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quinta-feira, 22 de maio de 2025

TANATOGRAFIA DA MÃE, de Isadora Fóes Krieger

 






Por Adriane Garcia




O poeta indaga a respeito de escrever: “Trouxeste a chave?”. Essa pergunta também pode ficar desperta sobre o ato de ler. Enquanto lia Tanatografia da mãe, de Isadora Fóes Krieger, vinha-me a pergunta de Drummond e algumas reflexões: a chave é uma elaboração também de quem lê, trazendo seus próprios lutos, sua própria filiação; no caso do livro de Isadora Fóes Krieger, a própria mãe da leitora, do leitor. A poeta nos chama para algo muito íntimo, sua elaboração sobre a Grande Perda. Esse algo está atrás de um Véu que cobre uma porta — um portal? Uma vez eu própria escrevi que quando uma mãe morre, fecha-se um portal. Foi Isadora quem me disse que também um portal se abre. “Trouxeste a chave?”. 

Se a melancolia, mostrou-nos Freud, está repleta de pathos; o luto sendo elaborado está repleto de saúde, é um caminhar nas trevas para alçar a boca do túnel, a luz que aguarda os que tiveram coragem de atravessar os lugares dantescos da morte, seguindo para frente. Em Tanatografia da mãe, esse seguir para frente mostra como, paradoxalmente, elaborar o luto é ir para trás. A morte de nossos entes queridos nos chama para o passado, para as casas nas quais vivemos, para os nossos corpos outros que não existem mais, corpos da juventude, da infância, corpos intra-uterinos, corpos que se misturam com nossos espaços de memória, em tempos simultâneos, corpos-casa.

Tanatografia da mãe é a carta em versos que a poeta escreve para si mesma, sendo ela própria a remetente-destinatária, em um jogo de substantivos compostos, pois nossa identidade é um mosaico de tantas, tantos e tudo que já passou por nós; uma identidade alienada, em essência, pois traz do outro e se torna no outro, um constante devir a partir dos encontros. A carta da poeta é a nossa carta, carta-diário, daqueles com cadeado e uma pergunta: trouxeste a chave? Um diário do luto, mas antes, um diário do encontro. A carta dirigida a si mesma, mostra-nos Isadora Fóes Krieger, ou melhor, lembra-nos, é carta extraviada, como quase toda comunicação e sua falibilidade. Extravio porque o outro que a recebe é um destinatário estranho a qualquer plano inicial, destinatário imprevisível e desconhecido, uma leitora, um leitor. Extravio porque ao receber sua própria carta, ela, a remetente, também já é outra. A morte causa grandes transformações, uma coisa é a filha-com-a-mãe-viva, outra, a filha-com-a-mãe-morta.

Muitos alumbramentos e sustos se dão durante a leitura de Tanatografia da mãe, por exemplo, de repente, se dar com a verdade de que a mãe é um território, um continente, de que a criança-com-a-mãe (aqui, antes de separar uma identidade) precisa “se desprender da mãe para pensar”, encarar que a  mãe-em-mim está instalada como superego e figura de autoridade. É assim que Deus é equiparado à Mãe, quando podíamos achar menos herege o contrário. A mãe, assim como Deus, surge do lugar do incompreensível: a Mulher que Não Sei e, assim como em tantas religiões, tudo retorna a Deus, “do pó vieste e ao pó retornarás”, tudo retorna à Mãe.

Com o uso de maiúsculas, um recurso linguístico de personificação, a poeta cria entidades como Corpo Insustentável, Canto Inaudível, Remetente, Destinatário, Nostalgia da Clareira, sempre demonstrando que há o inapreensível, pois o extravio é também isso, a impossibilidade da Poesia: “não pretendemos fundar a filosofia do encontro/ do abismo com o pássaro,/ ao contrário, o estudo da carta extraviada tem/ como matéria sublime o deslocamento” — deslocamento que é também uma das formas de o inconsciente se manifestar, um de seus meios de expressão disfarçada.

Tanatografia da Mãe flui para o encontro da Poesia com a Psicanálise. Um momento interessantíssimo é quando o poema se constrói na lógica dos atos falhos: “a mãe permanece imóvel/ na rua um grupo de jovens volta de uma festa/ parecem falar sobre amor;/ “despeço-me de ti como quem solta a própria mão na beira do precipício.”// leio: com quem solta a própria mãe.” O que Isadora Fóes Krieger consegue neste livro é para além de seu próprio mergulho no líquido amniótico primordial (Mãe, Deus, Vida-Morte, Mistério), a cumplicidade da leitora, do leitor, nesse mergulho. Uma leitura uterina, sobre um lugar em que todos estivemos, argutamente nos lembrando de que “Às vezes uma mãe é apenas uma mãe.”


