sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler



 

Por Adriane Garcia

 

Coletânea com vinte e sete contos, O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, lança luz sobre histórias de breu, apagões de humanidade. É interessante, inclusive, que a primeira história que nos narra se intitule Chiaroscuro. Nesse conto de abertura, que fala sobre racismo, violência policial e estupro, podemos perceber que a autora não organiza o livro em uma gradação confortável; não vai conduzir suas histórias protegendo as sensibilidades, preparando-as para um adiado momento trágico ou um relato de grande degradação; pelo contrário, é desses relâmpagos sobre o breu, desde o início, que todas as narrativas irão se compor.

 

O rinoceronte branco era o último. E foi extinto. Por trás da extinção dos animais está a forma predatória, capitalista, da insanidade pelo consumo a que a humanidade se submeteu, destruindo sua própria espécie, enquanto pensa destruir “apenas” os outros seres do planeta. Uma gota do sêmen do rinoceronte branco poderia ser uma esperança para os utópicos (ou para os cínicos), aqueles que acreditam que a tecnologia trará de volta não apenas o rinoceronte, mas uma humanidade capaz de consertar os seus erros quando já pareça tarde demais. Recriar, pela engenharia genética, o animal extinto significaria que nosso dano é menor. Porém, nem isso; sobre o sêmen do rinoceronte branco, Cinthia Kriemler nos acende um lampejo de paliativo sonho.

 

Nesse livro os contos abordam, principalmente, temas que se desenvolvem nas sombras das relações econômicas, da injustiça social verificada na quantidade de miseráveis. O destaque é para os mais fragilizados: crianças, pessoas negras, mulheres, velhas. No conto Vigília, a morte aparece na vida de uma mulher como uma possibilidade de dignidade jamais alcançada em vida. Em 12h28, outra mulher traz um comportamento de abandono sobre si parecido com o da personagem de Vigília, sua dignidade foi usurpada durante um crime ambiental, quando uma das tantas barragens prestes a estourar em Minas Gerais estourou.

 

Como o alcoólatra do conto Garrafas no jardim, a sociedade, viciada e adoecida, tenta esconder a própria realidade. Ao trazer essas situações e personagens para o foco de sua escrita, Cinthia Kriemler chama para ver o que está diante dos olhos de qualquer um, mas que de tão naturalizado, se ocultou. Se podemos passar pelos moradores de rua e seguir com indiferença à miséria material dos outros, a autora nos coloca, individualmente, diante de alguns deles e nos conta que são humanos. Há um engajamento de alguns narradores que não tem a menor intenção de se disfarçar, “Mas hoje não é a barbárie da indiferença social que me preocupa. É alguma coisa mais evidente, mais urgente”, não querem ser imparciais e julgam a paisagem de ruínas que os cerca. Os personagens narrados não buscam uma identidade individual, porque já a possuem, mas está invisibilizada. A outra identidade, aquela pela qual são reconhecidos, veio de fora; por isso, mais importante do que uma construção psicológica de suas características – os contos se centram muito mais na construção das situações –, os personagens de O sêmen do rinoceronte branco buscam a construção de uma identidade coletiva e, no ápice, um lugar dentro da categoria que se define como humanidade.  Quando no emocionante conto “Não é” a mãe, no necrotério, em negação para reconhecer o corpo do menino assassinado pela polícia, revela seu próprio nome, o nome do pai e o nome do filho, com sobrenome e tudo, está dizendo de suas existências civis, cidadãs, excluídas; está afirmando sobre suas identidades ignoradas pelos outros, porque dentro da coletividade são marcadas pela negação: “Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos.

