quarta-feira, 26 de maio de 2021

Quênia, de Michaela V. Schmaedel

 

 



Por Adriane Garcia

 

Entre a dimensão filosófica e a fabulação, a poeta Michaela V. Schmaedel nos entrega um livro de aprofundamento temático e apuro da linguagem. Se em seu primeiro livro, Coração cansado, a temática próxima dos processos de luto privilegiam uma subjetividade mais solitária, neste Quênia – poemas de viagens, a subjetividade é mais solidária. A poeta sai de si tocada pelo mundo exterior e entra em si a partir deste mundo para comungar com ele. É a comunhão com a natureza na sua rusticidade e pureza, sentida como uma epifania, que ela nos comunica em poemas certeiros, econômicos, que contam com sugestões e silêncios.

A viagem de Michaela V. Schmaedel ao Quênia leva a uma busca das origens. É do ponto mais alto da África que o eu-lírico declara sentir a queda da humanidade: “feito pedra/ espreita o mundo// feito homem/sente a queda”. O eu-lírico caminha para a reflexão sobre a espécie humana desde o seu continente ancestral, colocando-se não só no lugar do humano, mas emprestando-se, como nas fábulas, ao bicho, às pedras, aos rios, à vegetação para ver a si.

 

O efeito da reflexão filosófica (uma ontologia) e a força dos elementos arcaicos das fábulas potencializam a leitura, tocam em arquétipos, questões existenciais antigas cuja premência se situa no presente. É de se notar que o livro evoca nossa natureza comungada com os outros seres quando essa comunhão se mostra esquecida e o homem não é capaz de ler o bioma em que vive ou acolher vias sustentáveis para conviver no planeta.

 

A terra escreve

a árvore escreve

a montanha escreve

o rio escreve.

 

Nós é que somos

limitados na leitura.”

 

A poesia se beneficia da metáfora e a ela nenhum estranhamento causa a fábula; desde os tempos imemoriais possuímos modelos de histórias em que falamos por meio dos outros seres. Em nossa memória ancestral sabemos de elefantes, hienas, montanhas, girafas que nos contam histórias ou que delas fazem parte para nos simbolizar algo. Em Quênia, esses elementos vêm articular os tempos, questionar e atualizar o homem e o animal que a memória coletiva deve preservar.

 

Há muitas

linhas do Equador

a dividir os trópicos.

 

Há muitos

modos de olhar

o mesmo animal.”

 

Ao olhar a paisagem e os seres que a habitam, o ser humano penetra na sua própria noite, que é abismo, dor e morte. A condição humana da qual não se pode fugir (mas tenta-se todo o tempo) alcança a consciência nessa simbiose e isso talvez fosse benéfico para que o homem desenvolvesse outras relações que não as do predador no topo da cadeia alimentar:

 

À NOITE

 

Procuro

ossos

carcaças

pego

eu mesma

o que

consigo.

 

Carrego

eu mesma

a morte.”

 

Em Quênia, a espacialidade, a distância tomada pelo eu-lírico, resultam numa prospecção. Vê-se de longe e de perto, para frente e para trás, coletivamente e individualmente. O eu-lírico também fala de suas dores pessoais: “No lugar da caça/ do bicho quase não vivo/ na savana das presas/ me encontro.” É neste lugar da perda que ele se identifica. O ser humano olha para si, olha para os outros seres e se dá conta do que lhe falta, seja o capim mais verde, a pessoa amada na penumbra ou mesmo um sentimento que o una aos outros. Sua constante é a luta e a persistente ilusão de que está separado do mundo:

 

HIENA

 

Sorrateira

no passo

a passo

da caça

atrás do

coração

que lhe falta.”

Michaela V. Schmaedel retrata-nos um mundo dessacralizado mostrando-nos um outro onde ainda era possível um sentido religioso de “relegere” (reler) ou o “religare” (religar). Para isso nada melhor do que figuras que nos aproximem dos “mythos” (fábulas). Procura-se Deus, mas nada indica que possa ser encontrado, exceto na beleza:

 

FLAMINGOS

 

Procuram

Deus no

silêncio

das águas”.

