terça-feira, 1 de julho de 2014

Histórias Verídicas - Paol Keineg


Histórias Verídicas
Paol Keineg
Tradução de Ruy Proença
Editora Dobra Editorial, 2014, 72 p.

Deliciosamente toquei o livro. Acontece-me tocar um livro, assim, na capa, alisá-lo e, de certa forma, intuir que há ali um grande encontro. E foi o que aconteceu com Histórias verídicas, do poeta, dramaturgo e tradutor bretão Paol Keineg, traduzido para o francês por ele mesmo e vertido do francês para o português por Ruy Proença, quem colocou esta maravilha ao alcance de brasileiros, principalmente.

Tendo passado com muita consciência por um processo de imposição de nova cultura em seu país, isso tendo se manifestado mais violentamente, do que se percebe na escrita do autor, quanto à questão idiomática, a poesia de Paol Keineg em Histórias verídicas é um retrato deste sentimento de sobreposição à força, de ostensiva violação ao mundo natural e materno (bretão e celta) por um mundo artificial (francês e “civilizado”), o “choque original” que traz o novo como progresso, necessariamente global, e o antigo como arcaico, no máximo, exótico e excêntrico. Disto resultou o embate entre os valores já aprendidos, assimilados de infância e os novos valores, num comparativo com a “lavagem cerebral”, a mutilação e o resultante sentimento de humilhação e vergonha.

“Quando ando pela rua
Acontece-me perder um membro
Um braço uma perna um pé
Finjo indiferença
Verifico se os passantes notaram algo
Abaixo-me prontamente e apanho
O membro faltante na calçada
Sento-me num banco
E tudo entra rapidamente nos eixos.”

Em Histórias verídicas, a ferida é incurável, algo sagrado e puro fora corrompido sem que pudesse ser extirpado.

“À noite
Fujo da cidade adormecida
Precipito-me rumo às plantações de hortaliças
E até o alvorecer
Mastigo cenouras e couves-flores...”

Não podendo exercer a língua original e tudo o que ela significa na abrangência de todo um mundo reconhecido e nominado (em bretão), é preciso tê-la, pois o que resta também de um mundo afetivo, e escondê-la. Mas Paol Keineg escreve isso de uma forma vigorosa e criativa, na maioria das vezes em poemas narrativos, usando metáforas que nos conduzem ao absurdo e aos questionamentos de como se dão as relações de poder e supremacia cultural.

Revolta e incomunicabilidade, em poemas que comunicam tanto, para além do intelecto.

“Atravessei toda a cidade
A mão tapando a boca
Não me deixei distrair
Pelo espetáculo dos policiais
E dos vendedores de caranguejos na calçada
Avancei direto
A mão obstinadamente sobre a boca
Recusando responder
Aos que me perguntavam as horas
No hospital recusei responder
Às enfermeiras que me questionavam
Terminei por sussurrar ao ouvido de um médico:
Doutor eu falo bretão.”



*Paol Keineg nasce em 1944, na Baixa-Bretanha. Em 1968 formou-se em Letras Modernas, participou da fundação da União Democrática Bretã, partido de esquerda. Em 1967, lançou seu primeiro livro, Poema do país com fome. Em 1972 foi demitido da universidade onde dava aulas por motivos políticos. Mudou-se para Paris, onde se envolveu com a dramaturgia. Para se sustentar trabalhou como caldeireiro na manutenção naval e foi soldador. Em seguida foi para a Califórnia onde realizou serviços domésticos e aprendeu o inglês. Em 1981 tornou-se doutor em Letras, trabalhando em Berkeley, Harvard e Duke. Em 2009 retornou à Bretanha. Esteve no Brasil, hospedado por Ariano Suassuna e estudou português “brasileiro” para ler nossa literatura.

Ruy Proença é paulista, poeta e tradutor. Publicou Pequenos Séculos (1985), A lua inverstirá com seus chifres (1996), Como um dia come o outro (1999), Visão do térreo (2007) e o infanto juvenil Coisas Daqui. Traduziu a coletânea Boris Vian, Poemas e canções (2001) e Isto é um poema que cura os peixes, de Jean Pierre Siméon (2007).

Agradecimento ao querido amigo Alberto Bresciani, que me presenteou com esta riqueza.


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