quinta-feira, 31 de agosto de 2023

COISAS DIFÍCEIS DE RESSUSCITAR, DE JULIANA GARBAYO

 



 Por Adriane Garcia

 

Grata surpresa foi ter em mãos Coisas difíceis de ressuscitar, de Juliana Garbayo, livro com o qual a autora ganhou o Prêmio Digital da Biblioteca do Paraná, em 2021. A coletânea publicada pela Caos e Letras é composta por vinte contos. Primeiro livro da autora, nele já podemos concluir que se trata de uma excelente contista. 

 

Suas personagens e situações são diversas, muitas delas inusitadas, sendo a maioria narrada em primeira pessoa, o que nos aproxima bastante dos seus protagonistas. Juliana Garbayo narra a vida nas suas nuances profundas, a vida como ela é. Flagra as pessoas como elas são, nas intimidades mais recônditas de seus pensamentos e pulsões. Em comum, os contos trazem momentos de trauma ou de suas consequências atuantes, em muitos deles destacam-se a questão da passagem do tempo e da consequente deterioração das relações, principalmente as de casamento. No centro da coletânea, o luto, por vezes a melancolia, a dor das perdas. 

 

Coisas difíceis de ressuscitar é um livro que lemos com o “coração na mão”. A sensação de estar em algum lugar conhecido, pois todos já perdemos algo ou alguém, faz a leitura ser conduzida por muita empatia. É assim que entramos em um quarto de hospital para visitar um rapaz que tem seu pé amputado enquanto seu amor de infância ecoa. Ao mesmo tempo, a autora nos faz perceber as relações que nos rodeiam quando estamos em extrema vulnerabilidade. Para além dos temas, há uma eficácia notável em saber contar literariamente. Juliana Garbayo oferece frases certeiras que aumentam a verossimilhança e nos dão um susto, por constituírem detalhes psicológicos em meio à narração dos fatos; detalhes estes que só poderiam mesmo saber aquele que passa por tal dor: “Glorinha se ofereceu pra carregar a sacola com minha escova de dentes, meu pente e o pé direito do meu tênis, que eu não sabia se devia jogar fora ou não.”

 

Habitadas por gente de carne e osso, as narrativas de Garbayo tratam de alcoolismo, recaídas, rejeição infantil, separações, depressão, vergonha, doença. Encontramos nelas mães cruéis, transtornadas, que competem com as filhas; filhos adolescentes que têm que tomar as rédeas da casa, perda da estrutura familiar e a dura constatação de que a vida tem que continuar sob novas condições. Um fio de tristeza perpassa situações de desamor, a ausência de um pai morto, o terror da anorexia, a solidão, a perda da liberdade em casamentos cuja divisão de tarefas é injusta e desigual, a perda da fantasia. Há um tom de desfazimento que nos diz sobre um mundo antes conhecido que não voltará jamais, a perda de objetos que antes faziam sentido – que davam um sentido à vida – trazendo na sua falta o vazio, a desestruturação emocional e financeira. 

 

Juliana Garbayo oferece uma galeria de coisas que podemos perder, entre elas, notável, aparece nosso convívio amoroso com os animais, seja o coveiro-jardineiro que adotou um bode, seja o homem que chora diante da dor da morte de seu cavalo, a mulher que ama uma porca ou a outra que empalha um cão. Até mesmo um peixinho nos comove. Há também, como no conto O antiquário da Madame Bernard, a perda do glamour, da juventude, a chegada da velhice e as perdas menores, quase não notadas, como um adeus que deixamos de dar a um amigo e simplesmente seguimos em frente. Neste sentido, brilhante a escolha de um antiquário e um brechó como significantes de uma vida que vai perdendo viço: “Quando eu descia do ônibus e pisava aquelas calçadas de granito e pedra portuguesa, tentava imaginar o glamour das épocas passadas, mas só via poças de mijo, guimbas de cigarro, mendigos pedindo esmola e baratas passeando de um lado para o outro. Era irônica a semelhança entre o que o tempo tinha feito com aquela rua e com a Madame Bernard.”