 

Diante da paisagem do Quênia, a poeta está tomada de beleza. Havendo uma moral da história, elemento fabuloso, podemos dizer que ela consta no primeiro poema do livro, aviso oracular do qual deveríamos ler todas as linhas e entrelinhas:

 

Ainda somos o homem

ancestral agachado

na savana do Quênia.”

 

***


 


Quênia – poemas de viagens

Michaela V. Schmaedel

Editora cas’a

2021

A mulher submersa, de Mar Becker

 



Por Adriane Garcia

 

Uma poesia atravessada pela fantasia e trazendo tanto da realidade da condição feminina. É interessante pensar nessas características de A mulher submersa, de Mar Becker, enquanto lemos suas páginas em linguagem fluida e deslizante de versos longos, como uma mulher que mergulha em grandes profundezas. Mas no mergulho, deslizar é um dos aspectos da ação de submergir, os outros são tensão, pressão, perícia, cuidado. A poeta mantém o tensionamento e sustém a beleza, utilizando a observação do cotidiano das mulheres, a atenção detalhada da subjetividade feminina do eu-lírico, transformadas em ricas figuras de linguagem como metáforas, analogias, comparações, sinestesias, hipérboles e antonomásias. A paisagem, o clima, os utensílios: fora é dentro e tudo se confunde e se imiscui na mulher. Se lemos A mulher submersa com o centro temático nas relações mulher/mulher, homem/mulher, estes quatro versos se tornam conclusivos: “tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais//eu te amo mais, meu amor// porque tu me amas com amor apenas/mas eu tive que aprender a te amar com ódio”.

 

A mulher submersa pode também ser entendida como uma alegoria, pois não se trata de uma mulher específica, mas de todas as mulheres, do passado, presente e futuro: “somos loucas, o meu amor me diz// somos, respondo. loucas daquela loucura iluminada que sobe por/um corpo quando nele se levanta uma legião”. Há no livro um grande sentido de irmandade, a mulher submersa é uma comunidade inteira. A imagem que o título do livro evoca permite levar a muitas associações e a leitora/o leitor pode até mesmo pensar na Atlântida, a sede da antiga civilização que supostamente existiu no oceano Atlântico e que há milhares de anos teria sucumbido a um cataclismo geológico ou à degeneração de seus costumes, o que teria levado os atlantes à ruína, provocando a ira dos deuses. Na Idade Média o mito de Atlântida encontrou muitas versões, no Renascimento foi retratada como a cidade ideal dos sábios. Na era das invasões, conhecidas como descobrimentos, surgiram teorias que viam os indígenas como descendentes dos atlantes, ligando assim as Américas ao continente submerso. Podemos nos lembrar da Atlântida lendo A mulher submersa porque suas páginas evocam tragédia, naufrágio e uma sobrevivência mágica: “Porque é assim que amo, lendária e triste”.

 

Mar Becker trabalha com uma simbologia poderosa ao falar do feminino. Sua escolha pela água, o elemento primordial, símbolo da emoção, encaixa-se perfeitamente em um eu-lírico que sugere um recuo para o útero, a fim de voltar a um tempo sem fardos; não à toa, a morte também é presença constante nessa poesia. Repleta de ambiguidades, a voz lírica assume as acusações imputadas às mulheres e se declara bruxa e ser coletivo. A mulher é temível para o homem e para Deus. Longe de negar, o eu-lírico reforça a bruxaria como poder, o poder de conhecer as forças telúricas, conhecimento herdado no tempo e repassado coletivamente, do uso do sobrenatural (aquilo que ainda não entendemos) e da aproximação com o mundo onírico: “havia noites que eu e minha irmã dormíamos com nossas/bonecas//antes de apagar a luz, dizíamos seus nomes, abraçando-as/depois tomávamos alguma distância, para olhá-las//para chamá-las pelo nome e imantar seus corpinhos de pano/com relâmpagos”. Assim é inserida a menstruação, fenômeno associado com a paga de sacrifício pelos mortos, para vingá-los. Nesta simbologia, a liberdade (pássaro) vem à custa de dor “arrancar a bicadas meus pelos pubianos” para construir um ninho, ou seja, para construir algo (um lar do lado de fora) a partir do feminino.

