quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Ao mesmo tempo, de Susan Sontag (tradução de Rubens Figueiredo)

 


Por Adriane Garcia

 

Ao mesmo tempo, livro póstumo da escritora Susan Sontag, traz ensaios escritos nos seus últimos anos de vida – nos quais esteve doente – e conferências proferidas quando do recebimento de prêmios e homenagens internacionais. A introdução carinhosa do livro é feita por seu filho, o escritor David Rieff, que a define como uma pessoa ávida.

 

É mesmo avidez que pode ser percebida lendo Ao mesmo tempo. A variedade de assuntos revela uma fome e uma curiosidade pelo mundo: da reflexão sobre a beleza ou a fotografia ao esvaziamento dos discursos dos políticos; da literatura de Pasternak, Tsvetáieva e Rilke, seus relacionamentos, aos desafios da tradução literária; do romance de Tsípkin, Verão em Baden Baden, que compõe um Dostoiévski com amor, à crítica sem condescendência aos regimes totalitários, incluindo o soviético, como pode ser visto no ensaio “O caso de Victor Serge”. Susan Sontag desfila não só sua erudição, inteligência e sagacidade como sua paixão pela arte e pelo conhecimento.

 

Ativista dos direitos humanos, a escritora critica a política imperialista de seu país e repudia veementemente o tratamento degradante praticado por militares norte-americanos contra os presos, inclusive em territórios estrangeiros, como as torturas denunciadas na prisão de Abu Ghraib, sob a desculpa de “combate ao terrorismo”.

 

Em Ao mesmo tempo é possível perceber que Sontag lamenta não ter escrito mais ficção, ocupando grande parte da sua produção com a escrita ensaística, mas considera uma obrigação ética divulgar a literatura dos outros e expandir seu alcance – é também uma ativista literária. Neste livro, debruça-se sobre romances como Embaixo da geleira, de Halldór Laxness ou Artemisia, de Anna Banti, enquanto pensa o papel da escrita e seu alcance, a ética e a estética, a obrigação da verdade como um norteador, tecendo uma homenagem à própria literatura, que ela define como um exercício de liberdade.

 

Nós, escritores, ficamos preocupados por causa de palavras. Palavras significam. Palavras apontam. São flechas. Flechas cravadas na pele dura da realidade. E quanto mais portentosa, mais geral for a palavra, mais também se parecerá com um quarto ou um túnel. Elas podem expandir-se, ou bater em retirada. Podem impregnar-se de mau cheiro. Muitas vezes nos farão lembrar outros quartos, onde gostaríamos de morar, ou onde achamos que já estamos vivendo. Elas podem ser espaços onde não podemos habitar, pois perdemos a arte ou a sabedoria para tal. E por fim aqueles volumes de intenção mental que não sabemos mais como residir serão abandonados, lacrados com tábuas, trancados.

 

O que queremos dizer, por exemplo, com a palavra “paz”? Uma ausência de conflito? Um esquecimento? Perdão? Ou um grande cansaço, uma exaustão, um esvaziamento do rancor?

 

Parece-me que o que a maioria das pessoas entende por “paz” é a vitória. A vitória do seu lado. É isso o que “paz” significa para “eles”, enquanto, para os outros, paz quer dizer derrota.

 

Se predominar a ideia de que paz, embora em princípio desejada, acarreta uma inaceitável renúncia de demandas legítimas, então o rumo mais plausível será a prática da guerra por todos os meios possíveis. Se não fraudulentos, os apelos de paz serão tidos certamente como prematuros. A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser re-povoada. Recolonizada...”

(p. 103, em A consciência das palavras, Discurso ao receber o prêmio Jerusalém)

 

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Ao mesmo tempo

Susan Sontag

Ensaios

Companhia das Letras

2008

Orlando, de Virginia Woolf (Tradução de Laura Alves)

 



 Por Adriane Garcia

 

Orlando, romance escrito por Virginia Woolf, foi publicado pela primeira vez em 1928. Há muitas edições do livro no Brasil, por várias editoras, algumas trazendo o título Orlando: uma biografia. A edição que leio é a da Saraiva, publicada em 2011, tradução de Laura Alves, que conta com uma apresentação da tradutora.

 

O livro pode ser um romance histórico, mas há até quem o classifique nas narrativas fantásticas. Sua principal personagem é imortal e atravessa três séculos e meio, enquanto a leitora/o leitor viaja também pelo pano de fundo histórico da Inglaterra até chegar ao início do século XX.  O tempo e o jovem inglês se transformam, valores ficam e valores se vão, em uma exposição de rupturas e permanências, sendo que, o Orlando menino e campestre que conhecemos se transmutará no jovem urbano e sedento de vida e festa, no jovem apaixonado e traído, no poeta frustrado, transformando-se até mesmo na mulher que reflete sobre a condição dos gêneros. Assim, começa-se a ler sobre o Orlando e termina-se lendo sobre a Orlando.

