domingo, 26 de junho de 2016

Beijo, boa sorte – de Ana Elisa Ribeiro





Por Adriane Garcia


O título é uma despedida. Já nas epígrafes, um casamento e um divórcio. “Escrevo para me casar” e “por que você não para de escrever/ E passa a dizer tchau?” de Adília Lopes.

A capa, um pano branco de bolinhas vermelhas, sinaliza um vestido, uma saia, sinaliza a delicadeza e sugere alguma dor. Viro o livro, a contracapa é uma grande mancha de sangue sobre o pano do vestido. Respiro. Entro. Abro o livro.

A prosa vem entrecortada de poesia, de forma sutil, segue junto a uma frieza. Fica por conta do leitor certa compaixão pelos personagens. É um livro sobre mulheres, sobre a ótica das mulheres nas relações e de dentro delas. Ana Elisa Ribeiro tem o cinismo dos bons escritores, que dizem isso para dizer aquilo e dizem aquilo para dizer aquilo mesmo.

À fantasia de que mulheres portam-se ou portavam-se apenas passivamente num território patriarcal, Ana responde com donas de casa que colocam na balança homens, filhos e a si mesmas. Mulheres cujas escolhas só podem ser entendidas no terreno da falta delas, mas por isso mesmo, num universo reinventado onde cabe tanto o holocausto para proteger os filhos, quanto o assassinato do opressor. Sua denúncia ultrapassa os lares e vai às ruas, de dentro de um conto, do nada, de repente, Ana está denunciando a violência policial. Neste conto em que fala das prostitutas da rua Guaicurus, famosa zona de prostituição de Belo Horizonte, a autora faz isso como quem nada quer, inverte. E ao inverter, mostra-nos que a realidade é que se encontra com os valores trocados:

(…) Elas estão ali rezando, com as mãos em concha, pedindo que reabram os quartinhos em que atendem os clientes. E elas dizem que não, que não têm nada a ver com o tráfico de drogas. Quem trafica são os policiais militares. E ainda lhes arrancam parte do soldo recebido com sal na testa e cheiro de látex. E ainda xingam-nas. E ainda solicitam serviços de graça. Beijinho, beicinho, chupadinha grátis.”

Seus narradores variam, algumas vezes é o homem quem fala, e quando fala, é de sua boca que sai a confissão da violência ou da redenção que uma mulher lhe causara. Não raro, é de sua boca – como na mais dura e repetida realidade – que sai a acusação de culpa atribuída à vítima. Com recursos da melhor ironia literária, Ana Elisa Ribeiro cava os feminicídios, escancara-os, faz com que este bizarro apareça na obra de arte.

Ontem, saí do primeiro; saí do segundo; o terceiro soco pegou.”

O conto acima se chama “explicação na delegacia de ccm” e, prosseguindo, vamos notando, que onde existe opressão violenta, a violência pode mudar de lado.

A mulher idealizada de outrora é agora Maria da Purificação, a puta. A mulher insatisfeita no casamento fomenta sonhos de adultério – e realiza. A viúva dá uma festa, porque não suportava mais o marido. Outra se submete terrivelmente, e perde a vida para proteger a vida, única coisa que lhe resta, sabe-se lá para qual finalidade. A narrativa é perversa e com requintes de crueldade, mas há sutileza, muita e um humor ácido:

Desde que nos conhecemos me policio para não chamá-la pelo nome da falecida, mas não sei de onde vêm essas desgraças. A boca diz o que nem é sincero.”

Seu humor ácido, quer corroer o que é dado como natural:

Às vésperas do casamento, mandou-me um bilhete, representante máximo de sua franqueza presente e futura: não lavo, não passo, não sei cozer nem desejo aprender, não limpo, não seco, não espano. Baixei os olhos, verti uns pequenos arrependimentos antecipados e me casei.”

Neste universo, majoritariamente de histórias de quem não é feliz para sempre, sobra muito espaço para filhos infelizes, que continuarão a roda sem fim da infelicidade conjugal, do aprendizado do poder violento, do machismo, da humilhação pela subserviência e anulação de seres humanos.

Todo um universo frequentado por mulheres aparece nesta literatura, não podendo faltar a maternidade, que, obviamente, tratando-se de Ana Elisa Ribeiro, não seria decorada com o manto da Virgem Maria. A maternidade que ela nos dá, e que algumas mulheres escritoras começam – felizmente – a nos dar, é a maternidade real, cheia de cuidados difíceis, de resignações e sacrifícios, na maioria das vezes sem qualquer colaboração masculina; é a maternidade repleta de dúvidas e culpa por não se encaixar no que homens discursaram sobre a maternidade que sequer conhecem.

Creio que não seja necessário argumentar sobre a importância de livros como este no mundo que vivemos, especificamente nesta atualidade e no país em que ele foi publicado. Sabemos que nossa formação literária vem com mais lacunas do que simplesmente a dos livros que não lemos por falta de tempo. Há algo novo e complementar que esta literatura abordando o universo e o ponto de vista feminino traz. Este algo pode ser claramente reconhecido neste Beijo, boa sorte.

A literatura sempre foi o campo de se falar o que o mundo é e a melhor literatura sempre registrou o seu tempo.

No final do livro, Ana nos relata que escreveu estes contos curtos no blog A estante, entre 2001 e 2003. É. Ela mora na contemporaneidade desde sempre.

Beijo, Boa sorte
Ana Elisa Ribeiro
Editora Jovens Escribas
2015
72 páginas















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