 

Sobre a fantasia, Carl Gustav Jung afirmou que “Pelo pensamento fantasia se faz a ligação do pensamento dirigido com as camadas mais antigas do espírito humano, que há muito se encontram abaixo do limiar do consciente”. É essa a impressão que temos ao ler A mulher submersa, a de que Mar Becker está habilmente trabalhando esses conteúdos antigos, arquetípicos, que seus versos habitados pela contundência do real e pela força da imaginação despertam velhas imagens, velhas ambiguidades que, em particular, vão dizer de uma história secreta das mulheres.

 

Na história secreta das mulheres que a poeta canta, a mulher pode criar para além da maternidade. Já nos primeiros versos nos é colocada a infertilidade e a fertilidade de uma mulher estéril: “eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas/de constelações”. O fim da linhagem não assusta a mulher infértil, pois ela não tem mais um compromisso com a geração de homens, mas com o fio invisível que une todas as mulheres do mundo, de todas as épocas, conhecedoras de um cativeiro comum. O canto que Mar Becker estabelece olha o comezinho da vida, por exemplo, calcinhas no varal, para tecer as reflexões que alcançarão cada mulher em sua casa e em sua intimidade. O eu-lírico, apesar de declarar seu amor em relações heterossexuais, todo o tempo olha para o corpo das mulheres, em um exercício que se assemelha ao voyeurismo. É um jogo de espelhos em que a mulher está enamorada de si mesma. Admite que a relação com a mãe foi de proteção, medo e desejo, identifica-se com esse amor. Nos momentos em que a mulher submersa está na companhia de um homem, é a si que ela descreve em detalhes, não ele; é o corpo da mulher que lhe interessa, quando lhe escapa uma vontade: “imitando uma moeda em estilo antigo//poderia arrancá-lo do cordão e depositá-lo como um óbolo na/tua boca entreaberta. é o que os gregos faziam com seus mortos/ na certeza de que o barqueiro seria pago”. Não sendo possível matar ou morrer, a mulher submersa se contenta com a pequena morte do gozo e o cheiro do próprio sexo: “algo do cheiro das minhas coxas/do meu sexo, de quando estava gozando em tua boca”. Eros e Tanatos se apresentam muitas vezes na sua oposição /completude: “algo como um sonho que homens sonham, entre o espelho/e o lodo”, imagem adorada de si e um terreno pantanoso.

 

É fácil aceitar uma mulher por uma ordem social, uma mulher fabricada socialmente, feita para obedecer, apanhar e calar; porém, que amor resiste à sombra, ao que é imperfeito, sujo? É imperfeito, sujo, aquilo que rompeu a sua ordem social e deseja. A mulher submersa é sexualizada e não é mãe. É uma mulher que já perdeu demais e está em franca disposição: “falta-me em mãos algo de desolador”. Na fantasia, a mulher submersa se vê animal mitológico, antropomórfico, capaz de habitar as águas abissais como o fizeram outras escritoras, mulheres tão submersas quanto o eu-lírico do livro, evocadas por similaridade: Safo, Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Ana Cristina César. Mulheres que visitaram as profundidades com perigosa regularidade e que exigiram o recolhimento para poderem ser, poderem sentir a mínima partícula que comunga no mundo “uno”: “a partícula de sal retida à ponta de um cílio/fazer disso uma cosmogonia”.

 

A mulher submersa fala de uma mulher escondida que pode vir à tona a qualquer momento, uma mulher prestes a se mostrar inteira. Uma Atlântida procurando, ela mesma, a sua localização concreta.