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Tanatografia da mãe

Isadora Foés Krieger

Poesia

Editora da casa

2022


quarta-feira, 26 de maio de 2021

Quênia, de Michaela V. Schmaedel

 

 



Por Adriane Garcia

 

Entre a dimensão filosófica e a fabulação, a poeta Michaela V. Schmaedel nos entrega um livro de aprofundamento temático e apuro da linguagem. Se em seu primeiro livro, Coração cansado, a temática próxima dos processos de luto privilegiam uma subjetividade mais solitária, neste Quênia – poemas de viagens, a subjetividade é mais solidária. A poeta sai de si tocada pelo mundo exterior e entra em si a partir deste mundo para comungar com ele. É a comunhão com a natureza na sua rusticidade e pureza, sentida como uma epifania, que ela nos comunica em poemas certeiros, econômicos, que contam com sugestões e silêncios.

A viagem de Michaela V. Schmaedel ao Quênia leva a uma busca das origens. É do ponto mais alto da África que o eu-lírico declara sentir a queda da humanidade: “feito pedra/ espreita o mundo// feito homem/sente a queda”. O eu-lírico caminha para a reflexão sobre a espécie humana desde o seu continente ancestral, colocando-se não só no lugar do humano, mas emprestando-se, como nas fábulas, ao bicho, às pedras, aos rios, à vegetação para ver a si.

 

O efeito da reflexão filosófica (uma ontologia) e a força dos elementos arcaicos das fábulas potencializam a leitura, tocam em arquétipos, questões existenciais antigas cuja premência se situa no presente. É de se notar que o livro evoca nossa natureza comungada com os outros seres quando essa comunhão se mostra esquecida e o homem não é capaz de ler o bioma em que vive ou acolher vias sustentáveis para conviver no planeta.

 

A terra escreve

a árvore escreve

a montanha escreve

o rio escreve.

 

Nós é que somos

limitados na leitura.”

 

A poesia se beneficia da metáfora e a ela nenhum estranhamento causa a fábula; desde os tempos imemoriais possuímos modelos de histórias em que falamos por meio dos outros seres. Em nossa memória ancestral sabemos de elefantes, hienas, montanhas, girafas que nos contam histórias ou que delas fazem parte para nos simbolizar algo. Em Quênia, esses elementos vêm articular os tempos, questionar e atualizar o homem e o animal que a memória coletiva deve preservar.

 

Há muitas

linhas do Equador

a dividir os trópicos.

 

Há muitos

modos de olhar

o mesmo animal.”

 

Ao olhar a paisagem e os seres que a habitam, o ser humano penetra na sua própria noite, que é abismo, dor e morte. A condição humana da qual não se pode fugir (mas tenta-se todo o tempo) alcança a consciência nessa simbiose e isso talvez fosse benéfico para que o homem desenvolvesse outras relações que não as do predador no topo da cadeia alimentar:

 

À NOITE

 

Procuro

ossos

carcaças

pego

eu mesma

o que

consigo.

 

Carrego

eu mesma

a morte.”

 

Em Quênia, a espacialidade, a distância tomada pelo eu-lírico, resultam numa prospecção. Vê-se de longe e de perto, para frente e para trás, coletivamente e individualmente. O eu-lírico também fala de suas dores pessoais: “No lugar da caça/ do bicho quase não vivo/ na savana das presas/ me encontro.” É neste lugar da perda que ele se identifica. O ser humano olha para si, olha para os outros seres e se dá conta do que lhe falta, seja o capim mais verde, a pessoa amada na penumbra ou mesmo um sentimento que o una aos outros. Sua constante é a luta e a persistente ilusão de que está separado do mundo:

 

HIENA

 

Sorrateira

no passo

a passo

da caça

atrás do

coração

que lhe falta.”

Michaela V. Schmaedel retrata-nos um mundo dessacralizado mostrando-nos um outro onde ainda era possível um sentido religioso de “relegere” (reler) ou o “religare” (religar). Para isso nada melhor do que figuras que nos aproximem dos “mythos” (fábulas). Procura-se Deus, mas nada indica que possa ser encontrado, exceto na beleza:

 

FLAMINGOS

 

Procuram

Deus no

silêncio

das águas”.

 

Diante da paisagem do Quênia, a poeta está tomada de beleza. Havendo uma moral da história, elemento fabuloso, podemos dizer que ela consta no primeiro poema do livro, aviso oracular do qual deveríamos ler todas as linhas e entrelinhas:

 

Ainda somos o homem

ancestral agachado

na savana do Quênia.”

 

***


 


Quênia – poemas de viagens

Michaela V. Schmaedel

Editora cas’a

2021