terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Noite de São João, de Natália Agra

 


 


Por Adriane Garcia

 

O filósofo Gaston Bachelard nos diz que “o objeto nos designa mais do que o designamos.” Está com isso fazendo um alerta sobre a “imparcialidade científica”, mas, ao mesmo tempo, está afirmando a carga simbólica e subjetiva que os objetos que escolhemos para o nosso interesse trazem. Em A psicanálise do fogo, Bachelard elegeu o fogo um dos objetos mais dados a subjetividades que existem, daí a dificuldade que foi torná-lo objeto científico. O fogo é, por excelência, um objeto poético.

 

 

A poeta Natália Agra elegeu o fogo seu objeto central no livro Noite de São João.  Desse centro, irradiado (de calor e frio), o livro se expande em duas partes, Fogo-fátuo e Reminiscências, e trata de memória e dor, vida e morte, lembrança e esquecimento. A forma na qual o fogo vai se materializar, na fogueira de São João, traz em si o paradoxo e a antítese. Se as fogueiras de São João se fazem associar com festa (conceito muito bem ilustrado na capa – fotografia de David Carneiro) em Natália Agra também se associam com os mortos.

 

Noite de São João retrata uma espécie de obituário lírico. Um a um, os que se foram. A lembrança, fogo-fátuo, é demonstrada nos seus limites, fagulhas. O que são as reminiscências senão fragmentos? A poeta reclama a voz que não ouve mais, o timbre que se perdeu: “tentei tocar também a voz de minha avó e de meu avô (que morreram tanto tempo antes). não consegui.”

 

No uso de algumas palavras, por vezes recorrentes, a força dos substantivos metaforizados, usados em profundidade, nas suas funções simbólicas: fogo, pássaro, trovão, orvalho, flor, nevoeiro, fumaça. Uma poética que busca no olhar a sua linguagem, nos elementos da natureza a conotação. Utilizando a força dos sentimentos relacionados a perda, Natália Agra mede os versos com um rigor tal que poderíamos atribuir ao seu poema Rigor, que trabalha com a condição de rigor mortis, a classificação de um poema metalinguístico. O poema é o próprio rigor poético.

 

RIGOR

 

de uma só vez empilhar

cuidadosamente

todas as mãos frias

de uma só vez chorar

 

O sofrimento perante a morte dos entes amados é grande e demorado, o poema sugere o desejo de brevidade do sofrimento, abreviando o tempo entre uma morte e outra. O próprio poema é breve. O verbo empilhar é de uma violência atroz; não empilhamos os que amamos, nós os enterramos, ou cremamos, um a um. Mas é cuidadosamente – a poeta invade de amor o poema com um advérbio – como se deve empilhar bons versos. A constatação de que estão mortos, “todas as mãos frias”, traz ao poema uma carga emocional altíssima e, por fim, a síntese esperada da emoção, “de uma só vez chorar”, é a própria síntese alcançada que, certamente, chora todos os mortos de uma só vez em quatro versos.

 

No ato de lembrar os mortos instala-se uma nostalgia da infância, as reminiscências apontam para objetos como uma caixinha de música, que silencia o mundo, ou as flores cultivadas pela avó Amália, por sinal o nome de uma espécie de antúrio; sugerem calma e segurança antes que a morte, este elemento de ruptura veloz, viesse se fazer presente. No poema Pavana para minha irmã morta, isso se mostra claramente; a antítese entre o mundo representado por uma dança com regras, em que todos os passos são calculados e não há surpresas e o mundo do caleidoscópio, onde as vidas e os eventos se recombinam no imprevisível, sem qualquer controle. A leitura de Noite de São João pode fazer acordar uma pergunta infantil: para onde é que as pessoas vão depois que morrem? Para o assoalho da memória dos que ficam é uma resposta possível, e o limbo, palavra também recorrente neste livro é a representação desse assoalho, em que cabem tanto o reviver de um tio amigo quanto a lâmina que dá fim à vida, extingue a pulsação e encaminha a tragédia. As festas de São João, deste modo, se fazem “festas submersas”, o que nos leva ao elemento antípoda do fogo, a água, matéria primordial e uterina.