 

por ficarem muito tempo expostas ao ambiente do lar, as donas/ de casa acabam sendo tomadas pelo lar. é como numa doença// as cenas domésticas avançam no seu sono do mesmo modo/ que a febre avança no sangue/ assim as donas de casa preveem o futuro. dizem que em breve/ a rebelião virá

.

começará na cozinha/ os talheres permanecerão na gaveta, mas à noite/ a certa hora do sono teremos pesadelos envolvendo rostos/ deformados// tal como quando os vemos refletidos/ no aço da colher// bocas tortas; narizes enormes, côncavos, convexos// o uivo de uma cadela de rua entrará pela fresta da porta/ à soleira/ e até a faca que deixamos na mesa/ qualquer prateamento esquecido assim/ qualquer lâmina disposta no escuro/ poderá acender-se, renovando em nossas mãos/ toda uma disposição arcaica para matar

.

(excerto do poema breve ontologia doméstica, pag. 89/90)

***

A mulher submersa

Mar Becker

Poesia

Editora Urutau

2020

 

Mapas para desaparecer, de Nara Vidal

 



Por Adriane Garcia

 

Nos doze contos do livro Mapas para desaparecer, todos associados, nos títulos, com substantivos abstratos que denotam falta, negatividade ou encerramento, Nara Vidal nos traz uma coletânea primorosa regida pela temática do desejo de desaparecimento, da evasão ou do escapismo e pelo desaparecimento real das pessoas.

 

Em sua maioria, os contos trazem vozes de mulheres como narradoras, mas há também vozes masculinas protagonistas nos contos finais. O universo dos relacionamentos é explorado em diversas situações conflitantes e, muitas vezes, violentas. A condição da mulher – uma preocupação central nos livros da autora – aqui também se apresenta realçada. Se o mapa para desaparecer é inscrito sobretudo no corpo, como fica claro no conto homônimo ao livro, o corpo da mulher é um lugar privilegiado para demonstrar esse desejo e a sua realização.

 

O desparecimento se apresenta de várias maneiras; em Castanheira, a mãe quer desaparecer porque a filha desapareceu. Aqui, a leitura leva à dor de todas as mães que perderam seus filhos e nunca mais se libertaram do adeus que não se concretiza, mas que também não se encerra. A mãe que perde um filho por desaparecimento não cessa de esperar, a espera é crônica e absoluta. A vida pausa na espera e é espera até o fim. “Fico aqui até ela voltar ou até eu morrer.”  É notável a habilidade de Nara Vidal em instalar nas narrativas simbolismos de forma muito natural: “Os peitos amolecidos, flácidos, vazios de vida se esparramam cada um para um lado do meu torso”. O estado em que se apresentam os seios denotam o esvaziamento da função maternal, o abandono do corpo, de qualquer vaidade. O desaparecimento congela a mãe e faz perder a mulher. O remorso por não ter estado com a filha a ponto de protegê-la do desaparecimento leva ao descuido de si como uma forma de punição – e expiação – diante da culpa.

 

No conto A morte do caixeiro viajante, uma mulher sai do teatro, tendo assistido à peça de Arthur Miller e se desencaminha do seu trajeto que seria para a casa, na noite de folga em que seu marido ficou com as crianças. Dali em diante, sabemos que ela está “à espera de um trem que me leve de volta para o casulo da decência que é ser mãe, esposa, uma pessoa normal”. Porém, assim como o personagem Willy da peça de Miller, a mulher vê sua vida em franca decadência, sua existência familiar moralmente correta, aplacadora dos desejos é uma grande mentira. Na madrugada em que a maior parte do conto se passa, a protagonista dá azo ao desejo, mas o encontro com a realização deste anseio é precário, é fonte de desprazer e acelera a sua queda vertiginosa, tendo no furo da meia calça a metáfora para a ferida que se abre: “o declínio do caixeiro viajante”.  O desaparecimento da mulher “normal” que por instantes levou à consumação de uma liberdade sexual encontrou a violência. O desejo maculou-se de arrependimento. A personagem queria fugir mas queria ficar, mostrando a hesitação dos sem-lugar, pois nenhum lugar se afigurou como uma solução. A ambiguidade é interessantíssima não só por enriquecer a personagem, mas também por confirmar a analogia que faz de si mesma com o caixeiro viajante. Não há saída a não ser continuar fingindo que o casamento é ótimo, que os filhos são tudo o que importa, que a vida está maravilhosa, mesmo quando tudo rui e a verdade se aproxima. “Pensar no futuro. De hoje em diante, só pensar no futuro. Fazer almoços e sobremesas, escolher filmes, ir nadar com as crianças. A vida é isso.” A fala da personagem solitária, que não tem com quem conversar e tenta elaborar os acontecimentos de sua vida por meio de obras artísticas vai direto na fala do caixeiro Willy da peça a que se refere: “Pois é. A gente trabalha a vida inteira para comprar uma casa e, quando a casa é da gente, não há ninguém para morar nela”, ou ainda, a fala de Linda, esposa do caixeiro: “Mas meu amor, a vida é assim mesmo. Sempre foi assim. A vida é uma derrota”’.