 

Ainda que as histórias sejam tristes, há um humor delicioso, bem medido, aqui e ali na coletânea: “Acho que a Justine confiava demais nos clientes, talvez não acreditasse que alguém roubaria uma grande dama do teatro como ela, mas eu, que já tinha levado pra casa dois dos seus anéis (sem falar numa presilha de cabelo cheia de pérolas falsas e strass), era mais cética.” No seu modo de contar, que encontra diferentes volumes tonais (inclusive formal, como em contos que utilizam uma espécie de associação livre na cabeça das personagens), o que deixa a leitura livre de qualquer cansaço, Garbayo narra coisas que acontecem, gente como a gente que não dá conta de ser “correto” o tempo todo, que deixa as relações sem respostas, que deseja vingança contra os algozes, mas que sofre quando esses amados algozes sofrem. Gente que tem inveja. Gente que perde a sanidade e que passa a viver em uma realidade apartada da maioria. A autora faz isso com uma competência enorme de captar os sentimentos e transmiti-los.

 

Coisas difíceis de ressuscitar é um livro que mantém suas alta qualidade e capacidade de interesse na leitura do primeiro ao último conto. Se as coisas são difíceis de ressuscitar, isso nos leva direto à ideia de morte. Na verdade, um eufemismo – pois precisamos de eufemismos para suportar o real – diante das coisas impossíveis de ressuscitar. É o que cada personagem de Juliana Garbayo vai descobrindo, uns com mais, outros com menos chance de superação. Como excelente contista que é, Juliana Garbayo não julga seus personagens, ela os compreende. E nós também podemos compreender melhor as perdas – e a dor – de todos nós quando passamos um tempo com os habitantes deste livro. 

 

Minhas amigas me estranham por ter empalhado o cão. Imagina se soubessem que me correspondo com um preso violento. Só contei à Jane. Ela se ofereceu pra doar livros, mas o presídio onde ele está fica longe demais. Melhor assim. Jane é muito engraçada. Diz que não acredita em Deus, mas é a pessoa mais santa que eu conheço. Já eu escrevo cartas pra um homem preso porque quero falar de mim mesma. Depois posto foto dos envelopes selados e escrevo Lembrai-vos dos presos como se estivésseis presos com eles. Rende muitas curtidas. Tirei da carta aos Hebreus. Jane é ateia, mas da forma que eu vejo é mais crente do que eu, a diferença é que o deus dela se chama Acaso. Ela diz que é por Acaso que as árvores parecem pulmões; as nozes, cérebros; as frutas, vaginas; os rios, veias. Só pode existir vida no nosso planeta entre cento e sessenta bilhões de outros porque a vida nasceu por Acaso. Uma partícula nadava na sopa molecular e por Acaso começou a se replicar, por acaso o universo explodiu e se expandiu, por Acaso os brotos de samambaia obedecem à mesma proporção que as conchas dos náutilus, por Acaso um homem nasce príncipe na Noruega e outro mendigo em Chade. Quando bebemos vinho juntas, ergo a taça e digo: ao deus mais poderoso de todos, o Acaso, e rio, mas Jane fica passada. Pra ela, o meu Deus não faz sentido e deve ser louco, nada que ele faz tem lógica, criou uma fruta que não era pra comer, deixou seu único filho ser morto e o mundo continuou igual, escolheu o povo hebreu sem qualquer explicação. Eu escrevo para um homicida a mil e trezentos quilômetros de distância e recuso a chamada quando ele liga a cobrar. Ele pensa que sou uma boa mulher. Em sua última carta me pediu pra rezar por ele. Como se minha oração tivesse peso diferente. Uma vez perguntou se aceitaria encontrá-lo, caso saísse na condicional. O bom de conversar por cartas é que você só responde o que quer.

(p. 107/108)







Coisas difíceis de ressuscitar

Juliana Garbayo

Contos

Ed. Caos & Letras

2023