Ganhei esta antologia, de presente, da querida Dagmar Braga, poeta e grande incentivadora da literatura aqui, nestas terras belorizontinas. Demorei a poder estar neste silêncio e prontidão que a poesia exige para ser lida. Estando, nossa!, que tesouro.
Para quem, como eu, conhece pouco da poesia portuguesa, a não ser o mais óbvio, um desvendar e tanto (antologias servem para indicar caminhos, vislumbrar possíveis panoramas). Para quem conhece bastante, é um exercício delicioso da revisita.
Os dezoito poetas, nascidos entre 1900 e 1950 - este o recorte temporal que escolheu o organizador - são Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugênio de Andrade, António Manuel Couto Viana, Mário Cesariny, Herberto Helder, Antônio José Forte, Fernando Assis Pacheco, Armando Silva Carvalho, Luiza Neto Jorge, A. M. Pires Cabral, Fátima Maldonado, António Franco Alexandre, Manuel Gusmão e José Amaro Dionísio. O organizador, Manuel de Freitas, salienta que os poetas João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, também com poemas selecionados para a antologia, preferiram não ser incluídos.
Impressionaram-me muito, neste livro, os poemas de Eugênio de Andrade, Mário Cesariny e Fernando Assis Pacheco. Posto aqui alguns deles. É, sem dúvida, leitura recomendadíssima:
"Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tateia no escuro
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca
também a terra morre."
(Eugênio de Andrade)
"Esta noite a loucura do meu ofício
privilegia os falcões;
vou morrer; à altura da boca
o mar pode ser a casa.
A manhã expulsará o sol do olhar;
fui algo para ver a neve,
para colher a transparente e verde
fragrância do ar.
Ninguém pode suportar de olhos abertos
o peso do mundo;
com a noite foram-se os cavalos;
partem para não morrer."
(Eugênio de Andrade)
hoje, dia de todos os demônios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros
ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir
preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado
Sem Jeito Para o Negócio
(Mário Cesariny)
A Antonin Artaud
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu ão tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar "tenebroso e cantante" suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito - e creio que digo bem -
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
Haverá uma idade para nomes que não estes
Haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
Ah, não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
Haverá
um acordar
(Mário Cesariny)
Eu tinha grandes naus
Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.
Os poetas lamentam-se demais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?
O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isso fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.
Lamentam-se demais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.
Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.
Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso."
E esperava o sândalo e a canela.
(Fernando Assis Pacheco)
O garrote
Ribeiras limpas acudi-me.
Vou ficar vivo enconstado
a esta memória de trampa.
Os meus olhos já foram brilhantes.
Sei fazer alguns versos mas nem sempre.
Eu narrador me confesso.
A guerra lixou tudo.
É curioso como se bebia
água podre.
Não falando no vinho, muito.
Durante os ataques doía-me um joelho.
Estou pronto, pensei.
Ninguém me conhece.
Os ratos são felizes.
Vocês não sabem como se perde a tusa.
De resto não serve para nada.
A melhor noite que eu tive
em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky.
Sei fazer versos mas doem.
Ninguém me conhecia dentro do arame.
O único joelho decente de Angola
embebeda-se no Norte.
Vou para escrever e paro.
Deixei-me disso.
Sou feiíssimo ao espelho.
Recordação súbita duma litografia
castelhana: o garrote.
Não vos perdoo.
Suponho que a violência tem os dias contados.
Se não é assim é parecido.
Eu vi-os sair do quartel
com as alpergatas nas últimas.
Vai ali o Ocidente, escrevi.
Vai beber água podre.
E depois há um que pisa uma armadilha.
Houve um que pisou uma armadilha!
Sei fazer versos. Ou seja: nada.
O coto em sangue.
Neste ponto o narrador sofreia a imaginação.
Ninguém disse que me conhecia.
Conheço um rato, está em cima duma viga.
Serve para a gente olhar.
(Fernando Assis Pacheco)
Impressionaram-me muito, neste livro, os poemas de Eugênio de Andrade, Mário Cesariny e Fernando Assis Pacheco. Posto aqui alguns deles. É, sem dúvida, leitura recomendadíssima:
"Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tateia no escuro
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca
também a terra morre."
(Eugênio de Andrade)
"Esta noite a loucura do meu ofício
privilegia os falcões;
vou morrer; à altura da boca
o mar pode ser a casa.
A manhã expulsará o sol do olhar;
fui algo para ver a neve,
para colher a transparente e verde
fragrância do ar.
Ninguém pode suportar de olhos abertos
o peso do mundo;
com a noite foram-se os cavalos;
partem para não morrer."
(Eugênio de Andrade)
hoje, dia de todos os demônios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros
ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir
preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado
Sem Jeito Para o Negócio
(Mário Cesariny)
A Antonin Artaud
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu ão tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar "tenebroso e cantante" suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito - e creio que digo bem -
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
Haverá uma idade para nomes que não estes
Haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
Ah, não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
Haverá
um acordar
(Mário Cesariny)
Eu tinha grandes naus
Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.
Os poetas lamentam-se demais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?
O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isso fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.
Lamentam-se demais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.
Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.
Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso."
E esperava o sândalo e a canela.
(Fernando Assis Pacheco)
O garrote
(para Maria Mendes, minha mãe)
Ribeiras limpas acudi-me.
Vou ficar vivo enconstado
a esta memória de trampa.
Os meus olhos já foram brilhantes.
Sei fazer alguns versos mas nem sempre.
Eu narrador me confesso.
A guerra lixou tudo.
É curioso como se bebia
água podre.
Não falando no vinho, muito.
Durante os ataques doía-me um joelho.
Estou pronto, pensei.
Ninguém me conhece.
Os ratos são felizes.
Vocês não sabem como se perde a tusa.
De resto não serve para nada.
A melhor noite que eu tive
em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky.
Sei fazer versos mas doem.
Ninguém me conhecia dentro do arame.
O único joelho decente de Angola
embebeda-se no Norte.
Vou para escrever e paro.
Deixei-me disso.
Sou feiíssimo ao espelho.
Recordação súbita duma litografia
castelhana: o garrote.
Não vos perdoo.
Suponho que a violência tem os dias contados.
Se não é assim é parecido.
Eu vi-os sair do quartel
com as alpergatas nas últimas.
Vai ali o Ocidente, escrevi.
Vai beber água podre.
E depois há um que pisa uma armadilha.
Houve um que pisou uma armadilha!
Sei fazer versos. Ou seja: nada.
O coto em sangue.
Neste ponto o narrador sofreia a imaginação.
Ninguém disse que me conhecia.
Conheço um rato, está em cima duma viga.
Serve para a gente olhar.
(Fernando Assis Pacheco)
Eu adoro os poetas portugueses do século XIX...
ResponderExcluirDigo, XX.
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