domingo, 23 de junho de 2019

Encarceramento em massa – de Juliana Borges







Por Adriane Garcia


Livro essencial, Encarceramento em massa (ed. Pólen), de Juliana Borges, faz parte da coleção Feminismos plurais, coordenada por Djamila Ribeiro.

O livro se apresenta em três partes: “Breve histórico: Punição e aprisionamento. Qual ideologia?”, “Brasil: Ideologia racista e sistema de justiça criminal”, “Gênero, raça e classe e guerra às drogas: Estruturas de manutenção das desigualdades”, além de trazer uma excelente lista de referências bibliográficas e dados oficiais sobre a situação carcerária no país.

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ficando apenas atrás dos EUA e da China. Desta população, dois terços, aproximadamente, são de pessoas negras ou seja, não é uma população multicultural. São 726.712 pessoas presas no país, muitas delas sem julgamento, outras tantas, já tendo cumprido pena. A maioria presa em decorrência da criminalização das drogas. Os dados geracionais ainda levam a outro alerta: “55% da população prisional é composta por jovens, ao passo que essa categoria representa 21,5% da população brasileira. Caso mantenhamos esse ritmo, em 2075, uma em cada 10 pessoas estará  em privação de liberdade no Brasil.”

A população feminina encarcerada (pasmem) cresceu 567,4% nos últimos anos, muitas delas mães de família, envolvidas no tráfico por questões de vulnerabilidade social, que poderiam ter suas penas aplicadas de outras formas que não o encarceramento, se vamos continuar adotando a nossa punitivista e genocida Lei Antidrogas. Entre as mulheres encarceradas, 50% tem entre 18 e 29 anos e 67% são negras. “Há, portanto, um alarmante dado que aponta para a juventude negra como foco da ação genocida do Estado Brasileiro.”

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a pena de privação da liberdade como foco punitivo, porém, essa pena vem de modo concomitante, muitas vezes, com a tortura e outros direitos violados.

Juliana Borges chama nossa atenção para revermos conceitos tão internalizados. Uma certa obsessão em nosso imaginário que só consegue conceber a prisão como solução para qualquer problema. “Nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para quaisquer transgressões convencionadas socialmente.”  A autora nos mostra o caminho de continuidade entre escravidão e presídio. No corpo negro, quando o suplício e a pena de morte eram os castigos aplicados, pouco valor tinham as prisões (como aparato oficial do Estado). A partir das ideias europeias de privação da liberdade (uma pena mais “civilizada”), os presídios ganham importância no sistema penal. No Brasil, apenas se deslocou a população que antes recebia os suplícios no corpo para dentro dos presídios, sendo que as condições degradantes destes aparelhos não permitem dizer que não se somou a essa pena, a pena anterior de castigos físicos e até (Carandiru nos exemplifica) a pena de morte.

O capitalismo comete o equívoco proposital de colocar a propriedade e a posse acima do ser, dos direitos e da cidadania. A consequência é profunda em um país onde a maioria é composta por aqueles que não têm qualquer propriedade e que estão na base da hierarquia racial, pilar de nossa sociedade. A desigualdade social segue os efeitos da escravidão no país, onde a moralidade cristã primeiro disse que o negro não tinha alma, depois se contentou com parcas caridades e o encarceramento em massa. Não à toa “a própria palavra penitenciário traz em sua raiz a penitência, sendo a prisão vista também como um espaço de expiação de pecados, moral cristã baseada num comportamento passivo e de aceitação” (Carla Akotirene). A ligação entre Estado, religião e moral para a readequação dos corpos é ininterrupta no Brasil, para isso, a história brasileira conta não só com o tronco, o presídio, mas também com os hospícios e, atualmente, o trabalho de igrejas neopentecostais na arregimentação de fiéis dentro das cadeias.

