sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A infernização do paraíso (Mina de Morro Velho: as vísceras douradas da maldição), de Rodrigo Leste

 



Por Adriane Garcia



Em A infernização do paraíso, de Rodrigo Leste – livro de poemas que também pode ser lido como um poema longo – o leitor toma contato com uma crítica contundente à mineração, mais especificamente em Minas Gerais. Usando um humor sutil, já no início o poeta marca sua posição como artista, fazendo menção ao famoso poema que Drummond dedicou a Manuel Bandeira, Política literária. No poema de Leste, o verso “Tirar ouro do nariz” se amplia utilizando-se não só do sentido que tem no poema originário, mas no sentido que ganha no decorrer de A infernização do paraíso



Estou no centro da praça,

risco o fósforo e não devo nada a ninguém.

Indivisível como o pirulito

(redundante obelisco)

gozo a vertigem,

a estranha insegurança da liberdade.

Não pertenço a nenhuma confraria,

Clube, milícia ou facção.

Sou desse lugar, e como artista ou poeta

não vou ser reconhecido,

homenageado, incensado,

içado à condição de

“Poeta Municipal”.

“Federal”,

nem pensar:

“Tirar ouro do nariz”

não é a minha vocação.



A extinta Mina de Morro Velho, localizada em Nova Lima, próxima a Belo Horizonte, foi propriedade da companhia inglesa Saint John Del Rey Minning Company a partir de 1834, e chegou a ser considerado o investimento mais lucrativo dos ingleses na América Latina, à época. De 1850 a 1867 manteve a produção de uma tonelada de ouro por ano. Rodrigo Leste conta um percurso de ruínas, não só da exaustão dos recursos naturais, mas da exaustão do trabalhador das minas, em péssimas condições de trabalho, mesmo antes da exploração inglesa.


Estou no ano de 1814.

Somos escravos.

Trabalhamos na lavra pro

homem da batina preta.

Depois de colher todo ouro da superfície,

metemos pólvora na montanha,

buscamos os veios principais,

os grandes filões.

Neste ano,

retiramos das entranhas da terra

16 kilos do mais puro ouro

pro delírio da negra batina.


O livro ultrapassa a extração do ouro e avança para a questão da extração mineral mais ampla, do ferro, da água. Em diálogos com os poetas Carlos Drummond de Andrade (que viu sua Itabira transformada pela mineração) e Dantas Mota (que tem uma poesia profundamente enraizada em Minas Gerais), Rodrigo Leste soma sua voz aos que cantaram o lamento da devastação ambiental e usaram a literatura para retratar a miséria ambiental e humana que a cupidez do lucro deixa para trás após a exploração de uma mina.


A ferida aberta

revelou

meus pulmões arruinados

aos frios

e burocráticos olhos.

Foi comprovada a absurda quantidade

de chumbo que corre em minhas veias.

Finalmente

expediram o laudo:


A devastação da minha saúde

valeu

a indenização

de trinta mil reais.


A Mina de Morro Velho passou por um incêndio em 1867 e um soterramento que matou vários mineiros em 1882. A Infernização do paraíso foi publicado em 2010. O Rio Doce – um paraíso – ainda não havia sido invadido pela lama criminosa da Vale. No sistema em que vivemos, somente o lucro ganha a mais atenta e primorosa manutenção. As barragens em Brumadinho e Mariana aguardavam, silenciosamente, o momento de outros crimes.


Um livro precioso, que trata, com arte, de um assunto urgente.


*** 

A infernização do paraíso

Rodrigo Leste

Poesia

Ed. Mano a Mano

2010

(edição realizada com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte)









sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler



 

Por Adriane Garcia

 

Coletânea com vinte e sete contos, O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, lança luz sobre histórias de breu, apagões de humanidade. É interessante, inclusive, que a primeira história que nos narra se intitule Chiaroscuro. Nesse conto de abertura, que fala sobre racismo, violência policial e estupro, podemos perceber que a autora não organiza o livro em uma gradação confortável; não vai conduzir suas histórias protegendo as sensibilidades, preparando-as para um adiado momento trágico ou um relato de grande degradação; pelo contrário, é desses relâmpagos sobre o breu, desde o início, que todas as narrativas irão se compor.

 

O rinoceronte branco era o último. E foi extinto. Por trás da extinção dos animais está a forma predatória, capitalista, da insanidade pelo consumo a que a humanidade se submeteu, destruindo sua própria espécie, enquanto pensa destruir “apenas” os outros seres do planeta. Uma gota do sêmen do rinoceronte branco poderia ser uma esperança para os utópicos (ou para os cínicos), aqueles que acreditam que a tecnologia trará de volta não apenas o rinoceronte, mas uma humanidade capaz de consertar os seus erros quando já pareça tarde demais. Recriar, pela engenharia genética, o animal extinto significaria que nosso dano é menor. Porém, nem isso; sobre o sêmen do rinoceronte branco, Cinthia Kriemler nos acende um lampejo de paliativo sonho.

 

Nesse livro os contos abordam, principalmente, temas que se desenvolvem nas sombras das relações econômicas, da injustiça social verificada na quantidade de miseráveis. O destaque é para os mais fragilizados: crianças, pessoas negras, mulheres, velhas. No conto Vigília, a morte aparece na vida de uma mulher como uma possibilidade de dignidade jamais alcançada em vida. Em 12h28, outra mulher traz um comportamento de abandono sobre si parecido com o da personagem de Vigília, sua dignidade foi usurpada durante um crime ambiental, quando uma das tantas barragens prestes a estourar em Minas Gerais estourou.