 

Em Cipó mil-homens, cujo substantivo abstrato de ligação ao título é indigência, um retrato crudelíssimo dos socialmente marginalizados. Nesse conto não só a continuidade da miséria por gerações, como a continuidade do abuso sexual dos adultos contra as crianças mostram-se em uma história emocionante e contundente sobre de que modo a opressão pode se naturalizar e se repetir. A planta conhecida como cipó mil-homens, cuja flor está ilustrada na capa do livro, aparece estrategicamente como simbologia, metáfora (espécie de trepadeira, suas flores são de uma beleza exótica assemelhada a uma vagina, sua ramagem é forte e inquebrantável, suas folhas são abortivas e antiofídicas) e como solução na estratégia de sobrevivência das personagens, a mulher e seu filho, acossados pelo mundo fálico com sua cultura de estupro, filicídio e pedofilia.

 A personagem Rose, do conto de mesmo nome, apresenta-se estranhamente livre (pode-se ler também feliz) após a morte do marido. Dá-se uma nova identidade: Rose. E não se sabe como se nominava antes, pois a história é narrada por sua vizinha que, de Rose, só sabe que foi taciturna. A história mostra uma mulher cujo casamento e maternidade funcionaram como uma espécie de prisão em si e que, após a independência do filho e, finalmente, a morte do marido, recupera prazeres simples como andar de bicicleta: “Sem Alfredo, a Rose agora ficou assim, insensata, descontrolada, ri de gargalhar, perdeu os modos, começou a tocar piano, coisa que ninguém da rua tinha ouvido antes”. Uma história emocionante sobre fuga e recuperação (reinvenção) da identidade.

 

Em, Luciana Espírito Santo, lemos a história de uma pobre escritora massacrada pelas redes sociais. É interessante que o substantivo abstrato ligado a esse conto seja cancelamento. Em uma narrativa que usa de muito humor, Nara Vidal retrata o sofrimento daquelas e daqueles que vivem em função do “comportamento ideal” nas redes para obter sucesso literário. Uma luta inglória, por vezes insana. Luciana Espírito Santo quer a atenção dos que não a consideram (editores, escritores badalados, críticos influentes) e dispensa a atenção de parentes e amigos de sua cidade: “O maior problema dela é a falta de credibilidade. Ela se sente ignorada exatamente pelas pessoas que mais respeita. Outro dia, ela postou que operou. Uma apendicite dos diabos. Postou até uma foto deitada na cama do hospital. As únicas pessoas que comentaram foram as tias, os parentes do interior. Vários postaram a frase “Maria passa na frente.” “Deus no comando”. No mercado das curtidas de Facebook ou Instagram, Luciana definitivamente não sabe se comportar: “No fundo, o que Luciana realmente queria saber era se as pessoas gostavam do que ela escrevia, mas isso era um mistério”. A escritora seguirá o caminho de levar seus anseios por ser famosa às últimas consequências, mostrando que a busca do amor (a admiração dos outros) pode encontrar um terreno pedregoso e perigoso nas redes sociais.

