A fotografia despudorada de Sérgio Fantini ou os olhos da empatia
Passo pela cidade, minha
cidade, tão feinha Belo Horizonte por onde passo. Lá onde veste seu
melhor vestido, vou vez em quando, vou para lazer. No “todo dia”,
percorro o que é para ficar no escuro.
Há livros que não mudam
nada, há livros mudos. Há livros que nos mudam, verdadeiros
incômodos a cutucar verdades guardadinhas. E há livros que mudam a
forma como olhamos as coisas. E isso é irremediável.
Agora não tem mais jeito,
abri este livro de fotografias. Este lambe-lambe não contente em
lançar seu flash de magnésio pela sua própria vida, fez o favor de
publicar suas impudências. Lançou luz sobre o escuro e não parei
mais de ver a mendigaria, os moradores de rua, os gatos no parque, os
camelôs e sua algazarra, os favelados, os hippies vendendo suas
bugigangas e expondo essas diferenças do que somos, os meus
preconceitos e os meus pós-conceitos flagrados.
Nunca mais passar pelo Parque
Municipal apenas passando, agora é ver os velhos, a sua solidão, os
bancos sempre ocupados e essa vontade de gritar que quero me sentar
na grama porque não aguento mais esse mundo imundo. Agora é olhar
para o passado e me lembrar de minha mãe empregada doméstica, tão
incômoda e tão necessária na casa dos patrões. Mamãe mulata,
linda, jovem, passando por cima de assédios para não perder emprego
e mudando móveis de lugar na ingenuidade amável de quem pensa que
está agradando.
Minha cidade que se droga
para ver, que se droga para não ver. Os carroceiros de minha
infância, os cavalos que comovem todas as crianças, pois nenhuma
criança jamais entendeu a violência contra os cavalos. Agora saio
pensando na violência contra os carroceiros, sua vida de açoite,
essa transferência de quando as metáforas estão materializadas,
quando sou interrompida pela inércia calculada dos jogadores de dama
da praça 7 de Setembro. Quando um grito de um pastor evangélico
quer sobrepor toda identidade. Cidade louca. Eu penso: independência
ou morte.
Valei-me. Continuo o álbum e
vejo: que nunca entrei numa barbearia. Sempre as olhei de fora com
muita curiosidade, as suas cadeiras-máquinas-do-tempo. E este
cachorro na porta, fotografado pelo lambe-lambe, eu posso jurar que
já o vi.
É pela manhã que saio todos
os dias, transporte público, esses motoristas que trabalham seis
viagens sem parada, que almoçam em 15 minutos, que fazem suas
necessidades fisiológicas em banheiros fétidos que as empresas de
ônibus não se dão ao trabalho de mandar limpar. Digo a eles bom
dia porque sei que não é fácil. Muitos respondem, surpresos que
alguém ainda os veja. Agora é assim.
Saio clicando com a lente do
lambe-lambe, a cidade vai mudando aos pouquinhos e ainda carregando
um tanto do que foi há 117 anos. Há 300, quando ainda era um
arraial, mas trazia tantos pés descalços. Ao menos o amor mudou. Eu
também já achei estranho as duas meninas se beijando publicamente.
Como seria uma cidade que se beijasse?
Nas páginas entre os contos,
encontrei esses 3x4, amarelando. Anônimos que se tornam especiais
apenas ali, na lateral da máquina-caixote de fotografia. Estão
chegando na rodoviária, vêm tentar uma nova vida nesta Belo
Horizonte, acreditam na promessa deste nome. E agora, iluminada por
quem não tem medo de lamber o vidro, de verificar qual lado da chapa
é doce e qual é o amargo, talvez eles possam se localizar.
Passei a andar com este
livro. Vou e volto para casa. Sim, eu encontro o caminho.
A verdadeira literatura é a
que nos mostra o quanto estamos perdidos.
Lambe-Lambe
Sérgio Fantini
Editora Jovens Escribas
2016
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