 

Como o alcoólatra do conto Garrafas no jardim, a sociedade, viciada e adoecida, tenta esconder a própria realidade. Ao trazer essas situações e personagens para o foco de sua escrita, Cinthia Kriemler chama para ver o que está diante dos olhos de qualquer um, mas que de tão naturalizado, se ocultou. Se podemos passar pelos moradores de rua e seguir com indiferença à miséria material dos outros, a autora nos coloca, individualmente, diante de alguns deles e nos conta que são humanos. Há um engajamento de alguns narradores que não tem a menor intenção de se disfarçar, “Mas hoje não é a barbárie da indiferença social que me preocupa. É alguma coisa mais evidente, mais urgente”, não querem ser imparciais e julgam a paisagem de ruínas que os cerca. Os personagens narrados não buscam uma identidade individual, porque já a possuem, mas está invisibilizada. A outra identidade, aquela pela qual são reconhecidos, veio de fora; por isso, mais importante do que uma construção psicológica de suas características – os contos se centram muito mais na construção das situações –, os personagens de O sêmen do rinoceronte branco buscam a construção de uma identidade coletiva e, no ápice, um lugar dentro da categoria que se define como humanidade.  Quando no emocionante conto “Não é” a mãe, no necrotério, em negação para reconhecer o corpo do menino assassinado pela polícia, revela seu próprio nome, o nome do pai e o nome do filho, com sobrenome e tudo, está dizendo de suas existências civis, cidadãs, excluídas; está afirmando sobre suas identidades ignoradas pelos outros, porque dentro da coletividade são marcadas pela negação: “Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos.

Outros temas que se destacam nos contos dessa coletânea são a crise dos relacionamentos amorosos do ponto de vista da mulher e o abandono sentido pelas velhas e velhos.  Não raro, as tragédias amorosas em O sêmen do rinoceronte branco estão ancoradas na cultura do amor romântico – cujo destino é sempre a falência – e do machismo, resultando em solidão extrema, como em Bípedes, em que o excesso de sexo (ou o sexo direcionado a qualquer um) aparece como um desequilíbrio, um sintoma da infelicidade (ponto de vista que autora trabalhou no romance Todos os abismos convidam para um mergulho). Em Mesa posta, a comodidade que os parentes encontram no abandono dos velhos, o arrependimento inútil, “a alma arranhada”. Em Assim, o suicídio como solução para os afetos fracassados. Mais uma vez o alcoolismo aparece como problema social destruindo relações familiares, fomentando a violência doméstica, servindo de lenitivo diante das dificuldades da vida e criando outras. Em Aposentadoria, a impossibilidade do sonho de finalmente se aposentar e a pergunta implícita: Quem aposentará a violência ceifadora do Estado?

 

No contexto planetário de degradação do meio ambiente e, no nível brasileiro, de crescente pauperização do corpo social, precarização do mundo do trabalho, extermínio e adoção da necropolítica como gerência de Estado contra os mais vulneráveis, a obra de Cinthia Kriemler vem narrando o seu tempo com as preocupações que o permeiam. Seus contos enfatizam a continuidade das mazelas. O que denuncia é uma imobilidade social – e cultural – em um mundo regido pela lógica capitalista, herdeira do escravismo e da misoginia, pela estética e pela ética do consumo. Ser é ter. E é sobre essa base que os seres que não têm são esmagados e, portanto, não são. Para muitos personagens de Cinthia Kriemler o consumo não é pelo supérfluo, ou pela escalada de status – a que é tão afeita a classe média – mas pelos itens de necessidades mais básicas. Os personagens de O sêmen do rinoceronte branco são subcidadãos, quer pela sua renda, quer pela sua cor, quer pelo seu gênero, quer por sua aparência física, quer por sua idade. Estão situados em uma sociedade padronizadora, que odeia diferentes e os extingue, como fez com o último rinoceronte branco.

 

Com uma escrita ágil, preocupada em dar a conhecer que lugar o indivíduo ocupa na pirâmide social ou a que rótulo está condenado dentro da estrutura capitalismo/patriarcado, frases curtas, fala direta, sintaxe simples, vocabulário atualizado, a autora também indica a preocupação quanto ao acesso de seu texto: é para o maior número possível. Forma e tema, situando-se na máxima de Graciliano Ramos, mestre do escrever com simplicidade, que afirmou que “a palavra foi feita para dizer”.

 

O que a obra dessa autora vem dizendo, com uma luz incômoda, a exemplo do que pode ser verificado indubitavelmente no conto que dá nome ao livro – é:  Se não protegemos nem os filhotes de nossa própria espécie, como protegeremos a nossa casa?

 

 

“Não é

 