Outros temas que se destacam nos contos dessa coletânea são a crise dos relacionamentos amorosos do ponto de vista da mulher e o abandono sentido pelas velhas e velhos.  Não raro, as tragédias amorosas em O sêmen do rinoceronte branco estão ancoradas na cultura do amor romântico – cujo destino é sempre a falência – e do machismo, resultando em solidão extrema, como em Bípedes, em que o excesso de sexo (ou o sexo direcionado a qualquer um) aparece como um desequilíbrio, um sintoma da infelicidade (ponto de vista que autora trabalhou no romance Todos os abismos convidam para um mergulho). Em Mesa posta, a comodidade que os parentes encontram no abandono dos velhos, o arrependimento inútil, “a alma arranhada”. Em Assim, o suicídio como solução para os afetos fracassados. Mais uma vez o alcoolismo aparece como problema social destruindo relações familiares, fomentando a violência doméstica, servindo de lenitivo diante das dificuldades da vida e criando outras. Em Aposentadoria, a impossibilidade do sonho de finalmente se aposentar e a pergunta implícita: Quem aposentará a violência ceifadora do Estado?

 

No contexto planetário de degradação do meio ambiente e, no nível brasileiro, de crescente pauperização do corpo social, precarização do mundo do trabalho, extermínio e adoção da necropolítica como gerência de Estado contra os mais vulneráveis, a obra de Cinthia Kriemler vem narrando o seu tempo com as preocupações que o permeiam. Seus contos enfatizam a continuidade das mazelas. O que denuncia é uma imobilidade social – e cultural – em um mundo regido pela lógica capitalista, herdeira do escravismo e da misoginia, pela estética e pela ética do consumo. Ser é ter. E é sobre essa base que os seres que não têm são esmagados e, portanto, não são. Para muitos personagens de Cinthia Kriemler o consumo não é pelo supérfluo, ou pela escalada de status – a que é tão afeita a classe média – mas pelos itens de necessidades mais básicas. Os personagens de O sêmen do rinoceronte branco são subcidadãos, quer pela sua renda, quer pela sua cor, quer pelo seu gênero, quer por sua aparência física, quer por sua idade. Estão situados em uma sociedade padronizadora, que odeia diferentes e os extingue, como fez com o último rinoceronte branco.

 

Com uma escrita ágil, preocupada em dar a conhecer que lugar o indivíduo ocupa na pirâmide social ou a que rótulo está condenado dentro da estrutura capitalismo/patriarcado, frases curtas, fala direta, sintaxe simples, vocabulário atualizado, a autora também indica a preocupação quanto ao acesso de seu texto: é para o maior número possível. Forma e tema, situando-se na máxima de Graciliano Ramos, mestre do escrever com simplicidade, que afirmou que “a palavra foi feita para dizer”.

 

O que a obra dessa autora vem dizendo, com uma luz incômoda, a exemplo do que pode ser verificado indubitavelmente no conto que dá nome ao livro – é:  Se não protegemos nem os filhotes de nossa própria espécie, como protegeremos a nossa casa?

 

 

“Não é

 