 

No conto O casamento de Daniel, Nara Vidal mostra personagens envolvidas em um padrão de agressividade sexual muito difundido pela pornografia. Reinam a incomunicabilidade e o silêncio como saída para evitar discussões. O casal não combina no humor; a narradora constata que acha que ela e Daniel não combinam em nada. A forma com que a autora escreveu esse conto é notável, funcionando em várias temporalidades: o tempo em que a personagem está na relação sexual e o tempo em que ela não se lembra exatamente do que aconteceu nessa transa (da qual o leitor acabou de obter detalhes); depois o salto de mais uma década e outra. A deterioração do relacionamento é uma sequência nos anos que se seguem. A dependência financeira dela, a ambiguidade do sentimento amor-ódio, o sexo como obrigação revelam não pontos de dissolução do casamento (cujo título revela que é só de um, o casamento é só de Daniel), mas de castigos mútuos derivados do fracasso de fugir, da troca da tomada de atitude de se separar pela omissão contida no silenciamento.

 

Em Carmem, Nara Vidal trabalha com o extravio. A vida extraviada dos menos favorecidos, dos excluídos, daqueles que na ancestralidade já sofreram o prejuízo de uma história de usurpação para todo o futuro. Carmen vem de uma família de empregadas domésticas e considera que já melhorou de vida com relação às suas ancestrais, pois mora a dois quarteirões da casa dos patrões. Temos então um bairro em que, frente a frente, existem os prédios da classe média e a favela. Sem saída, pessoas como Carmen não podem nem pegar um ônibus e voltar ao interior onde se têm parentes, tampouco poder cuidar dos próprios filhos quando se fica o dia todo à disposição dos filhos dos outros. A história começa no horário de término do trabalho da empregada doméstica na casa dos Ortega, quando resolvem lhe fazer uma surpresa, um bolo de aniversário sabor limão (que ela detesta). Nara Vidal nos mostra o descaso travestido de consideração, fato tão conhecido da sociedade brasileira, marcada completamente pelo escravismo, em que a frase “ela é como se fosse da família” tenta ocultar todo tipo de violência. O conto nos desfia não só o extravio social, mas o extravio sexual, o desejo voltado contra si, o estupro.

 

No conto Não ficção (engano), quem sai enganado é o próprio leitor – talvez também a personagem – uma esposa de diplomata que não pode fincar raízes em lugar algum, tendo morado em Moscou, Lima, Washington, Praga, Angola. De amiga em amiga (todas provisórias) ela vai contando seus segredos ao mesmo tempo que essa amizade também passa a sufocá-la. A personagem vai criando identidades, talvez uma forma de se esquivar da sua própria, aquela que o leitor também não poderá ter certeza de qual seja; afinal, quem quer desaparecer deseja se esquecer de quem é.

 

Em Lucien Roland, Nara Vidal volta ao cenário desenvolvido em Luciana Espírito Santo, o meio literário e suas agruras, principalmente para a mulher já que, sendo um meio contido na estrutura maior, não poderia deixar de trazer os defeitos e características da sociedade como um todo: machista, patriarcal, abusivo, sexista, racista, elitista. Aqui, a personagem Ana Cristina tentará alçar seu voo na fama escrevendo a biografia (falsamente não autorizada) de um escritor famoso, Lucien Roland, autor premiado, professor em concorridas oficinas criativas e acostumado a seduzir suas alunas em troca de facilitação de publicações e trânsito literário. Com um humor agudo, traduzido em ironia, Nara Vidal mostra a falta de profissionalismo do meio literário e editorial e a falta de preparo intelectual travestida de erudição: “Ainda assim, quando participava das festas literárias, das entrevistas, dos podcasts, Lucien sempre surpreendia e na sua erudição espetacular, citava nomes que pouquíssimas pessoas conheciam. Às vezes, só o entrevistador tinha ouvido falar, mas não tinha lido”. Assim, como em Luciana Espírito Santo há um modo de se comportar no meio literário, há regras a cumprir, há deveres a fazer com relação aos relacionamentos (a escrita de qualidade é importante, mas pode não ser suficiente). Aqueles que não jogam o jogo podem desaparecer e os que mandam no tabuleiro trocam apenas de nome, mas não desaparecem nunca.