Não é ele, doutor. Tenho certeza. O senhor me trouxe até aqui à toa. Isso tudo é um engano. Uma perda de tempo. E eu com tanto trabalho pra fazer. Tenho chão de cozinha pra lavar, casa pra varrer, quarto de criança pra limpar, cachorro pra levar pra passear. Tem louça do almoço na pia, tem lixo no banheiro. Eu não posso ficar aqui, doutor. Ainda mais pra ouvir o senhor dizer besteira. Que o meu menino morreu. Que ele levou tiro da polícia. Que ele tava roubando carro junto com bandido. Bandido fichado. Mas o que é isso, doutor. O meu menino só tem doze anos. Doze. Eu deixei ele dormindo lá em casa. Como eu deixo todo dia. Quatro e meia. É a hora que eu levanto. Pra sair de casa às cinco e pegar dois ônibus até essa casa onde eu trabalho. O meu menino só levanta às sete. E vai direto pra escola. Vai, sim. Ele adora a escola. A professora me disse que ele é bom aluno. Só tem dificuldade em matemática. Como é que ela ia me dizer isso se ele fosse menino de matar aula? Acredite em mim, doutor, o meu menino está em casa. Ou brincando na rua. De pipa, de bola de gude. Ou jogando videogame. Porque hoje não tem aula. É feriado na escola. Verdade. O meu menino não mente pra mim, doutor. Ele não é vagabundo. Ele sabe que tem que estudar. Que não é pra se meter com bandido. Nem com droga. Ele sabe que eu me mato de trabalhar pra dar as coisas pra ele. E não é só comida, não, doutor. É tênis, é camiseta, é bermuda, é óculos de sol, é corrente, é boné. Dei até bicicleta e videogame. Ele tem de tudo, doutor. Ia roubar carro pra quê? Eu já disse que ele só tem doze anos? Não é ele, não, com certeza. Então por que é que o senhor me trouxe pra este lugar horrível? Por que é que eu tenho que olhar pra esse menino aí deitado? O cheiro aqui é ruim. Eu quero vomitar. Eu quero ir embora. O meu menino está lá em casa, doutor. Lá em casa. Eu já disse. O senhor não quer ouvir. Que merda. Presta atenção no que eu tô dizendo, pelo amor de Deus! Eu sei que parece. O meu menino tem uma marca de nascença na coxa. Igual a essa aí. Tem uma tatuagem de caveira que ele fez escondido de mim. Igual a essa aí. No mesmo lugar. O meu menino tem as unhas roídas. E um dedo torto que ele quebrou no futebol. E uma cicatriz de tombo. E o dente da frente com a ponta quebrada. E as orelhas de abano. Como esse aí. Mas esse não é o meu menino. Não importa se os vizinhos viram o roubo, e a viatura que apareceu cantando pneu, e a troca de tiros, e os bandidos que foram todos mortos. Não importa quem disse que era o meu menino que tava lá com uma arma na mão. Não importa se esse daí tinha duas pedras de crack no bolso. Nem sei quem deu o meu nome para o senhor, doutor. Gente má. Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu, sim, senhor. E o meu esposo é o José dos Santos. E o nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos. Mas me escuta, doutor, por favor. O meu menino não tem esse olho arrebentado de bala. Não tem essa cara inchada. Não é gelado assim. Não rouba carro. Esse aí é bandido. É ladrão. É menino que engana a mãe que trabalha fora o dia inteiro. Mãe que sai de casa antes do dia clarear que deixa o filho dormindo que não sabe o que ele faz quando acorda que acredita que ele tá no colégio que pensa que ele é bom aluno que jura que ele é feliz com o tênis, a camiseta, a bermuda, o videogame. Como é que eu vou reconhecer o filho dos outros, doutor? Tá surdo? Eu tô aqui repetindo que esse aí não é o meu menino, caralho. Não é, não é, não é, não é.”

***

 

O sêmen do rinoceronte branco

Cinthia Kriemler

Contos

Ed. Patuá

2020

 

Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici

 


 

Por Adriane Garcia

 

Nesse livro imperdível sobre a história das mulheres, a historiadora Silvia Federici registra o resultado de três décadas de suas vastas pesquisas sobre a caça às bruxas, ocorrida desde o final do século XV e ocupando os primeiros séculos da Era Moderna. Com ápice no século XVI – e não na Idade Média – a caça às bruxas, argumenta a historiadora, foi primordial para a acumulação primitiva, que permitiu o acúmulo de riquezas para a Europa e o desenvolvimento industrial, assim como o próprio sistema capitalista.

 

Traduzido no Brasil pelo coletivo feminista Sycorax (nome da mãe bruxa de Calibã, na peça de Shakespeare, A tempestade), em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, e publicado pela editora Elefante, o livro tem uma edição lindíssima, de 466 páginas de conhecimento, além de belas e impactantes imagens e muita reflexão sobre o papel que o controle do corpo das mulheres ocupa na manutenção do poder no capitalismo.

 

Calibã e a bruxa é dividido em cinco capítulos: O mundo precisa de uma sacudida, onde a autora mostra as lutas camponesas e o processo de consciência de classe, muitas vezes conduzido por mulheres que levavam à contestação das leis e à exigência de direitos, além da participação como lideranças nos movimentos heréticos. É bem interessante notar a ênfase no período feudal, em que a autora descreve uma Idade Média cheia de lutas comunais e rejeitando a ideia de desenvolvimento linear de progresso. O capitalismo não foi algo evolutivo – no sentido do pior para o melhor; foi, na verdade, uma reação a uma consciência coletiva que evoluía. Em A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres, Silvia Federici mostra como a privatização das terras na Europa (os cercamentos, principalmente) e a retirada das terras comunais prejudicaram as mulheres. As desapropriações produziram escassez, aumento da prostituição, incentivo aos estupros e foram acompanhadas da intervenção estatal no mundo do trabalho e na reprodução, usando como método a desvalorização do trabalho feminino e implantando o patriarcado do salário (somente os homens seriam remunerados). Com a mulher reduzida ao mundo privado, e substituindo um bem perdido (a terra) para o homem trabalhador, deixá-la sem salário forçou a obediência ao novo papel.  No capítulo 3, O grande calibã, a historiadora centra-se nos processos de controle do corpo da mulher, considerado um corpo rebelde que precisava por todos os meios – científicos, principalmente – ser domado. Em A grande caça as bruxas na Europa, é possível acompanhar que toda a misoginia plantada a partir da perda das terras e do cerceamento das atividades das mulheres nas comunidades levou a uma naturalização do genocídio das mulheres, culminando no fato de ser a queima das bruxas um espetáculo público. No último capítulo, Colonização e cristianização, a autora mostra como a caça às bruxas na Europa e a caça às bruxas nas Américas fizeram parte de um mesmo projeto e se serviram do mesmo aprendizado nas câmaras de tortura, nos interrogatórios que procuravam o diabo, na demonização das crenças dos nativos, na inferiorização das mulheres; aprendizado que serve à exploração capitalista ainda nos dias de hoje.