A autora ainda nos enriquece com as reflexões acerca da força de trabalho dos milhões de pobres brasileiros, a maioria vinda de um processo de usurpação de consciência, em que o corpo foi objetificado a ponto de não se sentir detentor de direitos. “Nesse sentido, posicionar-se como classe trabalhadora no pós-abolição é uma experiência problemática, porque posicionar-se em uma categoria que busca direitos significa, primeiro, entender-se como sujeito no mundo, algo que foi perversamente negado no sistema escravista.” Lembrando que a vinda maciça de imigrantes brancos europeus para o papel de “trabalhador qualificado” coincidiu com a Lei de Vadiagem nas cidades. Às trabalhadoras e trabalhadores negros restaram os empregos mais precários e a cadeia.

Do ponto de vista imagético, o encarceramento da população negra e sua constante presença no noticiário policial forjam um imaginário que falseia a realidade, falseia sobre os crimes que não são punidos, falseia sobre os criminosos que jamais são presos, falseia sobre as condições históricas e sociais em que as prisões são realizadas, falseia sobre o caráter daqueles que possuem mais ou menos melanina em seu corpo, falseia, inclusive, sobre os nossos conceitos do que é crime e do que não é. Enquanto isso, parte da sociedade e das autoridades brasileiras deseja a redução da maioridade penal, deseja que o número de presos e presídios aumentem ainda mais, que a população carcerária que se inicia aos 18 anos também inclua os de 16 e 17 anos. Há um número assustador de pessoas presas por portar alguns gramas de cocaína, enquanto helicópteros com quase meia tonelada de pasta base desta mesma substância sobrevoam os condomínios fechados. Projetos de privatização do sistema carcerário, além de trabalho compulsório e barato para os capitalistas acenam. O encarceramento em massa no Brasil diz muito mais do Brasil do que de quem está encarcerado.

O músico Marcelo Yuca acertou em cheio quando disse que “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.

Juliana Borges nos convida a trabalhar na construção de outros conceitos e soluções, interseccionais, antirracistas, antissexistas,  antipunitivistas e de abolicionismo penal.


Mas por que, então, moldar e homogeneizar a conduta humana? Por que buscar controlar sentimentos e determinar como eles podem ou devem ser expressos? Obviamente que não estamos aqui defendendo assassinatos e estupros etc. Nossa questão é o quanto uma sociedade punitivista e absolutamente controlada e controladora vai construindo cada vez mais mecanismos de vigilância e influência de determinação na vida de seus cidadãos, ao passo que toda e qualquer ação de pouca consequência definitiva na vida de outrem se torne algo delituoso e, até mesmo, hediondo, como é o caso da política de drogas? Por que o fato de considerar que um indivíduo não está, supostamente, sendo útil à sociedade garante argumento para intervenções e criminalização desse cidadão? Quem e onde é definido o parâmetro de utilidade social? E com quais propósitos? As perguntas devem sempre buscar, na verdade, quais são as ideologias que estruturam uma série de ações, condutas e ordenamentos sociais.
E no Brasil? Como esse processo foi inserido em um contexto totalmente diferente do europeu, operado pela lógica colonialista e tendo na escravidão, baseada na hierarquização racial, um eixo fundamental da exploração?” (p. 49)

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Encarceramento em massa
Juliana Borges
Ed. Pólen
2019

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis




Por Adriane Garcia



Livro fundamental para pensar as estruturas de sexismo, racismo e injustiça social, Mulheres, raça e classe, da editora Boitempo, tradução de Heci Regina Candiani, fala de maneira clara e bastante acessível sobre as interseções entre esses temas.


A autora, Angela Davis, tem uma vida dedicada ao ativismo e fez parte do grupo Panteras Negras. Seus estudos sobre a escravidão levam a compreender que o movimento feminista nos Estados Unidos aprendeu grande parte da luta organizada no movimento antiescravagista: “O movimento antiescravagista oferecia às mulheres de classe média uma oportunidade de provar seu valor de acordo com parâmetros que não estavam ligados a seus papéis como esposas e mães.”