Não é ele, doutor. Tenho certeza. O senhor me trouxe até aqui à toa. Isso tudo é um engano. Uma perda de tempo. E eu com tanto trabalho pra fazer. Tenho chão de cozinha pra lavar, casa pra varrer, quarto de criança pra limpar, cachorro pra levar pra passear. Tem louça do almoço na pia, tem lixo no banheiro. Eu não posso ficar aqui, doutor. Ainda mais pra ouvir o senhor dizer besteira. Que o meu menino morreu. Que ele levou tiro da polícia. Que ele tava roubando carro junto com bandido. Bandido fichado. Mas o que é isso, doutor. O meu menino só tem doze anos. Doze. Eu deixei ele dormindo lá em casa. Como eu deixo todo dia. Quatro e meia. É a hora que eu levanto. Pra sair de casa às cinco e pegar dois ônibus até essa casa onde eu trabalho. O meu menino só levanta às sete. E vai direto pra escola. Vai, sim. Ele adora a escola. A professora me disse que ele é bom aluno. Só tem dificuldade em matemática. Como é que ela ia me dizer isso se ele fosse menino de matar aula? Acredite em mim, doutor, o meu menino está em casa. Ou brincando na rua. De pipa, de bola de gude. Ou jogando videogame. Porque hoje não tem aula. É feriado na escola. Verdade. O meu menino não mente pra mim, doutor. Ele não é vagabundo. Ele sabe que tem que estudar. Que não é pra se meter com bandido. Nem com droga. Ele sabe que eu me mato de trabalhar pra dar as coisas pra ele. E não é só comida, não, doutor. É tênis, é camiseta, é bermuda, é óculos de sol, é corrente, é boné. Dei até bicicleta e videogame. Ele tem de tudo, doutor. Ia roubar carro pra quê? Eu já disse que ele só tem doze anos? Não é ele, não, com certeza. Então por que é que o senhor me trouxe pra este lugar horrível? Por que é que eu tenho que olhar pra esse menino aí deitado? O cheiro aqui é ruim. Eu quero vomitar. Eu quero ir embora. O meu menino está lá em casa, doutor. Lá em casa. Eu já disse. O senhor não quer ouvir. Que merda. Presta atenção no que eu tô dizendo, pelo amor de Deus! Eu sei que parece. O meu menino tem uma marca de nascença na coxa. Igual a essa aí. Tem uma tatuagem de caveira que ele fez escondido de mim. Igual a essa aí. No mesmo lugar. O meu menino tem as unhas roídas. E um dedo torto que ele quebrou no futebol. E uma cicatriz de tombo. E o dente da frente com a ponta quebrada. E as orelhas de abano. Como esse aí. Mas esse não é o meu menino. Não importa se os vizinhos viram o roubo, e a viatura que apareceu cantando pneu, e a troca de tiros, e os bandidos que foram todos mortos. Não importa quem disse que era o meu menino que tava lá com uma arma na mão. Não importa se esse daí tinha duas pedras de crack no bolso. Nem sei quem deu o meu nome para o senhor, doutor. Gente má. Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos. Mas me escuta, doutor, por favor. O meu menino não tem esse olho arrebentado de bala. Não tem essa cara inchada. Não é gelado assim. Não rouba carro. Esse aí é bandido. É ladrão. É menino que engana a mãe que trabalha fora o dia inteiro. Mãe que sai de casa antes do dia clarear que deixa o filho dormindo que não sabe o que ele faz quando acorda que acredita que ele tá no colégio que pensa que ele é bom aluno que jura que ele é feliz com o tênis, a camiseta, a bermuda, o videogame. Como é que eu vou reconhecer o filho dos outros, doutor? Tá surdo? Eu tô aqui repetindo que esse aí não é o meu menino, caralho. Não é, não é, não é, não é.”

***

 

O sêmen do rinoceronte branco

Cinthia Kriemler

Contos

Ed. Patuá

2020

 

Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici

 


 

Por Adriane Garcia

 

Nesse livro imperdível sobre a história das mulheres, a historiadora Silvia Federici registra o resultado de três décadas de suas vastas pesquisas sobre a caça às bruxas, ocorrida desde o final do século XV e ocupando os primeiros séculos da Era Moderna. Com ápice no século XVI – e não na Idade Média – a caça às bruxas, argumenta a historiadora, foi primordial para a acumulação primitiva, que permitiu o acúmulo de riquezas para a Europa e o desenvolvimento industrial, assim como o próprio sistema capitalista.

 

Traduzido no Brasil pelo coletivo feminista Sycorax (nome da mãe bruxa de Calibã, na peça de Shakespeare, A tempestade), em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, e publicado pela editora Elefante, o livro tem uma edição lindíssima, de 466 páginas de conhecimento, além de belas e impactantes imagens e muita reflexão sobre o papel que o controle do corpo das mulheres ocupa na manutenção do poder no capitalismo.