 

Calibã e a bruxa faz notar a falta de estudos em Karl Marx, relacionados ao extermínio de mulheres no processo de acumulação primitiva, assim como ao trabalho não remunerado de reprodução da mão-de-obra a que as mulheres ficaram prisioneiras. A autora nota também que Foucault, nos seus estudos sobre poder, violência e corpo não dá importância ao processo específico de controle do corpo feminino, na violência e extermínio realizados na caça às bruxas.   Ao mostrar que um processo de proporções tão gigantescas como a caça às bruxas não obteve a atenção dos dois grandes estudiosos da origem do capitalismo, Silvia Federici denota a importância de se rever os estudos históricos, incompletos, quando metade da humanidade não é levada em conta de modo específico, já que o tratamento da mulher durante a história é bem específico.

 

O trabalho não remunerado das mulheres para suas famílias foi (e é) essencial para a manutenção e reprodução da mão-de-obra no capitalismo. Camuflá-lo a ponto de ele não ser considerado um trabalho foi essencial para aniquilar a autonomia das mulheres e oferecê-las como único bem, para dispor como bem quisesse, uma compensação, a um homem expropriado pelo próprio capital. Entender a guerra contra as mulheres é entender grande parte das engrenagens de poder. É entender que tanto a naturalização do estupro, o seu incentivo por meio de uma cultura, quanto a proibição do aborto estão ligados a formas de continuar oferecendo as mulheres como mercadorias, objetos, retirá-las da posse de seu próprio corpo. Explica não só o passado como explica o reacionarismo que se nota hoje, quando tanto os movimentos feministas crescem, em número e em amplitude de voz, quanto o retorno de ideias antigas de misoginia e controle sobre a mulher. O capitalismo, nos seus primórdios, não inventou a misoginia, mas soube usar todos os seus ecos – religiosos, principalmente – para silenciar aquelas que, diante da fome, diante da espoliação, saíram em protestos; daquelas que, dominando saberes tradicionais, remédios, linguagens, conversavam diretamente com suas comunidades. Mulheres capazes de discernir sobre o mal da desagregação coletiva.

 

Nos estudos sobre a colonização das Américas, Silvia Federici nos dá mais uma face do capitalismo/patriarcado: o racismo. Tanto contra as populações indígenas quanto contra os africanos trazidos para sustentar o trabalho nas terras invadidas, os métodos de câmaras de tortura, genocídio e inferiorização das mulheres foram amplamente utilizados. Ferramentas para um objetivo unificado, preparando um sistema baseado no lucro e na transformação de seres autônomos em força de trabalho alienada. Para a concretização do objetivo, igrejas, cientistas, filósofos, artistas, literatos, humanistas se uniram. É farto o material que não só justifica a misoginia e o racismo, como os “enriquece”. Assim como em determinadas épocas, tudo que acende alguma luz quanto à injustiça social é taxado imediatamente de “comunismo”, também na época da caça às bruxas, qualquer reunião de duas ou mais mulheres era logo taxada de “sabá”. Qualquer mulher independente, fora da regra imposta, era uma serva do diabo e o preço ia de ser marcada a ferro a ter que andar de mordaça na rua, de ter o nariz mutilado a tomar açoites públicos, de ser afogada a ser queimada viva. Métodos que seriam usados com os negros africanos nas colônias.

 

Muitas estudiosas feministas nos dizem que capitalismo e patriarcado são indissociáveis, e que derrubar um exige derrubar o outro. A caça às bruxas mostra que sim. Os homens não só foram coniventes, como se beneficiaram da destruição da autonomia feminina. Não todos, logo se arvoram. Sim, mas as exceções só provam a regra. No início do século XVI na Europa, ou nas colônias espanholas e portuguesas, o mercantilismo preparava o terreno. Limpava o terreno com sangue. O capitalismo/patriarcado/racismo precisava criar uma nova divisão sexual do trabalho e alienar as mulheres quanto à importância de seu papel reprodutivo – não só biológico, mas o de manutenção da mão-de-obra, com os cuidados de limpeza, saúde, planejamento doméstico. Que isso fosse um dom, um fato da natureza, e não um projeto. Não era possível destruir as solidariedades locais sem destruir as mulheres, as lavradoras, as parteiras (com seus conhecimentos sobre reprodução), as curandeiras, as pedreiras, as artesãs, as anciãs sem incutir nelas o medo dos castigos corporais ou da morte, por qualquer sussurro.

 

 

“A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE

 

A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres. Foi, pelo contrário, o primeiro passo de um longo caminho ao “sexo limpo entre lençóis limpos” e à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação. Neste processo foi fundamental a proibição, por serem antissociais e demoníacas, de todas as formas não produtivas, não procriativas da sexualidade feminina.