 

Diante da morte dos seres amados tudo se torna constatação do esquecimento e tentativa de lembrar. Carl Gustav Jung, em O homem e seus símbolos afirma que o ato de esquecer “é um processo normal, em que certos pensamentos conscientes perdem a sua energia específica devido a um desvio da nossa atenção. Quando o interesse se desloca, deixa em sombra as coisas com que anteriormente nos ocupávamos, exatamente como um holofote que, ao iluminar nova área, deixa uma outra mergulhada em escuridão. Isso é inevitável, pois a consciência só pode conservar iluminadas algumas imagens de cada vez e, mesmo assim, com flutuações nessa claridade. Os pensamentos e ideias esquecidos não deixaram de existir.” Noite de São João faz o esforço de procurar este lugar onde o que foi esquecido não deixou de existir e por isso seus poemas constatam que “o passado é uma casa abandonada de onde nunca conseguimos sair” e que essa casa (precário edifício da memória) está “cheia de fantasmas”, afinal, as coisas guardamos é em nós.

 

Quanto ao fogo, continuamos em Bachelard: “O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal.”

 

Em Noite de São João, o fogo revive e consome, empresta aos versos a qualidade do vermelho (chás de hibiscos, noites púrpuras),  sua eternidade não é a eternidade das pessoas, é tanto o crepitar das noites mais bonitas, que acenderam os dias, como o incêndio destruidor e a confusão. O fogo é o estalar da madeira queimando e também o silêncio ensurdecedor que habita o desaparecimento das pessoas. Natália Agra nos faz entrar nos quartos escuros das casas assombradas, os quartos que requerem claridade, luz, fogueira, fogo carregado de simbologias primitivas, tecnologia e mistério. Seus poemas deixam um rastro inteiro de amor: o fogo habitou – e pode arder – onde existe fumaça e cinzas.

 

 

EVOCAÇÃO

 

Para o tio Jonas que, assim como São Francisco, foi um grande protetor dos animais (in memoriam)

 

alguém

dizia: “pula a fogueira!”

no fim da tarde

fechava-se a ciranda

 

ainda respiro

aquele contorno cigano

como vapor na chaleira

 

espeto o milho na brasa

deixo que ardam nos olhos

os últimos anos felizes da família

mesmo que nunca sobrevivam à fumaça

 

sempre que retorno

encontro as janelas cobertas

o jardim vazio, as festas submersas

no esquecimento

de novo a criança soluça

o silêncio absoluto da navalha

 

 

***

Noite de São João

Natália Agra

Poesia

Ed. Corsário Satã

2020

Interiorana, de Nívea Sabino

 





“Eu gasto muito

é com passagem”

(Nívea Sabino, versos iniciais de Lírica de uma favelada,)

 

Por Adriane Garcia

 

O poema permite se dizer e se desdizer. Nívea Sabino, a poeta dos slams, que usa a palavra falada e escrita como arma para a luta e ferramenta para o encontro, escreve: “O inventor do lápis/ é bem mais meu amigo/ que o primeiro humano/ que testou a fala/ e dificultou o meu grito// Meu berro é no verso/ sou toda escrito”. Ela escreve, mas berra, e das duas formas realiza com potência sua poesia, que é toda contra o silenciamento daqueles que a sociedade torna mais vulneráveis. Nívea não só leva seu corpo e voz a serviço da poesia – e do humano – como registra que a escrita é um fator de transformação pessoal, “modificou-se o olhar/ viu a si como antes não vira”, que o olhar se aguça para os fatos (flagrar a finitude na cena do “” na cadeira de balanço, flagrar a violência policial (“quem pratica homicídio/é o Estado”) contra as pessoas negras como continuidade do processo de escravidão.