Em Mulheres, raça e classe, Angela demonstra as linhas de aproximação e distanciamento entre as mulheres brancas e negras, assim como os diferentes modos de vida na sociedade geraram comportamentos diversos, já que a mulher negra trabalhou ombro a ombro com seus pares homens. Entre as pessoas negras, o trabalho doméstico significava a própria sobrevivência, no sentido de “lar”, de maneira que sua importância era notável. Já as mulheres brancas, principalmente da classe média, a partir da industrialização, são treinadas, cada vez mais, para uma feminilidade enfraquecida em que a casa, o serviço doméstico é visto como algo inferior. Enquanto as mulheres brancas pediam sufrágio universal e mercado de trabalho; as mulheres negras, que sempre trabalharam, lutavam contra as condições precárias de trabalho, pois para elas, trabalhar não significava, propriamente, liberdade.


Algumas feministas brancas, como as irmãs Grimké, perceberam logo a ligação indissociável entre abolicionismo e feminismo. Feministas negras como Sojourne Truth absolutamente brilharam no enfrentamento não só do racismo e do sexismo, como no enfrentamento das estruturas racistas dentro do próprio movimento feminista. É famoso e inesquecível o discurso de Sojourne Truth em que ela pergunta “Não sou eu uma mulher?”.


Angela Davis mostra que, à medida que a luta pelo sufrágio feminino aumentava, mais a estrutura racista dentro do movimento feminista se recrudescia. Pós Guerra de Secessão, declarada oficialmente a abolição da escravatura, muitas feministas viram o envolvimento das mulheres negras em sua própria luta (pelas mulheres) como empecilho para conseguir a simpatia e a adesão das mulheres brancas do sul ao voto feminino. Neste trajeto, a presença fundamental de um ativista negro se destaca: Frederick Douglass, o abolicionista que iniciou a luta pela igualdade e o direito de voto de todas as mulheres.


Após a abolição, os postos ocupados pelas pessoas negras ficam praticamente inalterados, indicando muito mais a continuidade com a escravidão do que a ruptura. A essas pessoas os empregos oferecidos continuaram sendo no campo e nos serviços domésticos, sob péssimas condições, análogas às de escravidão. Com a industrialização, alguns movimentos operários e de mulheres começaram a refletir mais profundamente sobre a consciência de classe. Entre as pessoas negras, havia ainda um problema muito mais grave a ser pensado: a lei dos linchamentos, que matava a população negra independente de julgamento e a lei antiestupro, que acabava por servir à lei de linchamentos. As mulheres negras, vítimas por séculos dos estupros causados por homens brancos como arma de opressão, viam agora os homens negros de suas comunidades serem presos e mortos todo o tempo pela lei dos linchamentos; quando não eram elas próprias, retiradas de suas casas, estupradas por gangues de supremacistas brancos e dependuradas em forcas nas árvores.


Como empregadas domésticas, sofrendo a opressão de classe; como mulheres, sofrendo a opressão do sexismo; e como pessoa negra, sofrendo a opressão do racismo, para este segmento da população a vida era (é) triplamente difícil. Enquanto o movimento feminista discutia o sufrágio, as mulheres negras falavam sobre não serem assassinadas e as suas famílias. Quando o sufrágio negro (do homem negro) foi aprovado, parte do movimento feminista branco ficou indisposto, mesmo a parte que antes lutara contra o escravagismo, o que demonstra que em alguns casos, a luta antiescravagista foi mera conveniência. Com a repressão às drogas, os poderosos conseguiram transformar vários cidadãos eleitores negros em presidiários. Era uma forma de cercear o voto e uma forma de oferecer uma outra faceta escravagista: o estado podia ceder presos para contratos privados de trabalho.


Obviamente, dentro do movimento feminista de mulheres brancas havia mulheres antirracistas, muitas delas, mostra-nos Angela Davis, abriram um dos caminhos mais importantes para a população negra: a escola. A população negra sabia que sua emancipação dependia do acesso à educação. Em 1973, “uma ex-escrava que havia comprado a própria liberdade abriu uma escola na cidade Nova YorK, conhecida como Escola Katy Ferguson para Pobres”. Angela Davis chega a afirmar que “Os exemplos mais marcantes de sororidade que as mulheres brancas tinham em relação às mulheres negras estão associados à histórica luta do povo negro por educação”. Mulheres como Prudence Crandall, Margaret Douglas e Myrtilla Miner, por exemplo, arriscaram suas vidas para transmitir conhecimento para pessoas negras. Eram perseguidas, tinham suas escolas invadidas, quebradas, incendiadas por gangues como a Klu Klux Klan e ameaçadas de morte.