 

Calibã e a bruxa é dividido em cinco capítulos: O mundo precisa de uma sacudida, onde a autora mostra as lutas camponesas e o processo de consciência de classe, muitas vezes conduzido por mulheres que levavam à contestação das leis e à exigência de direitos, além da participação como lideranças nos movimentos heréticos. É bem interessante notar a ênfase no período feudal, em que a autora descreve uma Idade Média cheia de lutas comunais e rejeitando a ideia de desenvolvimento linear de progresso. O capitalismo não foi algo evolutivo – no sentido do pior para o melhor; foi, na verdade, uma reação a uma consciência coletiva que evoluía. Em A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres, Silvia Federici mostra como a privatização das terras na Europa (os cercamentos, principalmente) e a retirada das terras comunais prejudicaram as mulheres. As desapropriações produziram escassez, aumento da prostituição, incentivo aos estupros e foram acompanhadas da intervenção estatal no mundo do trabalho e na reprodução, usando como método a desvalorização do trabalho feminino e implantando o patriarcado do salário (somente os homens seriam remunerados). Com a mulher reduzida ao mundo privado, e substituindo um bem perdido (a terra) para o homem trabalhador, deixá-la sem salário forçou a obediência ao novo papel.  No capítulo 3, O grande calibã, a historiadora centra-se nos processos de controle do corpo da mulher, considerado um corpo rebelde que precisava por todos os meios – científicos, principalmente – ser domado. Em A grande caça as bruxas na Europa, é possível acompanhar que toda a misoginia plantada a partir da perda das terras e do cerceamento das atividades das mulheres nas comunidades levou a uma naturalização do genocídio das mulheres, culminando no fato de ser a queima das bruxas um espetáculo público. No último capítulo, Colonização e cristianização, a autora mostra como a caça às bruxas na Europa e a caça às bruxas nas Américas fizeram parte de um mesmo projeto e se serviram do mesmo aprendizado nas câmaras de tortura, nos interrogatórios que procuravam o diabo, na demonização das crenças dos nativos, na inferiorização das mulheres; aprendizado que serve à exploração capitalista ainda nos dias de hoje.

 

Calibã e a bruxa faz notar a falta de estudos em Karl Marx, relacionados ao extermínio de mulheres no processo de acumulação primitiva, assim como ao trabalho não remunerado de reprodução da mão-de-obra a que as mulheres ficaram prisioneiras. A autora nota também que Foucault, nos seus estudos sobre poder, violência e corpo não dá importância ao processo específico de controle do corpo feminino, na violência e extermínio realizados na caça às bruxas.   Ao mostrar que um processo de proporções tão gigantescas como a caça às bruxas não obteve a atenção dos dois grandes estudiosos da origem do capitalismo, Silvia Federici denota a importância de se rever os estudos históricos, incompletos, quando metade da humanidade não é levada em conta de modo específico, já que o tratamento da mulher durante a história é bem específico.

 

O trabalho não remunerado das mulheres para suas famílias foi (e é) essencial para a manutenção e reprodução da mão-de-obra no capitalismo. Camuflá-lo a ponto de ele não ser considerado um trabalho foi essencial para aniquilar a autonomia das mulheres e oferecê-las como único bem, para dispor como bem quisesse, uma compensação, a um homem expropriado pelo próprio capital. Entender a guerra contra as mulheres é entender grande parte das engrenagens de poder. É entender que tanto a naturalização do estupro, o seu incentivo por meio de uma cultura, quanto a proibição do aborto estão ligados a formas de continuar oferecendo as mulheres como mercadorias, objetos, retirá-las da posse de seu próprio corpo. Explica não só o passado como explica o reacionarismo que se nota hoje, quando tanto os movimentos feministas crescem, em número e em amplitude de voz, quanto o retorno de ideias antigas de misoginia e controle sobre a mulher. O capitalismo, nos seus primórdios, não inventou a misoginia, mas soube usar todos os seus ecos – religiosos, principalmente – para silenciar aquelas que, diante da fome, diante da espoliação, saíram em protestos; daquelas que, dominando saberes tradicionais, remédios, linguagens, conversavam diretamente com suas comunidades. Mulheres capazes de discernir sobre o mal da desagregação coletiva.