A repulsa que a sexualidade não procriativa estava começando a inspirar é bem evidenciada pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura, que, assim como os animais em que ela também montava (cabras, éguas, cachorros), era a projeção de um pênis estendido, símbolo da luxúria desenfreada. Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à “velha feia”, que já não era fértil, o direito a uma vida sexual. Na criação desse estereótipo, os demonólogos se ajustavam à sensibilidade moral de sua época, tal como revelam as palavras de dois contemporâneos da caça às bruxas:

 

Acaso há algo mais odioso que ver uma velha lasciva? O que pode ser mais absurdo? E, entretanto, é tão comum(...). É pior nas mulheres que nos homens (...). Ela, enquanto velha megera e bruxa, não pode ver nem ouvir, não é mais que uma carcaça, ela uiva e deve ter um garanhão. (Robert Burton)

 

É ainda mais divertido ver mulheres velhas, que quase já não se sustentam em pé, pelo peso dos anos, e que parecem cadáveres que ressuscitaram, saírem por aí dizendo que “a vida é boa”, ainda excitadas, procurando por um parceiro... sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos, ainda exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar, com trêmulos cochichos, apetites lânguidos, enquanto bebem, dançam em meio a garotas e escrevem cartas de amor. (Erasmo de Rotterdam)”

 

 

***

 

Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva

Silvia Federici

Trad. Coletivo Sycorax

Ed. Elefante

2017

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Coração cansado, de Michaela v. Schmaedel

 



Por Adriane Garcia

 

Carl Gustave Jung afirmou que o coração é o arquétipo central. Tudo o que nos afeta mais profundamente, dizemos que é no coração. Ao coração atribuímos o papel de repositório do amor, da bondade, do ódio, da dor e da solidão. Não raro, ouvimos que “o coração quase saiu pela boca” ou que alguém ficou com “o coração na mão”. No Hinduísmo, ele é a morada de Brahman e Krishna. Para alguns povos antigos na América, ele era o centro da vida e da renovação; são comuns as expressões “Você tem Deus no coração” ou “Você não tem Deus no coração” para atribuir a alguém qualidades do bem ou do mal. Uma pessoa fria possui um “coração de pedra”. Confúcio ensinou que “O homem verdadeiro deve encarar de frente o seu coração.”

 

Neste livro inaugural de Michaela v. Schmaedel, a poeta estampa no título um símbolo por excelência, um algo material e um algo metafórico de significado (portanto, entendimento) universal: Coração cansado. Composto por cinquenta e nove poemas, em que se privilegia a síntese e a reflexão por meio de imagens e cenários sugestivos, Coração cansado situa-se em torno de um tema: o luto.

 

No livro Luto e melancolia, Sigmund Freud, tece os esforços para diferenciar um estado do outro, sendo o luto o processo necessário, natural e circunscrito em determinado espaço de tempo, enquanto a melancolia se faz como adoecimento; “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Explicando o processo natural e laborioso da superação da perda, Freud fala de uma “devoção ao luto”, “devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses”.

 

Podemos ler Coração cansado como um livro de “devoção ao luto”, mas também de devoção à luta. A ausência/presença de um pai, que amou e foi amado, marca suas páginas e sua geografia/temporalidade: tempo suspenso, cenário paralisado. A voz narradora luta nas páginas para fazer seu trabalho interior. E eis algo muito interessante: que a poesia e a psicanálise estejam tão próximas, pois a poesia é, antes de escrever, um trabalho de escuta; e é durante a escrita, um trabalho de escuta; e pode até mesmo, lida por outras pessoas, ser um trabalho de escuta que coincide com a experiência de quem lê, seja pela identificação, seja pela recusa. A psicóloga Renata Lisboa Machado, em A psicanálise em diálogo com a poesia: dimensões da experiência, estuda as similaridades entre estes dois ofícios para os quais “a metabolização das sensações e percepções, são instrumentos de trabalho”.

 

Os elementos que Michaela v. Schmaedel traz, em diversos poemas, chamam a atenção por algumas recorrências (o luto é um trabalho circular até que se resolva): Luz, olhos, fogo, incêndio; respiração, ar, asfixia; morte, gigante pássaro sem asas, noite, escuridão, luto; incêndio, ruínas, Museu, memória, nós; morte, amor, morte sim, amor talvez. Todos esses elementos vão compondo um modo de ver, sentir, concluir, profundamente abalado pela perda. O luto é uma lente. Algo se desordenou no mundo e é preciso refazer – o poema, mais que artefato, é a própria reconstrução. O primeiro poema de Coração cansado, Mar aberto, já dá conta da importância do ser perdido, pois ele se confunde com a própria vida de quem narra: “Naquele dia/em que você me puxou/ pelo braço/ com força/ para cima/ eu já não respirava.”

 

Como se depreende de Mar aberto, a ideia de salvamento é uma constatação e um desejo, um salvamento que já houve (memória) e um salvamento por fazer-se. Parte dessa luta por salvar-se (da falta, da saudade) vai migrar da forma interior e expandir-se em direção ao outro. A emoção (e na etimologia desta palavra está o sentido de “mover”) vai se deslocar do diálogo consigo para se comunicar com mais alguém. Enquanto faz isso, a poeta elabora lições que, no livro, intitula como sendo duas: Lição I, e Lição II. Mas na verdade, são muitas as lições em Coração cansado. Michaela v. Schmaedel vai elaborando sabedoria da dor. Os poemas trazem, muitas vezes, lições práticas, como neste fundamental, À mesa: “Esperar pela morte/ como quem espera/ pelo jantar:/ sem reclamar demais.” Ou este Estratégias para entrar e sair de crises: “Entre na crise/ saia da crise/ entre na crise/ saia da crise/ entre na crise/ saia para beber.”