 

Na tentativa de ser poeta (que persiste pelos séculos), a personagem de Virginia Woolf (assim como a voz narradora, a biógrafa) acaba por fazer uma reflexão sobre a escrita e o meio literário não raro cruel, falso, bajulador, enganador, dado a traições. Frequentando a nobreza e a aristocracia, a personagem também denuncia (por vezes através da sátira) essa classe social vazia: “Mas, quando tentava lembrar em que teriam consistido essa galanteria, essa cortesia, esse encanto e esse divertimento, era levada a crer numa falha de memória, pois não conseguia assinalar nada. Era sempre a mesma coisa. Nada restava no dia seguinte, embora a excitação do momento fosse intensa. Assim, somos forçados a concluir que a sociedade é uma dessas misturas que as donas de casa habilidosas servem quentes no período natalino, cujo sabor depende da mescla e da agitação adequadas de uma dúzia de diferentes ingredientes. Provar um a um em separado é insípido. Retirar Lorde O., Lorde A., Lorde C. ou o sr. M., cada um deles separadamente, não é nada. Misturados todos juntos, combinam, produzindo o mais inebriante sabor e o mais sedutor dos aromas. Contudo, essa embriaguez e essa sedução fogem completamente à nossa análise. Por isso, ao mesmo tempo, a sociedade é tudo e a sociedade é nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo e a sociedade em si não existe. Com tal monstro só os poetas e os novelistas podem lidar; com esse tudo e esse nada suas obras atingem um volume considerável; e para eles o deixamos, com a melhor das boas vontades.

 

Orlando é um livro cujo prazer da leitura não se faz apenas na trama surpreendente, mas na linguagem rica que se assemelha a um rio caudaloso, habitado por muitas criaturas e paisagens. Se o tempo se desfaz como um nada, abrindo repentinamente novo capítulo e Orlando se vê transformado em Lady Orlando, continua poeta, sensível, apaixonado(a), inocente, amante da natureza, na incessante busca pelo amor, pela sinceridade e pela vida, mas jamais os encontrando na normalidade banal e reguladora da sociedade. Suas decepções advindas da idealização com esta mesma sociedade, com os escritores, com a atraente Sasha, a jovem russa capaz de trair um amor puro, vai dando o tom do que é a existência, do que é universal, independente do lugar ou do ano em que ocorre. Toda a memória de Orlando a acompanha.

 

Inspirado na vida da amante de Virginia, Vita Sackville-West, escritora aristocrata que mantinha um casamento aberto e alguns relacionamentos amorosos com mulheres, Orlando traça um jogo geográfico de atravessar fronteiras, espaços, países, e também faz a travessia do próprio corpo, entrando em outra condição corporal. A reflexão, que ultrapassa os pensamentos sobre o travestismo (pois também o efeito das roupas, determinadas para cada sexo é objeto de análise por Orlando), nos conta de alegrias e sofrimentos, de adequações e inadequações que envolvem o comportamento de gênero definido por papéis que não consideram cada sujeito. Lady Orlando sabe que não pode mais falar alto, não pode brigar, não pode sequer receber sua própria herança, não pode matar, não pode deixar os tornozelos à mostra. O assédio e a violência sexual a espreitam, agora que ela usa uma saia.

 

A voz narradora é inteligente, sarcástica e fala diretamente à leitora/ao leitor. O uso discreto do chiste, o recurso da paródia de uma biografia, o humor brincalhão que troça do modo de narrar dos biógrafos e historiadores, nos fazendo rir do embate entre verdade e verossimilhança e pondo em choque o racionalismo realista, tudo isso participa da beleza deste livro. Orlando é uma homenagem à literatura, no que ela tem de melhor e no que ela tem de liberdade.

 

Graças a Deus que sou mulher!”, gritou, e estava quase caindo em extrema loucura — nada é mais lamentável numa mulher ou num homem do que ter orgulho do seu sexo — quando se deteve sobre a singular palavra que, por mais que tentemos substituir, se insinuou no final da última frase: amor. “Amor”, disse Orlando. Instantaneamente — tal é a sua impetuosidade — o amor tomou uma forma humana — tal é o seu orgulho. Pois, enquanto os outros pensamentos se contentam em permanecer abstratos, nada satisfará a este se não se revestir de carne e sangue, mantilhas e saias, calças e jaquetas. E, como todos os amores de Orlando tinham sido mulheres, agora, devido à censurável morosidade da constituição humana em adaptar-se à convenção, embora ela própria fosse uma mulher, era ainda uma mulher que ela amava; e, se a consciência de ser do mesmo sexo tinha algum efeito sobre isso, era o de apressar e aprofundar aqueles sentimentos que tivera como homem. Pois agora mil insinuações e mistérios que antes pareciam obscuros se aclaravam para ela. Agora, a obscuridade — que divide os sexos e permite a sobrevivência de inúmeras impurezas à sua sombra — foi removida, e, se há alguma relação no que o poeta diz sobre verdade e beleza, esta afeição ganhou em beleza o que perdeu em falsidade. Finalmente, gritou, ela conhecia Sasha como era, e, no ardor desta descoberta e no encalço de todos os tesouros que lhe eram agora revelados, estava tão arrebatada e encantada como se uma bala de canhão tivesse explodido nos seus ouvidos, quando uma voz de homem disse-lhe: “Permita-me, senhora”, e a mão de um homem ajudou-a a levantar-se; e os dedos de um homem, com um veleiro de três mastros tatuado no dedo do meio, apontaram o horizonte.

 

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Orlando

Virginia Woolf

Tradução de Laura Alves

Editora Saraiva

2011