 

Nos estudos sobre a colonização das Américas, Silvia Federici nos dá mais uma face do capitalismo/patriarcado: o racismo. Tanto contra as populações indígenas quanto contra os africanos trazidos para sustentar o trabalho nas terras invadidas, os métodos de câmaras de tortura, genocídio e inferiorização das mulheres foram amplamente utilizados. Ferramentas para um objetivo unificado, preparando um sistema baseado no lucro e na transformação de seres autônomos em força de trabalho alienada. Para a concretização do objetivo, igrejas, cientistas, filósofos, artistas, literatos, humanistas se uniram. É farto o material que não só justifica a misoginia e o racismo, como os “enriquece”. Assim como em determinadas épocas, tudo que acende alguma luz quanto à injustiça social é taxado imediatamente de “comunismo”, também na época da caça às bruxas, qualquer reunião de duas ou mais mulheres era logo taxada de “sabá”. Qualquer mulher independente, fora da regra imposta, era uma serva do diabo e o preço ia de ser marcada a ferro a ter que andar de mordaça na rua, de ter o nariz mutilado a tomar açoites públicos, de ser afogada a ser queimada viva. Métodos que seriam usados com os negros africanos nas colônias.

 

Muitas estudiosas feministas nos dizem que capitalismo e patriarcado são indissociáveis, e que derrubar um exige derrubar o outro. A caça às bruxas mostra que sim. Os homens não só foram coniventes, como se beneficiaram da destruição da autonomia feminina. Não todos, logo se arvoram. Sim, mas as exceções só provam a regra. No início do século XVI na Europa, ou nas colônias espanholas e portuguesas, o mercantilismo preparava o terreno. Limpava o terreno com sangue. O capitalismo/patriarcado/racismo precisava criar uma nova divisão sexual do trabalho e alienar as mulheres quanto à importância de seu papel reprodutivo – não só biológico, mas o de manutenção da mão-de-obra, com os cuidados de limpeza, saúde, planejamento doméstico. Que isso fosse um dom, um fato da natureza, e não um projeto. Não era possível destruir as solidariedades locais sem destruir as mulheres, as lavradoras, as parteiras (com seus conhecimentos sobre reprodução), as curandeiras, as pedreiras, as artesãs, as anciãs sem incutir nelas o medo dos castigos corporais ou da morte, por qualquer sussurro.

 

 

“A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE

 

A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres. Foi, pelo contrário, o primeiro passo de um longo caminho ao “sexo limpo entre lençóis limpos” e à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação. Neste processo foi fundamental a proibição, por serem antissociais e demoníacas, de todas as formas não produtivas, não procriativas da sexualidade feminina.

A repulsa que a sexualidade não procriativa estava começando a inspirar é bem evidenciada pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura, que, assim como os animais em que ela também montava (cabras, éguas, cachorros), era a projeção de um pênis estendido, símbolo da luxúria desenfreada. Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à “velha feia”, que já não era fértil, o direito a uma vida sexual. Na criação desse estereótipo, os demonólogos se ajustavam à sensibilidade moral de sua época, tal como revelam as palavras de dois contemporâneos da caça às bruxas:

 

Acaso há algo mais odioso que ver uma velha lasciva? O que pode ser mais absurdo? E, entretanto, é tão comum(...). É pior nas mulheres que nos homens (...). Ela, enquanto velha megera e bruxa, não pode ver nem ouvir, não é mais que uma carcaça, ela uiva e deve ter um garanhão. (Robert Burton)

 

É ainda mais divertido ver mulheres velhas, que quase já não se sustentam em pé, pelo peso dos anos, e que parecem cadáveres que ressuscitaram, saírem por aí dizendo que “a vida é boa”, ainda excitadas, procurando por um parceiro... sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos, ainda exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar, com trêmulos cochichos, apetites lânguidos, enquanto bebem, dançam em meio a garotas e escrevem cartas de amor. (Erasmo de Rotterdam)”

 

 

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Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva

Silvia Federici

Trad. Coletivo Sycorax

Ed. Elefante

2017