 

Com a escolha de usar poucas palavras, cotidianas, simples, comunicáveis de imediato, ao mesmo tempo em que se recusa ao edulcoramento ou ao sentimentalismo, Michaela v. Schmaedel constrói um livro que destaca a palavra coração, tão fácil de sentimentalizar, mas que trabalha como se esculpisse sobre a pedra. Nos versos de Humanidade, que remete tanto ao poema de Ferreira Gullar, Traduzir-se, quanto à letra de Osvaldo Montenegro, Metade, fica um retrato das constatações feitas na coletânea: “Metade pedra/ e a outra metade também”. Coração cansado trabalha com a dureza, com certa frieza de quem acabou de presenciar o “gigante pássaro sem asas”, mas burila o mineral/palavra, esculpe (reduzindo ao essencial) o sentido da sua liberdade e libertação. Palavra e ato para o luto. No poema Contenção de custos, a aparente frieza se destaca ao afirmar que “É preciso diminuir de altura quando se envelhece” para concluir que um caixão menor dá menos gasto para a família do morto. Frieza aparente, no entanto, pois há ironia e crítica social no poema, já que o ato de olhar a frieza do mundo é, na verdade, dar a máxima importância a esse estado de coisas. Não há indiferença. A poeta coloca sua imaginação a serviço da traição do ordinário (este o trabalho da poesia, seja em tema e/ou forma) e traz a morte para o diálogo; ouve a lição de Confúcio e encara o seu coração de frente.

 

Nos poemas de Coração cansado, como um recurso minimalista, os títulos são algo que não pode passar despercebido para quem lê, funcionando quase como um verso, ou uma chave. Aqui, temos o exemplo do poema Amor: “Que não seja a morte/ a única que mostre seus/ argumentos definitivos’. A poeta economiza palavras, porque sabe bem aproveitar todas. Os poemas crescem em sentido porque utiliza ferramentas poderosas como um certo humor trágico, ironia, personificação, antíteses, paradoxos, ótimas metáforas.  Assim, ironicamente, o fogo (luz) pode nos deixar no breu, a luz pode apagar a luz, e a poeta convida: “venha ver o fogo/ essa escuridão”.

 

Na escuridão, luto, a evocação da lembrança insiste e se instala no cotidiano quanto mais a pessoa amada é ausente. A ausência instaura a presença, ou melhor, a onipresença: “teriam então que acabar todas as pinturas de homens tristes para acabar também isto: “a lembrança de ti em lugares estapafúrdios”. Na morte, é comum o apelo à religião, mas a religião não responde aos anseios da voz que narra em “Coração cansado”, não é uma resposta, “melhor nos virarmos com a literatura”. Em Zen, o título é a própria ironia, já que o poema revela a impossibilidade de alcançá-lo. Em “Previsão” o clima nublado e pesado serve para mostrar a pequenez do ser diante da existência. Não é a integração, mas a desintegração a matéria do luto.

 

Como não poderia deixar de ser, o poema Pai (III) é emocionante e é o poema em que a poeta discorre em versos mais longos, de forma mais explícita com relação à perda de um ente amado. Como um choro que não mais se conteve, em Pai (III) as palavras se deixam escorrer, o que faz o projeto ainda mais verdadeiro. Um momento de não contenção.

 

Voltamos a Freud, agora em A transitoriedade: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”. É por isso que, após a morte dos que amamos, lamentamos tudo o que não fruímos ou sublinhamos neste amor, tudo o que fizemos de forma trivial e que, após a perda, torna-se sentimento hiperbólico. Mas a vida continua e a soma das satisfações que ela nos dá providencia que o luto seja uma fase e não necessariamente uma patologia crônica. Se um poema como Minimalismo (“o cheiro da toalha que seca ao sol/ o cheiro do sol/ o sol”) nos habita, poderemos fazer como Ulisses:

 

Elpenor

(Para Ismar Tirelli Neto)

 

A Odisseia, rapaz,

não é sobre viajar

ver Circe ou voltar de Hades

nem sobre contar as glórias das guerras

ou os infernos do submundo.

A Odisseia, rapaz,

tem a ver com sair de casa

e voltar vivo.

 

 

***

Coração cansado

Michaela v. Schmaedel

Poesia

Ed. Penalux

2020

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Hidroavião, de Alberto Bresciani


 

Por Adriane Garcia

 


Hidroavião”, este excelente livro de Alberto Bresciani, divide-se em três partes: Água, Terra e Ar. Um hidroavião, além de voar, faz o trabalho de pousar tanto em terra quanto em meio aquático. Esses detalhes são interessantes quando vamos falar de um livro que efetua metamorfoses.

 

Em “Incompleto movimento”, o poeta centrou-se mais na subjetivação lírica. Em “Sem passagem para Barcelona”, deu destaque a um cenário cinza de incomunicabilidade – tema recorrente na poesia de Alberto Bresciani  e em "Fundamentos de ventilação e apneia", expôs o homem como seu próprio predador. Neste “Hidroavião”, ele nos traz as questões do incômodo e do cansaço.

 

Exausto da luta diária de subir e descer a montanha, levando novamente a pedra, o poeta possui uma nave (poesia) incomum, com uma espécie de flutuador no casco. Do alto, a visão panorâmica permite que observe e registre os passos daqueles que o cercam – ou melhor – que partilham da mesma maldição: existir. Na água, pode ouvir o silêncio dos peixes, estar nos lugares perdidos onde foge das multidões e das autorizações de voo.

 

Na terra, transmutado anfíbio (a aterrissagem é sempre mais difícil), cumpre a sua sina com outros sete bilhões de prisioneiros, onde vive a desilusão dos dias, as perdas evitáveis e as inevitáveis, enquanto sonha com o céu: um lugar em que, fatalmente descobre, há anjos invisíveis que prometem e não cumprem. O céu permite apenas cartografar.