 

Sua poesia escancara a discriminação social, racial, de gênero, mas também fala da busca de um sentido existencial: o paradoxo da previsibilidade e da imprevisibilidade da vida, inexorável nas suas consequências, “Feto homem/ feto feito/ feito louco/ de repente”. É poesia que pensa a finitude por meio daquilo que está ao alcance das mãos, em um exercício de olhar de poeta: extrair da observação de uma fruta, de uma mexerica, uma reflexão sobre a morte e um cheiro de algo que sentimos, mas não está mais. Nos poemas mais intimistas, Nívea Sabino revela o gesto ensimesmado, interiorano, calado; silêncio necessário para compreender a importância das relações afetivas, principalmente dos amigos (“amigo é família/ que cresceu/ noutro lar”) para aplacar a solidão. O riso surge como símbolo aparente do encontro, da felicidade, ainda que momentânea, que só pode se dar com a outra/o outro. No poema “Roda d’água ou moinho”, é possível perceber como a pessoa-lírica desvendou um mecanismo, o das repetições, o dos nossos erros recorrentes: “A primeira vez que ouvi moinho/ ladainha,/ mira sem direção// Segunda, não/ já aprendi a lição”, assim como percebeu que cada pessoa é única ou que o mundo, com seu machismo, racismo, homofobia, miséria e necropolítica está em um movimento de ruínas.

 

Interiorana também traz muitos poemas de amor. Neles, a pessoa-lírica ri de si mesma, com um certo humor sobre os desencontros amorosos. Fala da timidez de se declarar, do erotismo, das decepções, das expectativas frustradas, como no poema “O tesão e a graça”, em que um só pode abandonar o outro, pois falam línguas completamente diferentes. Em Interiorana, o amor só se torna pleno no corpo e é visto como algo tão longínquo de se realizar como a distância que, aparentemente, nos separa das estrelas; o amor é um desejo a se cumprir, mas que pode levar a muitos equívocos, como o de mendigar amor, pagar qualquer preço pelo que pareça ser amor, migalhas de um olhar. Nessa constatação, um poema dá conta da maturidade:

 

“Legítimo

 

por só

 

fico só

comigo.”

 

A poesia falada, aquela que “não vive presa na livraria” certamente trouxe para o livro muitas de suas características. Um tom de conclamação em alguns poemas, um ritmo que pede a recitação em outros, uma pessoa-lírica que fala diretamente à leitora/leitor, uma preocupação de denúncia, de fazer acordar. Ao mesmo tempo, Nívea Sabino demonstra uma preocupação estética com a palavra escrita, o que se manifesta nos seus muitos jogos silábicos/semânticos ou na forma visual em que a poeta habita a página, como no poema “Amor e casal”, em que o descompasso amoroso leva os versos a dançarem na página, de forma que não poderei reproduzir aqui, “vai um/ pra cá// outro/ pra lá”. Um outro encontro muito interessante entre forma e conteúdo é o poema “Abreviando”:

 

Abreviando

 

Quero ser

pra quem

me serve

 

No mais

serei breve.

 

É interessante notar em Interiorana o olhar de uma poeta que possui a experiência de morar no interior de Minas, mas um interior como Nova Lima que, próximo da capital, cria um trânsito perceptível na sua poesia. Há tanto o poema que se ressente da falta do mar (mineiros sendo mineiros na sua saudade ancestral), como o poema que celebra Belo Horizonte como um lugar lotado de bares. Há tanto o silêncio observador da vida interiorana quanto o barulho dos saraus, dos slams, dos megafones em riste gritando que querem outras cidades, denunciando também o ativismo de sofá e a covardia dos omissos, que ao não deter o mal, participam dele: “Nenhum/ ao meu redor/ impediu o metrô/ de seguir viagem// havia um corpo/ negro/ estendido no trilho (...)”. Interiorana traz a experiência do mato, do cerrado, dos ritos africanos, das casas com quintal, dos pés na terra, das mãos no barro, das crianças que subiam em árvores e colhiam frutas, um afeto pelas pessoas da cidade natal; traz também o terror da mineração, ceifando saúde e vidas.