Com a entrada do século XX, as ideias eugenistas ganham cada vez mais terreno no pensamento das pessoas. Até mesmo parte do movimento feminista de mulheres brancas ficará seduzido pelo termo “mães da raça”. O culto da maternidade aos moldes brancos veio com força total para enfraquecer a mulher e dar-lhe um lugar definitivo. Mãe da raça. Ela é responsável pela procriação. E ponto. Já no movimento feminista negro, antirracista por excelência, o racismo não se dissociava do sexismo; havia, inclusive, a defesa do homem negro, vítima, como elas, da opressão de classe. As mulheres do movimento feminista negro notaram, muito rapidamente, que inferiorizar o homem negro as inferiorizava e que essa inferiorização advinha do racismo e da dominação econômica.


Angela Davis também escreve um capítulo, “Mulheres trabalhadoras, mulheres negras e a história do movimento sufragista” mostrando as divergências entre as associações de trabalhadoras e associações de mulheres, negras ou não. Mesmo após a conquista do sufrágio feminino, “as mulheres negras do Sul foram violentamente impedidas de exercer seu direito recentemente adquirido”. Com o advento das associações comunistas e da oficialização do partido comunista, a questão da classe toma mais vigor e várias lideranças femininas aparecem, brancas e negras. Com a perseguição aos comunistas, várias delas são presas.


Um dos capítulos é dedicado ao tema do estupro e do mito do estuprador negro. “A experiência do Vietnã proporciona um exemplo adicional do modo como o racismo pode funcionar enquanto incitação ao estupro. Uma vez que foi incutida na cabeça dos soldados dos Estados Unidos a visão de que lutavam contra uma raça inferior, eles acabaram aprendendo que estuprar as vietnamitas era um dever militar necessário.”


Angela chama a atenção para o fato de que “em grande parte da literatura contemporânea sobre o estupro há a tendência de equiparar o “estuprador dos registros policiais” com o “estuprador típico”. O estuprador dos registros policiais é amiúde negro – aquele que a polícia prende; o estuprador típico é, inúmeras vezes aquele que não aparece, o homem da casa, o pai, o tio, o primo, o patrão, o empresário, o que inclui vasto número de homens brancos.Se esse padrão de atribuir a imagem do estuprador dos registros policiais à imagem do estuprador típico persistir, será praticamente impossível revelar as reais causas sociais do estupro.”


Os homens brancos usaram a defesa da honra de suas mulheres como pretexto para matar negros. Arma rotineira de repressão, a condenação por estupro era contra a mulher negra e seu companheiro. Forma de humilhar. O caso dos meninos de Scottsboro, em 1931, exemplifica bem. Acusados de estupro em um vagão de trem, após uma briga com rapazes brancos, as duas mulheres que acusaram os nove rapazes negros retiraram a acusação e admitiram ter mentido, antes do veredito. Mesmo assim, os jovens foram condenados. As penas variaram de 75 anos de prisão à morte.


Na sequência do livro, Angela trata de “Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos”. Aqui, a autora descreve e reflete um pouco da luta das mulheres pelos direitos reprodutivos, pelo direito ao próprio corpo, sem o qual não há que se falar em liberdade. Porém, o que era reivindicado como um “direito” para as mulheres privilegiadas veio a ser interpretado como um “dever” para as mulheres pobres.A esterilização compulsória surge como ideia estatal e defendida por muitas e muitos como forma de controlar os pobres. “O potencial progressista do movimento foi roubado quando passou a defender não o direito individual das pessoas de minorias étnicas ao controle de natalidade, e sim a estratégia racista de controle populacional.