 

Dito assim, parece que a poesia de Alberto Bresciani será de tal peso, que não há maneira de seu hidroavião decolar. Ledo engano. Sua poesia é plena de beleza e profundidade, sensibilidade e exatidão. É na carpintaria perfeita do poema que ele cria a sua aerodinâmica. O anfíbio de Alberto Bresciani faz exatamente o que ele quer e leva o leitor na sua viagem, que se torna, por identificação, a viagem do leitor; afinal, Alberto Bresciani fala de temas universais e de angústias a todos comuns.

 

Ler “Hidroavião” é tomar contato com uma poesia nada conformada:

 

Fujo dele algumas vezes,

como agora,

aqui no telhado,

atirando pedras

para cima.”

 

O poeta desenvolve um eu-lírico cuja consistência é a de um personagem muito bem caracterizado. É possível reconhecê-lo do início ao fim do livro. Um personagem que pede socorro contra a apatia e os números de identidade nos quais nos tornamos, em um mundo que muda apenas superficialmente. Um personagem que precisa da fantasia – transformar folhas em peixes – para dissimular desejos, já que não serão realizados. Há mesmo uma sensação de que é impossível estar em paz, quando tudo o que se quer é muito simples.

 

Hidroavião” é um livro cuja leitura se assemelha à leitura de uma narrativa longa. Nele, um poema reforça o outro. Do mundo interior, subjetivo, o menino que ainda não encontrou sua segunda asa e por isso o voo ainda é uma impossibilidade, chega à guerra maior, que se mistura à guerra privada, das perdas pessoais. A solidão é irremediável, ainda que haja o encontro:

 

A sua mão

sobre a pele

não evita as cicatrizes

 

Há uma dureza inequívoca e momentos em que o lirismo alcança um ponto alto, como no poema “Caligrafia”. Mais adiante, quando o personagem se transmuta em Franz, o leitor encara a pureza, a ingenuidade de alguém que não cabe no mundo. Às vezes, como no poema “Melhor”, acontece de haver o novo, uma redenção, mas isso só ocorre após a destruição, como se dela não fosse possível escapar.

 

Pousado na terra, o poeta não escapa do seu tempo e das injustiças sociais. Neste “Hidroavião”, Alberto Bresciani traz um olhar para os despossuídos, os refugiados, os famintos, as crianças abandonadas, armadas, mortas; as guerras, os tsunamis, os terremotos, as deflagrações suicidas.

 

O país em que vivem

está encharcado de certa radiação

que compromete seus nomes,

sua compreensão

 

O piloto deste Hidroavião não encontra seu lugar: na terra, a salvação poderia vir das águas; nas águas, é preciso salvar-se de um afogamento. No ar, há um tempo limitado para a duração dos combustíveis. O sonho de Ícaro persiste, porque não se realiza: enquanto plaina sobre a cidade, o piloto pode concluir que viver é um exercício de heroísmo silencioso e feito de repetições. A poesia buscará os lugares onde há luz, pois é dela o contraste: o breu. Alberto Bresciani sabe e voa para testar limites. Da experiência, traz aquelas constatações que só quem chegou perto, a ponto de se queimar, nos conta:

 

Contra o sol,

não há luz”.

 

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Hidroavião

Alberto Bresciani

Poesia

Ed. Patuá

2020


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Este texto foi escrito como prefácio de Hidroavião.


sexta-feira, 31 de julho de 2020

Urubus, de Carla Bessa




 

Por Adriane Garcia

 

 

Urubus, de Carla Bessa, apresenta-se como um livro de contos; porém, situa-se naquele conjunto de obras literárias que mostra como são fluidas e transversais as fronteiras dos gêneros.

 

Nos dezoito contos do livro é possível identificar o mesmo narrador, ainda que haja narração em terceira e primeira pessoas do singular e um conto na terceira pessoa do plural. É que o narrador de Carla Bessa narra os fatos exteriores e, repentinamente, é puxado para o fluxo psicológico do personagem; uma voz reconhecível perpassando as histórias, o mesmo tom. O recurso funciona deliciosamente porque a leitora/o leitor fica com uma sensação indefinida de não saber se o narrador interrompeu ou foi interrompido por seu próprio personagem. Aquilo que seu personagem não sabe sobre si, seu narrador também parece não saber, ora conhecendo os fatos, ora tendo consciência deles apenas no momento em que o personagem toma a palavra. Toda essa movimentação narrativa de dentro e de fora oferece uma grande naturalidade e movimento ao que está sendo contado, enquanto contribuem para tornar menos pesado o que nos temas tratará de algumas de nossas maiores misérias.

 

O conflito central que Carla Bessa traz para Urubus é a miséria material. Não por acaso, a obra se inicia com o conto homônimo ao título do livro, em que o cenário é um lixão. Impossível ler o conto Urubus e não se remeter ao poema O bicho, de Manuel Bandeira. Mas se em O bicho, Bandeira flagra o que sabemos e fingimos esquecer, “O bicho, meu Deus, era um homem” – daí o susto, Carla Bessa nos aproxima ainda mais da cruel notícia: antes, o bicho era uma criança. Em Urubus os contos se desenvolvem a partir de conflitos individuais, mas subjaz o motor do conflito coletivo: a desigualdade econômico-social, principalmente nos centros urbanos.

