Por Adriane Garcia
Livro
fundamental para pensar as estruturas de sexismo, racismo e injustiça
social, Mulheres,
raça e classe, da
editora Boitempo, tradução de Heci
Regina Candiani,
fala de maneira clara e bastante acessível sobre as interseções
entre esses temas.
A
autora, Angela
Davis, tem
uma vida dedicada ao ativismo e fez parte do grupo Panteras
Negras. Seus
estudos sobre a escravidão levam a compreender que o movimento
feminista nos Estados Unidos aprendeu grande parte da luta organizada
no movimento antiescravagista: “O
movimento antiescravagista oferecia às mulheres de classe média uma
oportunidade de provar seu valor de acordo com parâmetros que não
estavam ligados a seus papéis como esposas e mães.”
Em
Mulheres, raça e
classe, Angela
demonstra as linhas de aproximação e distanciamento entre as
mulheres brancas e negras, assim como os diferentes modos de vida na
sociedade geraram comportamentos diversos, já que a mulher negra
trabalhou ombro a ombro com seus pares homens.
Entre as pessoas
negras, o trabalho doméstico significava a própria sobrevivência,
no sentido de “lar”, de maneira que sua importância era notável.
Já as mulheres brancas, principalmente da classe média, a partir da
industrialização, são treinadas, cada vez mais, para uma
feminilidade enfraquecida em que a casa, o serviço doméstico é
visto como algo inferior. Enquanto as mulheres brancas pediam
sufrágio universal e mercado de trabalho; as mulheres negras, que
sempre trabalharam, lutavam contra as condições precárias de
trabalho, pois para elas, trabalhar não significava, propriamente,
liberdade.
Algumas
feministas brancas, como as irmãs
Grimké, perceberam
logo a ligação indissociável entre abolicionismo e feminismo.
Feministas negras como Sojourne
Truth absolutamente
brilharam no enfrentamento não só do racismo e do sexismo, como no
enfrentamento das estruturas racistas dentro do próprio movimento
feminista. É famoso e inesquecível o discurso de Sojourne
Truth em que ela
pergunta “Não sou
eu uma mulher?”.
Angela
Davis mostra que, à
medida que a luta pelo sufrágio feminino aumentava, mais a estrutura
racista dentro do movimento feminista se recrudescia. Pós Guerra
de Secessão,
declarada oficialmente a abolição da escravatura, muitas feministas
viram o envolvimento das mulheres negras em sua própria luta (pelas
mulheres) como empecilho para conseguir a simpatia e a adesão das
mulheres brancas do sul ao voto feminino. Neste trajeto, a presença
fundamental de um ativista negro se destaca: Frederick
Douglass, o
abolicionista que iniciou a luta pela igualdade e o direito de voto
de todas as mulheres.
Após
a abolição, os postos ocupados pelas pessoas negras ficam
praticamente inalterados, indicando muito mais a continuidade com a
escravidão do que a ruptura. A essas pessoas os empregos oferecidos
continuaram
sendo no campo e nos serviços domésticos, sob péssimas
condições, análogas
às de escravidão. Com a industrialização, alguns movimentos
operários e de mulheres começaram
a refletir mais profundamente sobre a consciência de classe. Entre
as pessoas negras, havia
ainda um problema muito mais grave a ser pensado: a lei dos
linchamentos, que matava a população negra independente de
julgamento e a lei antiestupro, que acabava por servir à lei de
linchamentos. As mulheres negras, vítimas por séculos dos estupros
causados por homens brancos como arma de opressão, viam agora os
homens negros de suas comunidades serem presos e mortos todo o tempo
pela lei dos linchamentos; quando não eram elas próprias, retiradas
de suas casas, estupradas por gangues de supremacistas brancos e
dependuradas em forcas nas árvores.
Como
empregadas domésticas, sofrendo a opressão de classe; como
mulheres, sofrendo a opressão do sexismo; e como pessoa negra,
sofrendo a opressão do racismo, para este segmento da população a
vida era (é) triplamente difícil. Enquanto o movimento feminista
discutia o sufrágio, as mulheres negras falavam sobre não serem
assassinadas e as suas famílias. Quando o sufrágio negro (do homem
negro) foi aprovado, parte do movimento feminista branco ficou
indisposto, mesmo a parte que antes lutara contra o escravagismo, o
que demonstra que em alguns casos, a luta antiescravagista foi mera
conveniência. Com a repressão às drogas, os poderosos conseguiram
transformar vários cidadãos eleitores negros em presidiários. Era
uma forma de cercear o voto e uma forma de oferecer uma outra faceta
escravagista: o estado podia ceder presos para contratos privados de
trabalho.