 

Nívea Sabino constrói poemas cheios de ritmo, comandados por uma musicalidade que usa de aliterações em versos muito bonitos como “moveu-se o mar/ sem derramar” ou “feito cão/ farejo mudo/ imundo mundo/ me faz fadiga”, assonâncias, rimas externas e internas, mas dando a cada poema um tratamento próprio, sem se prender a uma fórmula apenas.          

                                               

Rogério Coelho, poeta e articulador do Coletivoz, em seu prefácio à primeira edição de Interiorana, não chama o livro de Nívea Sabino de livro, mas de “livre”. Àquelas e àqueles a quem foi proibida a subjetividade e seu registro toda a história cultural construída é pura resistência, e creio mesmo que quando escrevem um livro escrevem um “livre”. Se, historicamente, uma mulher escrever representava (representa) uma espécie de transgressão – punida, inúmeras vezes – para a mulher negra representava (representa) uma afronta. Nívea Sabino, em “Na saga das Evaristo”, é imperativa:

 beba na fonte

erga a fronte

 

Negra: afronte!

Dizem que a poesia pode ser muito perigosa, tanto que poetas não são bem-vindos em ditaduras (e o que é a República de Platão – lugar em que cada um tem seu papel pré-definido e poetas são expulsos – se não uma ditadura?). Em sociedades antigas, a poesia era sabida de cor (coração), era dita/cantada a céu aberto, para muitas pessoas. Não havia a concorrência da TV, dos jornais, das rádios, das redes sociais... Era, como o teatro, arte apoiada na oralidade, no poder do encontro físico, e o encontro físico sempre pode potencializar as reações. O poeta e crítico Carlos Felipe Moisés, em seu livro “Poesia & Utopia, sobre a função social da poesia e do poeta” destacou o caráter antipedagógico da poesia, já que ela é aquilo que faz ver algo como se o víssemos pela primeira vez, nisso residindo o seu potencial antipedagógico, pois, visto, o objeto tem que ser desconstruído, “desensinado”, para poder ser visto novamente, mas como se nunca antes. Neste sentido é que a poesia é intrinsecamente rebelde e traz seu potencial revolucionário. Carlos Felipe Moisés ainda nos conta o processo que levou os poetas do encontro com muitos, no mundo público, olho no olho, para a solidão da mansarda, do mundo individual, presos à página e ao silêncio da vida privada, modificando seu impacto político até chegar ao ponto em que a própria linguagem de alguns parece não querer mais se comunicar, reduzida, quando muito, a falar com um grupo de meia dúzia de iniciados.

 

Hoje, a poesia que sai das ruas e vai para os livros ou que sai dos livros e vai para a rua aproxima-se novamente de uma origem, de um cantador. Slamers e rappers desensinando o que aprendemos sobre nós ou o que ensinamos sobre os outros. Nívea Sabino, nos desensina, por exemplo, em “Lírica de favelada” a ver uma pessoa negra, para vê-la pela primeira vez:

 

E desmontar

o ódio e

a aversão à cor

que chegam primeiro

do que quem eu sou

 

Quem já frequenta ou frequentou os slams e saraus da periferia das cidades, sabe que poetas perigosas como Nívea Sabino ainda andam por aí.

 

 MEU TRAÇO

 

Falar sobre mim

é de uma imensidão

sem rastro

 

Transito

me acho

 

No infinito

do que me permito

do que eu faço

 

Não minto

disfarço

 

Caminho

neste mundo vasto

de encontros

de acasos

 

Profundo acaso

ou destino

do meu passo

no sem lugar

para o qual

 

eu me laço

 

***

 

Interiorana

Nívea Sabino

Poesia

2ª edição

Edição independente

2018

 

Contato da autora: nivearp@gmail.com