 

Próximo ao realismo social, tão aflorado nos pós-guerras, a escolha por este viés denota a batalha perene em que se encontra o cenário de Carla Bessa. Urubus expõe a pobreza a que são relegados os trabalhadores brasileiros e suas famílias, ainda que nem todos os contos apontem diretamente para essa denúncia. E este é um grande mérito do livro: que as vidas se entrelacem a partir de algum lugar em que deixar uma criança comendo lixo afete a todos, instaurando um caos que se naturaliza, a ponto de não sabermos mais o que é causa e o que é consequência. A ave que remete à podridão, que come carne se decompondo, sobrevoa tanto a carcaça física das pessoas quanto a carcaça moral de um país. Temos a impressão de que até a infelicidade no casamento ou a solidão extrema em um asilo poderiam ter sido evitadas se tivéssemos dado condições de vida decentes para todos.

 

Se o caráter de escritora que se compromete com a transformação da sociedade, denunciando suas mazelas, faz com que exponha cruelmente a fome, a morte violenta, o assalto induzido pela pobreza, a perda da infância, a violação dos direitos trabalhistas, a imundície e a discriminação contra as minorias, os riscos do aborto ilegal para a mulher, o estigma sobre a relações homoafetivas, isso tudo é feito tão habilmente que não há detrimento da preocupação estética, em um texto que chega a ter uma musicalidade poética (como demonstra o trecho ao fim desta resenha), tampouco são deixadas de lado questões puramente existenciais – em tudo, a busca de algum amor. Ao adotar um tempo cíclico e não um tempo linear, Carla Bessa funde tema e forma e, como no planar dos urubus, movimenta o mundo que lemos (e vivemos) como quem nos diz que só há saída rompendo o círculo. Mas diz sem dizer. O narrador de Urubus não toma partido, apenas observa e se alimenta.

 

Com engenho na construção das frases, sem rebuscamento ou desperdício, Urubus nos leva para um texto ágil, que sabe aproveitar os sentidos. Aqui, um excerto do conto “Todo sábado todo domingo”:

 

Com olhos distantes vai tirar os pãezinhos de queijo do freezer, será que ele casou, que amou, que teve filhos e netos? Aparecida só sabia do seu fim, trágico, no meio de uma praça, um assalto bobo, bobo, não era para ter reagido, ele sempre foi esquentado. Parece que jogava damas com um amigo. Os pãezinhos congelados na mão, ela joga sobre a mesa, o frio e a morte assim à toa arrepiam Aparecida.”

 

Tanto o lixão quanto o urubu são realidades e são metáforas. No sistema de produção e consumo das coisas há falta e desperdício. O resultado de um sistema baseado em coisas é a coisificação do humano e dos outros seres que também habitam o planeta. Há, com isso, um problema ambiental: o país não resolve nem o problema do lixo, nem o problema da fome. Estudos especializados mostram que 6,9 milhões de toneladas de lixo sólido não são coletadas pelos serviços de limpeza pública e têm destino desconhecido. Do lixo que é coletado, quase metade é descartada de forma inadequada, cerca de 30 milhões de toneladas. Essa enorme quantidade é enviada a lixões que não têm sistemas para proteção do solo, das águas ou das comunidades no entorno (Dados do Plano Nacional de Resíduos Sólidos-2017). O resíduo, em muitos casos, acaba se transformando em alimento, transmitindo doenças.

 

No círculo inteligente e sagaz que Carla Bessa constrói em Urubus para reproduzir o círculo que percebe na realidade brasileira (e na vida, de forma holística), a proliferação dos lixões transmite também a infâmia. É um problema moral quando a fome cria o homem-chorume do conto Urubus. É um problema moral quando a família traz a avó idosa para casa (Todo sábado todo domingo), como uma agregada, sem jamais incluí-la, deixando claro que ela não faz parte daquele grupo, não permitindo (símbolo) que ela partilhe os mesmos objetos dos demais. É um problema ambiental, que afeta a todos, porque tudo está ligado nas nossas pequenas tragédias cotidianas. De maneira que Carla Bessa constrói uma narrativa de contos que coloca um dos pés no outro lado da estrada, a do romance. Porém, não faz isso para provar qualquer virtuosismo, mas porque encontrou a exata forma daquilo que, parecendo independente entre si, ganha contornos necessários para a visão do todo quando se junta. É o voo do urubu que, do alto, oferece-nos o panorama não da vida de uma mulher, um homem, uma criança, mas de uma humanidade; que, rasante, nos coloca tão próximos dos personagens que podemos lhes sentir a respiração e o medo e que, pousado, conta-nos que cheiro temos.

 

“Zezinho liberto pisa naquele peito, nos braços, o homem afunda afunda. Zezinho desacorrenta a raiva o medo, pula em cima do esfarrapado, dá chute na cara suja da criatura. A cabeça vira bola, rola de um lado para o outro, resfolegando colada na sola do menino. Por fim o corpo pende para o lado, descamba para dentro de um desnível uma vala, Zezinho não tinha visto, quase vai junto.

 

De repente, do rabo do olho, ele advinha o pai acenando, ô, vem cá moleque, tô te chamando! Zezinho plantado-estatelado, não se mexe nem a cabeça vira. Agora o olhar pregado no deslumbre do homem escorrendo para dentro da terra, esfarelando-se, liquefazendo. Zezinho fica com medo, será que matei o sujeito. Nisso, sente uma mão embrutecida um tentáculo sobre o ombrinho pontudo de tão magro, um susto da porra, o menino quase desmaia. Mas era só o pai, a boca anunciando, esse aí, dizem que ele vive aqui. É o homem-chorume, o fantasma, o anjo do lixão. Não mexe com ele, não. Aí Zezinho aprende que o ser humano no lixo falta pouco para ser lixo humano. Zezinho compreende que aquele é ele dali a alguns anos.”

 

(excerto do conto Urubus, p. 13)

 

 

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Urubus

Carla Bessa

Contos

Ed. Confraria do Vento

2019