Obviamente,
dentro do movimento feminista de mulheres brancas havia mulheres
antirracistas, muitas delas, mostra-nos Angela
Davis, abriram um
dos caminhos mais importantes para a população negra: a escola. A
população negra sabia que sua emancipação dependia do acesso à
educação. Em 1973, “uma
ex-escrava que havia comprado a própria liberdade abriu uma escola
na cidade Nova YorK, conhecida como Escola Katy Ferguson para
Pobres”. Angela
Davis chega a
afirmar que “Os
exemplos mais marcantes de sororidade que as mulheres brancas tinham
em relação às mulheres negras estão associados à histórica luta
do povo negro por educação”.
Mulheres como Prudence
Crandall, Margaret Douglas e
Myrtilla Miner, por
exemplo, arriscaram suas vidas para transmitir conhecimento para
pessoas negras. Eram perseguidas, tinham suas escolas invadidas,
quebradas, incendiadas por gangues como a Klu
Klux Klan e
ameaçadas de morte.
Com
a entrada do século XX, as ideias eugenistas ganham cada vez mais
terreno no pensamento das pessoas. Até mesmo parte do movimento
feminista de mulheres brancas ficará seduzido pelo termo “mães
da raça”. O
culto da maternidade aos moldes brancos veio com força total para
enfraquecer a mulher e dar-lhe um lugar definitivo. Mãe da raça.
Ela é responsável pela procriação. E ponto. Já no movimento
feminista negro, antirracista por excelência, o racismo não se
dissociava do sexismo; havia, inclusive, a defesa do homem negro,
vítima, como elas, da opressão de classe. As mulheres do movimento
feminista negro notaram, muito rapidamente, que inferiorizar o homem
negro as inferiorizava e que essa inferiorização advinha do racismo
e da dominação econômica.
Angela
Davis também
escreve
um capítulo, “Mulheres
trabalhadoras, mulheres negras e a história do movimento sufragista”
mostrando as divergências entre as associações de trabalhadoras e
associações de mulheres, negras ou não. Mesmo após a conquista do
sufrágio feminino, “as
mulheres negras do Sul foram violentamente impedidas de exercer seu
direito recentemente adquirido”.
Com o advento das associações comunistas e da oficialização do
partido comunista, a questão da classe toma mais vigor e várias
lideranças femininas aparecem, brancas e negras. Com a perseguição
aos comunistas, várias delas são presas.
Um
dos capítulos é dedicado ao tema do estupro e do mito do estuprador
negro. “A
experiência do Vietnã proporciona um exemplo adicional do modo como
o racismo pode funcionar enquanto incitação ao estupro.
Uma vez que foi incutida na cabeça dos soldados dos Estados Unidos a
visão de que lutavam contra uma raça inferior, eles acabaram
aprendendo que estuprar as vietnamitas era um dever militar
necessário.”
Angela
chama a atenção para o fato de que “em
grande parte da literatura contemporânea sobre o estupro há a
tendência de equiparar o “estuprador dos registros policiais”
com o “estuprador típico”.
O estuprador dos
registros policiais é amiúde negro –
aquele que a polícia prende;
o estuprador típico é, inúmeras vezes aquele
que não aparece, o
homem da casa, o pai, o tio, o primo, o patrão, o empresário,
o que inclui vasto número de homens brancos.
“Se esse padrão
de atribuir a
imagem do estuprador dos registros policiais à imagem do estuprador
típico
persistir, será praticamente impossível
revelar as reais
causas sociais do estupro.”
Os
homens brancos usaram
a defesa da honra de suas mulheres como pretexto para matar negros.
Arma rotineira de repressão, a
condenação por estupro era
contra a mulher negra e seu companheiro. Forma de humilhar. O
caso dos meninos
de Scottsboro, em
1931, exemplifica bem. Acusados de estupro em um vagão de trem, após
uma briga com rapazes brancos, as duas mulheres que acusaram os nove
rapazes negros retiraram a acusação e admitiram ter mentido, antes
do veredito. Mesmo
assim, os jovens foram condenados. As penas variaram de 75 anos de
prisão à morte.
Na
sequência do livro, Angela
trata de “Racismo,
controle de natalidade e direitos reprodutivos”.
Aqui, a autora descreve
e reflete um pouco da luta das mulheres pelos direitos reprodutivos,
pelo direito ao próprio corpo, sem o
qual não há que se falar em liberdade. Porém, “o
que era
reivindicado como um “direito” para as mulheres privilegiadas
veio a ser interpretado como um “dever” para as mulheres pobres.”
