliança de duas irmãs, facilitando o encontro com o mundo, o enfrentamento da vida, da opressão (familiar e social) que sempre há. A comum rivalidade entre irmãos, que tanto pode beneficiar quanto arruinar o sujeito, cumpriu na história de Luisa e Rubi a etimologia da palavra, em latim, “rivalis”: ter direito à mesma corrente de água.

 

Ao lado do complexo de Narciso e do complexo de Édipo, participa o complexo fraterno, assim definido por Luis Kancyper: “O complexo fraterno é um conjunto organizado de desejos hostis e amorosos que a criança experimenta com relação aos seus irmãos.” O complexo fraterno pode tanto estruturar quanto adoecer o sujeito. O irmão é o primeiro intruso, o diferente de nós, ao mesmo tempo que é o nosso mais semelhante, aparece como nossa réplica. Força o nosso treino quanto à alteridade, toca em feridas narcísicas, no lugar delicado que pensamos ocupar, como protagonistas, na vida de nossos pais. Faz com que sintamos ciúme (padrão de posse) e inveja (padrão de não posse), pode nos aprisionar no ressentimento e no remorso. O fraterno pode ser nosso aliado na luta geracional, para que Chronos, o pai terrível, não nos devore. Entre irmãs/irmãos pode surgir o amor que se chama amizade. Seja como for, não se fica imune à relação com um irmão/uma irmã, feita de concorrência, amor e ódio.

 

A dor de Luísa é notada por todo o romance, caracterizada pela falta, pela saudade e pelo desejo de mudar os eventos: “Quero que receba de novo o sopro de vida com que foi concebida”. Ao mesmo tempo, o esforço de racionalização não deixa a narradora sucumbir a essa dor, tampouco a narrativa cair no sentimentalismo. Luísa admite que apesar de cada luto ser único, não é o primeiro que ela vive, “se habitua” e, assim, vai mostrando o quanto de cumplicidade e intimidade existiam nessa relação em que a irmã mais velha era vista como a gema mais rara e bonita (um rubi) pela irmã mais nova, tomada de admiração. Escrever a memória é antecipar-se à desmemória, Luísa materializa na escrita aquilo que, antes, quer salvar para si, contra o tempo: “Preciso escrever – pois corro o risco de me desintegrar, se não o fizer – sobre o que sempre me fascinou em você, a diversidade dos seus talentos, o alcance da sua inteligência, a sua singularidade, a sua irreverência.”

 

É interessante notar que o movimento de Luísa é o de agradar a irmã, mostrar a ela o quanto a ama, por exemplo, quando preparou a festa de aniversário de 20 anos de Rubi ou quando decorou a igreja para o seu casamento, isso tudo driblando condições materiais escassas. Ao mesmo tempo, fica evidente na narrativa, a consciência da narradora sobre ser ela própria a preferida de seu pai, a despeito de ser Rubi quem o auxiliava no trabalho e na manutenção financeira da casa. É interessante que isso seja afirmado, quando se sabe que a preferência dos pais é motivo de grande disputa no meio fraterno e um motor de consequências psíquicas. Na cena em que, após a morte da irmã, vai buscar alguns objetos que foram dela e que poderiam lhe servir, Luísa vê apenas roupas cômodas, confortáveis e suspeita: “Imaginava que possuísse coisas bonitas, xales, casacos, cachecóis”. Ou seja, a imagem prevalecente da irmã, mesmo durante os anos de adoecimento, ainda era o da moça saudável que usava roupas elegantes.