 

Associando a palavra disfarce, no conto O casamento de Letícia (mais uma vez o casamento é só de um), Nara Vidal nos trará um narrador cuja esposa veio como salvação, fuga de um grande desejo. A esposa abandonou a carreira de advogada para se tornar esposa e mãe. O casal tem dois filhos com ideias políticas muito divergentes e o filho Gustavo, com ideias e comportamento progressista, é visto como a ovelha negra da família. Lucas, o outro filho, acompanha o casal, ditas pessoas de bem, nos seus valores excludentes. As diferenças de Gustavo acentuarão a presença dos fantasmas que frequentam os segredos do pai.

Em Seguro de vida, relacionado à palavra morte, mais um casal que posa como família funcional, escondendo seus sentimentos.  A mulher, não se sabe se sofre de uma doença física grave ou de transtornos que levam à hipocondria; o marido, narrador, contrasta seus atos de servir à mulher com simpatia e odiá-la em pensamento, desejando que esteja mesmo doente e que morra logo: “A cabeça da Marina estourando era uma pintura. Miolos partidos e espalhados na mais profunda cor vermelha pelo travesseiro. Mas ela ainda tem energia para me gritar lá de cima.” Como em todo o livro Mapas para desaparecer, há uma maestria em contar. Aqui, Nara Vidal nos leva estrategicamente a pensar em duas soluções possíveis para o fim, conduzindo-nos a um desfecho surpreendente.

 

 O conto Mapas para desaparecer fecha a coletânea de forma belíssima, usando recursos de prosa poética e fazendo uma reflexão que poderia ter sido a de todos os personagens dos contos anteriores sobre o sentido da vida e a inevitabilidade do desaparecimento; sobre o corpo e o tempo; ou melhor, sobre o corpo como única eternidade possível: “Você evapora e isso coincide com o seu esquecimento. As pessoas que habitaram seus mapas já não se lembram das suas feições, do seu cheiro”.

 

Paradoxalmente, já que um mapa é um objeto cuja função é ajudar a encontrar, Nara Vidal nos revela sua função de ajudar a perder. Viver não deixará uma história cravada no tempo, tudo caminha para o desaparecimento. Esse mapa é marcado pelo lugar derradeiro e não nos deixa outra saída a não ser optarmos por nós mesmos, sem esconderijos, enquanto fazemos o trajeto que não sabemos até que ponto podemos mapear, pois nossas linhas dependem também das linhas dos outros, nossa geografia é atropelada por outros acidentes geográficos que nos avizinham. Nos contos de Mapas para desaparecer o que está posto é a ruína da entrega à desistência de si. São poucos os personagens, como Gustavo, por exemplo, ou Rose, que terão coragem de ser em algum momento, de existir aparecendo, assumindo-se. No geral, a vida será assolada pela morte, ainda que travestida por nomes como disfarce, engano, ausência, cancelamento, apagamento, extravio, anulação, indigência, final, fuga.

 

É ainda de se notar que Nara Vidal escreveu um livro que fala do desaparecimento em plena época de excesso de aparição. Uma época em que a esperança foi tocada de forma vertiginosa e encontra-se ferida, pois hoje não é somente um novo modo de vida, de sistema econômico, de sentido existencial que buscamos, mas novas formas urgentes de nos relacionarmos com um planeta estafado da raça humana. Se o que há de mais certo é o nosso desaparecimento – metafórico e real – Nara Vidal, ao escrever sobre ele, de certa forma, está falando também do desaparecimento de si e da sua obra. Enrique Vila-Matas, outro autor que trabalha a temática do desaparecimento, sabe também sobre esse mapa quando nos diz: “Mas, se é certo que a obra e o escritor, como você disse, tendem a se perpetuar, também é certo que no fim, através do tempo, a obra viajará irremediavelmente sozinha na imensidão. E um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o sistema solar e a galáxia, e a mais recôndita memória dos homens”. Escrever é lutar contra o desaparecimento. Não para vencê-lo, pois é impossível, mas para adiá-lo.

 

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Mapas para desaparecer

Nara Vidal

Contos

Ed. Faria e Silva

2020