A esterilização
compulsória surge como
ideia estatal e defendida por muitas e muitos como forma de controlar
os pobres. “O
potencial progressista do movimento foi roubado quando passou a
defender não o direito individual das pessoas de minorias étnicas
ao controle de natalidade, e sim a estratégia racista de controle
populacional.”
No
último capítulo a autora dedica-se ao tema das tarefas
domésticas e a
necessidade de libertação de um trabalho que gasta grande grande
parte do tempo das
mulheres. Pensando
sobre isso é impossível não lembrarmos duas coisas: 1. que homens participam - quando participam - ainda muito pouco do compartilhamento das tarefas domésticas; 2. que mulheres
que podem pagar fazem com que mulheres que não podem façam o
trabalho doméstico por elas, na maior parte das vezes sem a
sororidade necessária para oportunizar mudanças positivas na vida
da empregada doméstica. Pelo contrário, tirando delas qualquer
tempo que lhes poderia sobrar para se dedicarem às suas próprias
famílias. Aqui as implicações de classe e racismo se manifestam
claramente. E
novamente a continuidade de vários elementos das relações de
“senhora” e “mucama” vêm à tona. Se formos pensar em
Brasil, o que ainda é pior: essa continuidade passa desapercebida,
porque aprendemos a velar nosso racismo, tão internalizado ele está
e tão desacostumados estamos a pensá-lo.
Mulheres,
raça e classe é um livro obrigatório para entender um passado tão
presente e, quem sabe, agir cotidianamente para um futuro mais justo.
“Durante
o período pós-escravidão, a maioria das mulheres negras
trabalhadoras que não enfrentavam a dureza dos campos era obrigada a
executar serviços domésticos. Sua situação, assim como a de suas
irmãs que eram meeiras ou a das operárias encarceradas, trazia o
familiar selo da escravidão. Aliás, a própria escravidão havia
sido chamada, com eufemismo, de “instituição doméstica”, e as
escravas eram designadas pelo inócuo termo “serviçais
domésticas”. Aos olhos dos ex-proprietários de escravos, “serviço
doméstico” devia ser uma expressão polida para uma ocupação vil
que não estava nem a meio passo de distância da escravidão.
Enquanto as mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, babás,
camareiras e domésticas de todo tipo, as mulheres brancas do Sul
rejeitavam unanimemente trabalhos dessa natureza. Nas outras regiões,
as brancas que trabalhavam como domésticas eram geralmente
imigrantes europeias que, como suas irmãs ex-escravas, eram
obrigadas a aceitar qualquer emprego que conseguissem encontrar.
A
equiparação ocupacional das mulheres negras com o serviço
doméstico não era, entretanto, um simples vestígio da escravidão
destinado a desaparecer com o tempo. Por quase um século, um número
significativo de ex-escravas foi incapaz de escapar às tarefas
domésticas. A história de uma trabalhadora doméstica da Geórgia,
registrada por um jornalista de Nova York em 1912, reflete a difícil
situação econômica das mulheres negras das décadas anteriores,
bem como de muitos anos depois. Mais de dois terços das mulheres
negras de sua cidade foram forçados a encontrar empregos como
cozinheiras, babás, lavadeiras, camareiras, vendedoras ambulantes ou
zeladoras e se viram em condições “tão ruins, se não piores, do
que as do período da escravidão”.
Por
mais de trinta anos, essa mulher negra viveu involuntariamente nas
casas onde era empregada. Trabalhando nada menos que quatorze horas
por dia, ela geralmente tinha permissão de sair por apenas uma tarde
a cada duas semanas para visitar a família. Em suas próprias
palavras, ela era “escrava de corpo e alma” da família branca
que a empregava. Sempre a chamavam pelo primeiro nome – nunca por
sra. ... – , e não era raro que se referissem a ela como sua
“preta”, ou seja, sua escrava.
(...)
Desde
a Reconstrução até o presente, as mulheres negras empregadas em
funções domésticas consideraram o abuso sexual cometido pelo
“homem da casa” como um dos maiores riscos de sua profissão. Por
inúmeras vezes, foram vítimas de extorsão no trabalho, sendo
obrigadas a escolher entre a submissão sexual e a pobreza absoluta
para si mesmas e para sua família. Essa mulher da Geórgia perdeu um
de seus empregos, no qual morava, porque “eu me recusei a deixar o
marido da senhora me beijar”.
(p.
98/99)
***
Mulheres,
raça e classe
Angela
Davis
Tradução:
Heci Regina Candiani
Ed.
Boitempo
2016
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