sábado, 25 de maio de 2019

O último voo do flamingo – de Mia Couto




Por Adriane Garcia


Romance lindíssimo, recheado de lirismo e reflexão. Em O último voo do flamingo, Mia Couto narra um Moçambique pós-guerra civil, em que os caminhos estão minados e pessoas explodem nas ruas. O mistério se dá quando essas explosões começam a acontecer com os soldados da ONU, de maneira inusitada: os soldados explodem sem deixar restos, exceto os órgãos genitais e o boné do uniforme.

Em busca da explicação, um emissário italiano, Massimo Risi, é enviado à Tizangara, cidade onde se passa a ação. Um tradutor, morador local, lhe é indicado. No decorrer da história, vemos que o narrador não é para traduzir as palavras, mas o mundo que Massimo não entende. E é este tradutor que conta a história em primeira pessoa.

Das relações que surgem entre o emissário italiano, o tradutor, Ana Deusqueira (a prostituta), Temporina (a jovem amaldiçoada com cara de velha), o velho Sulplício, Zeca Andorinho (o feiticeiro), o padre Muhando, o administrador Estêvão Jonas e outros, o fio condutor se desenvolve para criticar o colonialismo, mas também a dependência pós-colonial, os efeitos da dominação estrangeira e da guerra, a ganância e a corrupção das autoridades locais, a traição aos anseios populares de justiça social feita por aqueles que juraram defendê-la enquanto eram da guerrilha, o esquecimento da ancestralidade.

Um romance cheio de nuances e riquíssimo em imagens, em uma história que emociona e nos leva para um dos solos da África. Entre a realidade e o maravilhoso, Mia Couto consegue o pacto com o leitor de levá-lo a uma Tizangara mágica, em que feitiçaria e política se encontram.


O senhor se cuide, Massimo Risi: a boca é grande e os olhos são pequenos. Ou como se diz aqui: o burro come espinhos com a sua língua suave. É que isso aqui é mais perigoso do que o senhor pensa. Perigoso por quê? O senhor vai descobrir como o pato. Sim, como o pato que descobre a dureza das coisas só depois de partir o bico.
É que no meio de tudo há sangue, mortos a quem não cobriram o rosto. Esses mortos dormiram no relento, impurificaram a noite. Para o senhor, com certeza, isso não traz gravidade. Aqui não é a morte, mas os mortos que importam. Entende? Ainda vai morrer mais gente, lhe asseguro. Não faça essa cara. Eu espero que a desgraça lhe passe nas costas, a si que me parece um homem bom.
Fui mandada para aqui pela Operação Produção. Quem se lembra disso? Atafulharam camiões com putas, ladrões, gente honesta à mistura e mandaram para o mais longe possível. Tudo de uma noite para o dia, sem aviso, sem despedida. Quando se quer limpar uma nação, só se produzem sujidades.
Em Tizangara até me receberam bem. Esta gente se afastava, como não querendo ser contaminada. Contudo, não me maltrataram. No início eu me sentia como numa prisão, sem grades, mas cercada por todo o lado. Eu estava como o prisioneiro que encontra no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E pergunto: Por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade.”  (p. 177/178)
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O último voo do flamingo
Mia Couto
Romance
Cia das Letras
2005

domingo, 12 de maio de 2019

O feminismo é para todo mundo, políticas arrebatadoras – Bell Hooks




Por Adriane Garcia
O livro O feminismo é para todo mundo (ed. Rosa dos Tempos), de Bell Hooks, trabalha em linguagem simples (um objetivo declarado da autora) um pouco da história e crítica do feminismo contemporâneo, com ênfase no feminismo visionário, ou seja, aquele que não quer nenhuma espécie de sexismo, nem do homem sobre a mulher, nem da mulher sobre o homem, buscando a igualdade social, política e uma cultura de colaboração.

Para além das reformas que o feminismo já alcançou e quer alcançar, Bell Hooks destaca que o sistema capitalista patriarcal de supremacia branca é a estrutura central sobre a qual o sexismo se estabelece, de maneira que é necessário derrotá-lo. Deste modo, o livro discute também a questão de raça dentro do movimento feminista e os desdobramentos de conflito quando a demanda de mulheres brancas que já alcançaram postos na estrutura do sistema não coincide com a demanda das mulheres trabalhadoras pobres e/ou negras, para quem o trabalho existe desde que o mundo é mundo, mas é trabalho que jamais libertou essas mulheres.

A autora, em capítulos curtos, discute os tópicos “políticas feministas”, “conscientização”, “a sororidade ainda é poderosa”,  “educação feminista para uma consciência crítica”, “nosso corpo, nosso ser, direitos reprodutivos”, “beleza por dentro e por fora”, “luta de classes feminista”, “feminismo global”, “mulheres trabalhando”, “raça e gênero”, “pelo fim da violência”, “masculinidade feminista”, “maternagem e paternagem feministas”, “casamento e companheirismo libertadores”, “uma política sexual feminista”, “alegria completa: lesbianidade e feminismo”, “amar novamente: o coração do feminismo”, “espiritualidade feminista”, “feminismo visionário”.

Um livro interessante, excelente, inclusive, para quem estiver se iniciando no assunto, já que o feminismo é um dos mais importantes  movimentos e temas de nossa época.

"Se mulheres e homens querem conhecer o amor, precisamos aspirar ao feminismo. Porque sem o pensamento e a prática feministas não temos a base necessária para criar laços de amor. No início, profundas frustrações nos relacionamentos heterossexuais levaram várias mulheres a aderir individualmente à libertação da mulher. Várias dessas mulheres se sentiram traídas pela promessa de amor e felicidade para sempre quando elas se casaram com homens que rapidamente se transformaram de príncipes charmosos a senhores feudais patriarcais. Essas mulheres heterossexuais trouxeram para o movimento sua amargura e raiva. Elas juntaram seu coração partido com o de mulheres lésbicas que também se sentiram traídas em laços românticos  fundamentados em valores patriarcais. Consequentemente, quando a questão era o amor, o ideal feminista no início do movimento era de que a liberdade da mulher existiria somente se as mulheres se desapegassem do amor romântico.
  Nosso anseio por amor, conforme ensinadas nos grupos de conscientização, era uma armadilha sedutora para nos manter apaixonadas por amantes patriarcais, homens ou mulheres, que usavam aquele amor para nos dominar e subordinar. (...)" p. 145/146




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O feminismo é para todo mundo
Políticas arrebatadoras
Bell Hooks
Teoria feminista
ed. Rosa dos Tempos
2019