No último capítulo a autora dedica-se ao tema das tarefas domésticas e a necessidade de libertação de um trabalho que gasta grande grande parte do tempo das mulheres. Pensando sobre isso é impossível não lembrarmos duas coisas: 1. que homens participam - quando participam - ainda muito pouco do compartilhamento das tarefas domésticas; 2. que mulheres que podem pagar fazem com que mulheres que não podem façam o trabalho doméstico por elas, na maior parte das vezes sem a sororidade necessária para oportunizar mudanças positivas na vida da empregada doméstica. Pelo contrário, tirando delas qualquer tempo que lhes poderia sobrar para se dedicarem às suas próprias famílias. Aqui as implicações de classe e racismo se manifestam claramente. E novamente a continuidade de vários elementos das relações de “senhora” e “mucama” vêm à tona. Se formos pensar em Brasil, o que ainda é pior: essa continuidade passa desapercebida, porque aprendemos a velar nosso racismo, tão internalizado ele está e tão desacostumados estamos a pensá-lo.


Mulheres, raça e classe é um livro obrigatório para entender um passado tão presente e, quem sabe, agir cotidianamente para um futuro mais justo.


Durante o período pós-escravidão, a maioria das mulheres negras trabalhadoras que não enfrentavam a dureza dos campos era obrigada a executar serviços domésticos. Sua situação, assim como a de suas irmãs que eram meeiras ou a das operárias encarceradas, trazia o familiar selo da escravidão. Aliás, a própria escravidão havia sido chamada, com eufemismo, de “instituição doméstica”, e as escravas eram designadas pelo inócuo termo “serviçais domésticas”. Aos olhos dos ex-proprietários de escravos, “serviço doméstico” devia ser uma expressão polida para uma ocupação vil que não estava nem a meio passo de distância da escravidão. Enquanto as mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, babás, camareiras e domésticas de todo tipo, as mulheres brancas do Sul rejeitavam unanimemente trabalhos dessa natureza. Nas outras regiões, as brancas que trabalhavam como domésticas eram geralmente imigrantes europeias que, como suas irmãs ex-escravas, eram obrigadas a aceitar qualquer emprego que conseguissem encontrar.
A equiparação ocupacional das mulheres negras com o serviço doméstico não era, entretanto, um simples vestígio da escravidão destinado a desaparecer com o tempo. Por quase um século, um número significativo de ex-escravas foi incapaz de escapar às tarefas domésticas. A história de uma trabalhadora doméstica da Geórgia, registrada por um jornalista de Nova York em 1912, reflete a difícil situação econômica das mulheres negras das décadas anteriores, bem como de muitos anos depois. Mais de dois terços das mulheres negras de sua cidade foram forçados a encontrar empregos como cozinheiras, babás, lavadeiras, camareiras, vendedoras ambulantes ou zeladoras e se viram em condições “tão ruins, se não piores, do que as do período da escravidão”.
Por mais de trinta anos, essa mulher negra viveu involuntariamente nas casas onde era empregada. Trabalhando nada menos que quatorze horas por dia, ela geralmente tinha permissão de sair por apenas uma tarde a cada duas semanas para visitar a família. Em suas próprias palavras, ela era “escrava de corpo e alma” da família branca que a empregava. Sempre a chamavam pelo primeiro nome – nunca por sra. ... – , e não era raro que se referissem a ela como sua “preta”, ou seja, sua escrava.
(...)
Desde a Reconstrução até o presente, as mulheres negras empregadas em funções domésticas consideraram o abuso sexual cometido pelo “homem da casa” como um dos maiores riscos de sua profissão. Por inúmeras vezes, foram vítimas de extorsão no trabalho, sendo obrigadas a escolher entre a submissão sexual e a pobreza absoluta para si mesmas e para sua família. Essa mulher da Geórgia perdeu um de seus empregos, no qual morava, porque “eu me recusei a deixar o marido da senhora me beijar”.
(p. 98/99)

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Mulheres, raça e classe
Angela Davis
Tradução: Heci Regina Candiani
Ed. Boitempo
2016