quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O ano latino-americano




Este ano tirei para, além das minhas leituras habituais, ler um pouquinho mais sistematicamente a literatura latino-americana. Li pouco dela (à excessão, obviamente, da brasileira, que aqui não pontuo, pois é a maioria de minhas leituras)  e já experimentei que funciona bem, para mim, condensar um tipo anualmente, como em 2013, quando li essencialmente literatura russa. Comecei por Roberto Alrt (Argentina), A vida Porca. Muito interessante. O protagonista, Silvio Astier, é um menino pobre que cresce impelido ao mundo do crime, ao mesmo tempo que admira a literatura, o refinamento da arte e da ciência. Na forma, o autor mistura uma narrativa culta com uma linguagem coloquial e, por vezes, até vulgar. Tudo com muita naturalidade e fluidez. Astier é um personagem que nos mostra a ligação inequívoca entre injustiça social e aumento da criminalidade, mas sem simplismos. Também é a reflexão do quanto a violência é algo inato à humanidade.



Agora é este: Noturno do Chile. Adorando. Além da narrativa ser fluida, excelente, com um humor cítrico, de entrelinhas, ainda o gosto de perceber o cenário político durante a ditadura de Pinochet. 



E o terceiro: Monsieur Pain, O livro é muito interessante. Tem um espírito labiríntico e onírico, em determinado ponto da narrativa não se sabe se está lendo o real ou o mundo dos sonhos, devaneios e impressões do protagonista. O mais interessante é que isto se dá à medida que se alonga a leitura; até determinado momento estamos presos ao problema do cuidado do mesmerista com o paciente que ele, na verdade, não consegue acessar. Por fim, o tema recorrente em Bolaño, a política, o fascismo, o comportamento das pessoas em regimes de exceção.



O quarto livro destas leituras: Estrela distante. O melhor que tenho lido do autor até agora, não que os outros não sejam ótimos. Uma tensão na narrativa que é  coisa de mestre. Noto a semelhança com relação à memória do narrador em Noturno do Chile, um preenchimento de lacunas com a imaginação, a dedução. E o narrador deixando claro que não tem a ambição ou mesmo a pretensão de recompor um retrato exato, mas um retrato aproximado dos fatos e da forma como se deram. Ou não. Tanto o narrador quanto seu amigo Bibiano, artistas, poetas ligados à esquerda chilena, veem-se diante da instauração da ditadura e do desaparecimento de seus amigos.

Daqueles livros excelentes que a gente termina em silêncio, muito silêncio, quase choro, porque dizem o que dizem, mas dizem ainda mais. Silêncio reverberando para encontrar mais sentido. E um dos melhores e mais bem escritos capítulos de finalização. Ficção de primeira.




Dando um espaço entre as leituras de Roberto Bolaño, peguei este Bioy Casares, A invenção de Morel. O prólogo de Jorge Luis Borges já começa fazendo do livro algo delicioso. Classifica-o como perfeito. A gente lê e só tem como concordar. Vamos acompanhando este foragido da justiça que, escondido numa ilha, em pesadas condições de sobrevivência, escreve defendendo que é inocente. A ilha, que era deserta, e onde uma estranha doença "que ocorre de fora para dentro" acomete os visitantes, agora abriga outras pessoas. Não sabemos, no início da narrativa, se são reais ou mesmo do que se trata. Logo, a preocupação do diário do narrador passa a ser Faustine, esta mulher misteriosa, num lugar onde tudo é misterioso. Linguagem ao mesmo tempo refinada e objetiva, onde contar a história para o leitor não se torna menos importante. Final surpreendente e emocionante. Metáforas várias e muitas chaves de leitura. Um dos melhores livros que já li. Grande Adolfo Bioy Casares.






Iniciando Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Muita poesia deliciosamente disfarçada na prosa. Um mundo fantástico se revelando aos nossos olhos científicos com tanta naturalidade que voltamos a ouvir histórias como quando as ouvíamos, crianças. A linguagem é maravilhosa. Um trechinho:

"— ... Esse fulano de quem estou falando trabalhava como “amansador” na Media Luna; dizia que seu nome era Inocencio Osorio. Mas todos o conheciam pelo mau nome de Busca-pé porque ele era muito leve e ágil para os saltos. Meu compadre Pedro dizia que ele era como se tivesse sido mandado fazer para amansar cavalos; mas a verdade é que tinha outro ofício: o de “provocador”. Era provocador de sonhos. Isso é o que ele era de verdade. E acabou enganando sua mãe do mesmo jeito que fazia com muitas. Entre outras, comigo. Uma vez que me senti doente, ele apareceu e me disse: “Venho tomar seu pulso para que você se alivie.” E tudo aquilo consistia em que ele se soltava apalpando a gente, primeiro nas pontas dos dedos, depois esfregando as mãos; e então os braços, e acabava se metendo pelas pernas da gente, a frio, e depois de um tempinho aquilo tudo acabava provocando um calorzinho. E, enquanto manobrava, ele falava do futuro. Entrava em transe, virava e revirava os olhos, invocando e amaldiçoando; enchia a gente de cuspidelas, do jeito que os ciganos fazem. Às vezes ficava pelado porque dizia que era esse o nosso desejo. E às vezes chegava lá; picava por tantos lados que acabava acertando."




O livro de areia, de Jorge Luis Borges. O primeiro conto, O outro, é fabuloso. Frases memoráveis. Situação de espanto. A conversa de Jorge Luis Borges quando se depara com Jorge Luis Borges: " - Se esta manhã e este encontro forem sonhos, cada um dos dois tem de pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa obrigação evidente, enquanto isso, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e ter sido gerados e olhar com os olhos e respirar."
No segundo, Ulrika, um exemplo do que pode ser um conto belíssimo sobre o amor, sempre com a inteligência arguta de Borges, que constrói teias de pensamento enquanto narra. There are more things, absolutamente genial; sem falar em O congresso do mundo. Enfim, é um livro tão bom, tão completo, que eu digo dele: perfeito. Daqueles livros de contos que a gente deixa por perto para mostrar às pessoas: este é O livro. 




A longa viagem de prazer, de Juan José Morosoli, escritor uruguaio, seleção e tradução de Sérgio Faraco. Este livro é delicioso, eu digo mais: este livro é genial também. Os contos revelam personagens que falam pouco, cheios de silêncio, atendendo apenas às premências da vida. São personagens de um tempo que já acabou, mas eles ainda restaram. É daqueles livros que quando chegam à mão do leitor ele se sente alguém de sorte, por ter sido conduzido à sua leitura. Juan José Morosoli é um mestre. Além de contar, ele conta dividindo o tempo, nos blocos de parágrafos, com o espaçamento que indica a sua passagem. Um primor. 
"O outro continuava e Llanes começou a impacientar-se por ver que ele se conformava e ainda ia contando devagarinho, contra seu desejo de que a história terminasse em algo. De que acontecesse algo, enfim. Até que o interrompeu:
- Mas você não fica louco, amigo? Isso é pior do que ser paralítico?
- E não? Um paralítico tá paralítico e fim, mas você pode andar, fazer qualquer coisa, não tá amarrado, nem doente, nem preso, nem sei lá o que mais.
- Sim, tem razão, mas...
Os dois tinham desabafado. Pareciam estar vazios. O silêncio não os separava e tampouco os unia. Como se tivessem voltado à natural solidão. Ficaram assim até que Llanes disse:
- Que acha de ir até meu rancho e comer um assado?
O velhinho só aceitou porque lhe faltou força para recusar. Não compreendia como pudera saltar fora de sua rotina, de seu destino de peça engrenada num vazio que o fazia funcionar sem razão. Que o fazia funcionar só por funcionar. Sem explicação possível." (Do conto Dois velhos)


E por fim, porque o ano acabou, mas as leituras continuarão, As armas secretas, de Julio Cortázar.  O primeiro conto As cartas de mamãe. Intrigante, leva-nos à leitura sem querer parar. A vida de um casal vivendo em Paris, sendo revelada aos poucos pelas cartas de mamãe, cartas simples, sobre acontecimentos simplórios, na cumplicidade do silêncio, até que um pequeno detalhe de "troca" de nome traz a desestabilização do frágil equilíbrio de uma relação suspensa pela mentira e pela omissão. Genial. Os bons serviços é outro conto que me chamou a atenção. Narrado em primeira pessoa, madame Francinet nos leva, de seu presente, quando já nem consegue mais forrar rapidamente as camas das casas em que trabalha, ao passado em que chegou a prestar serviços muito estranhos. Um conto sobre uma vida dura e uma alma doce, desses que a gente jamais se esquece. As babas do diabo, O perseguidor e as armas secretas são igualmente bons. O último, conto homônimo do livro, reverbera, é surpreendente. Uma excelência.



Grande abraço para todos. E um bom 2017 para nós.

Na fotografia: Borges e Bioy

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