 

Em alguns momentos a narradora/protagonista fala diretamente à irmã, numa espécie de carta que só pode ser respondida pelo passado. Há um momento em que a narradora diz que Rubi foi sua mãe. O movimento de cuidar e ser cuidada transitava: em várias fases da vida revezaram-se nesse papel. O fato de parecer que era Luísa quem mais cuidava de Rubi pode estar ligado ao fato de que é Luísa quem narra e, portanto, privilegia seu próprio papel na narração. É perceptível que enquanto a narradora crescia na literatura, a irmã se ressentia por não alcançar um lugar maior na pintura; de repente, não tinham mais o direito de beber a água do mesmo rio. Entre comemorações pelo sucesso alheio, os sentimentos de fracasso pessoal (ainda que fantasiosos) eram ativados em Rubi. E o fracasso de um irmão pode ativar a culpa pelo sucesso no outro.

 

O modo como Rubi acolhia Luísa se transforma com a sua doença pulmonar. Rubi passa a ter que usar tubos de oxigênio, limitando sua mobilidade, passando grandes períodos em hospitais. Com isso, Luísa nos relata como a enfermidade trouxe para a irmã desconfortos e dores físicas, além de dores existenciais e consequente mudança de humor. Pois se já é difícil fazer o luto por uma perda objetada no outro, mais terrível se torna estar no luto de sua própria perda, a perda de si mesmo, o ego que sempre pensamos indestrutível, na antecipação da própria morte. Tudo isso desperta raiva manifesta em Rubi, assim como o sentimento de impotência em Luísa, que não consegue com suas visitas, suas conversas, suas ofertas e sua saúde levar alegria ou sentido para a irmã. Rubi inicia o processo de verbalizar comparações de sua vida com as vidas de outras pessoas, que supõe terem sido mais aproveitadas que a própria.

 

Voltemos ao capítulo XLVIII, ao jovem Fabrício que faz a revelação que não podíamos prever em O coração pensa constantemente. Fabrício é o filho adotivo de Rubi (assim como Luísa já se sentiu em relação à irmã), cuja adoção causou, à época, grande ciúme em Luísa, pois a adoção é tida como um grande ato. Fica patente a rivalidade quando a narradora registra que dentre os filhos da irmã, o adotivo é o seu sobrinho com quem tem mais intimidade (ou seja, ela também é capaz de adotar). É interessantíssimo que justamente esse sobrinho disputado seja aquele que irá tentar atingir os sentimentos narcísicos de Luísa, de forma impiedosa, com uma informação que podia guardar para si – se é que o fato que ele traz se deu exatamente da forma como ele conta – já que Fabrício também está envolvido por uma história pessoal e por percepções que não conhecemos, também está se sentindo impotente diante da morte da mãe. Parece que o filho se sente imbuído de ressentimentos que toma como herança. Parece um misterioso acerto de contas.

 

O coração pensa constantemente é um romance sensível, bonito, complexo, simples, que utiliza a palavra para fazer um balanço diante da morte de um ser amado. Não há esperanças teológicas, metafísicas, crenças além-túmulo, fugas infantis. Há o vivido-revivido, a imortalidade do registro, a homenagem do amor dito e redito. Também não há a ingenuidade e a hipocrisia do senso-comum, que negam que o coração possa pensar de modo “negativo”. O coração é o primogênito de nossos órgãos, primeiro a se formar no útero e munido de sua própria rede de milhares de neurônios. O coração pensa, constantemente. Pela janela, no auge da doença, depois de tossir muito, Rubi olha e pronuncia sobre a vida: “Então era isso? Só isso?

 

Ao fim do balanço, ainda que as relações fraternais variem caso a caso, Rosângela Vieira Rocha/Luísa conclui, a partir de sua experiência, que se tudo está compreendido, tudo está perdoado: “Só os que têm irmãs podem entender a essência, o núcleo, a delicadeza e a beleza desse vínculo. Que não é imune a conflitos nem a rivalidades, mas consegue sair incólume das desavenças, por ser feito de matéria incorruptível e perene.” Dessa forma, está enviando uma carta para Rubi, para sua memória. Uma carta que reafirma a amizade e que transforma a visita do sobrinho em apenas mais uma faceta do amor a ser compreendida.

 

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 O coração pensa constantemente

Rosângela Vieira Rocha

Romance

Ed. Arribaçã

2020