“Não
se entra no reino da morte vestido. Conheci as mãos de Raul, a
saliva macia, sua boca aberta, engolindo-me pedaços e líquidos.
Acordamos o dia no final da noite gozando o fato de sermos machos.
Fomos homem um para o outro.” (Fala de Luis, p. 25)
Com
o pouco tempo de que disponho para leituras (para a vida, realmente –
visto que a Engrenagem nos assalta à mão armada, cotidianamente),
li o romance de Adrienne Myrtes, Eis o mundo de fora, pelo Ateliê
Editorial. Em três dias, ou seja, a leitura é muito fluida e
instiga a continuar. Também, a autora conhece a sedutora arte dos
bons primeiros parágrafos.
Com
dois protagonistas que se revezam, Irene e Luis, Adrienne Myrtes,
desde a primeira página – que já é o ápice de um drama – nos
sequestra: estamos diante de uma tentativa de suicídio e não vamos
mais parar. A forma absolutamente natural e verossímil não
antagoniza com a linguagem literária tão bem cuidada. Excelente
literatura é a que, sendo, nos faz esquecer de que estamos lendo
literatura. Irene e Luis nos levam até suas vidas. Seus mundos de
dentro atropelados pelo mundo de fora. O mundo de fora, o alimento de
suas digestões e digressões.
Irene
é a mulher que se tornou fria com relação ao amor, a que repele o
amor conscientemente: “o que eu sabia é que me sentia sem
corrimão, sem prumo, em resumo, que aquilo não era bom. Até doía.
Pior, era um inferno. E aquilo era o amor. O amor cantado e decantado
pela natureza humana. Amar para quê? Para dar chance a meu coração
de me enforcar?”. Luis é o único amigo de Irene, ator, entre
amores e michês, um homem que se recusa a sair da adolescência
amorosa, e que vive a vida na intensidade dos cortes. Eros e Thanatos
acompanham as personagens, Dionísio dá as caras e algumas cartas.
Sim, é um livro sobre vida e morte, sobre amor e morte e também
sobre esse amor puro e raro chamado amizade.
No
meio da depressão de Luis, que mora com Irene, um telefonema faz com
que ela tenha que voltar à cidade de sua infância.
Consequentemente, rever a avó, Dona Auxiliadora, Tia Lurdinha, Léa,
a mãe que nunca é chamada de mãe e Moacyr, o primeiro homem na
vida sexual e amorosa de Irene. Rever a própria infância e a origem
das primeiras despedidas. Juntos, ela e Luis encontrarão, nessa
visita de uma semana, cada um a seu modo, motivos para novas
reflexões e amadurecimentos. Irene terá que enfrentar tudo o que
deixou para trás, fatos que a autora soube dosar com maestria,
revelando-nos, aos poucos, o passado de sua personagem. Luis
encontrará o distanciamento suficiente, e desejado, para se
reencontrar e tentar esquecer Raul, ainda que seja para constatar
suas repetições: “Na verdade gostaria de ser salvo pela
distância. Ficar afastado da vida, receber uma suspensão. Não
estar com algumas pessoas, não precisar contar histórias, enredar
fatos, encontrar palavras para dar explicações. Explicações que
não tenho nem para mim.”
Em
Eis o mundo de fora, a dor assume uma questão central , tanto a
física quanto a psicológica. Adrienne Myrtes, trabalha, por meio de
suas personagens, a consciência de que somente a dor nos acorda para
o que somos (iguais) e, ao mesmo tempo, um desejo fracassado de torpor, seja
pelo excesso de verdade ou pelo excesso dos sentidos, para não
senti-la tanto, pois o que somos não é notícia agradável. Nas
palavras de Irene, “Estar vivo é estar doente, mas não sei lidar
com a dependência gerada por isso. Odeio lamentação, lamúria,
odeio com a mesma intensidade a falta de lamentação, o sofrimento
digno, abnegado. Mártir. Alguém que se entrega aos vermes.
Passivamente. A dignidade existe em olhar na cara da dor e rosnar”.
A sinceridade das palavras dos dois personagens conversa com a nossa
sinceridade, assusta-nos, como finalmente o faria um espelho
verdadeiro. A autora não sopra a ferida, ela a escancara, até que
possamos ver um coração que pulsa, não importa até quando, que,
enquanto pulsa, flerta com a morte, mas quer pulsar. A morte é o
evento marcado, Irene sabe que é a única coisa que sabemos. E, se
Irene encara a morte de frente, Luiz encara a vida: “Descobri que
prefiro ser atacado pela morte sem aviso, pelas costas.”
Eis
o mundo de fora é também pontuado por paradoxos, ideias que
Adrienne Myrtes subverte: a morte não é o desconhecido; a vida é
que, sem controle algum, vem, mas não nos diz a que veio. A morte
encerra a dor, mas sabê-la não é suficiente para executá-la.
Imperativo é viver. Daí a admiração de Irene por Luis, ciente de que ele, sim, enfrenta fera de maior perigo. Luis, por seu lado,
encontra em Irene o esteio de lucidez que o salva de tanta vida.
Aqui
e ali, muito pontuais, pitadas de um humor inteligente e ácido, como
no início do capítulo XXV: “Odeio gente gentil. Gentileza não é
coisa natural, é sem princípios. Gentileza é invenção de
vendedor.”, ou quando Luis é apresentado a Moacyr: “Essa era
Irene tentando me convencer a me comportar como um criado velho,
surdo-mudo numa peça renascentista. Fiquei quieto porque o pretenso
amigo era um tesão e a vida é vaudeville.”.
As
ilustrações, também feitas pela autora, tornam o livro um conjunto
íntimo e rico. O romance traz trechos e mais trechos de grande
beleza e reflexão. Copio um, entre os inúmeros que marquei (e que
marcaram minha leitura).
“A
criança é a maior prova de que o homem não nasce bom. O homem
apenas nasce. Todo o resto é tecido que fabricamos para proteger a
pele. Para brincar de esconde-esconde.
Passei
a infância me escondendo de minha maldade interior, sentindo pena
das lagartixas mortas em favor das experiências necessárias ao
exercício de minha curiosidade. A investigação científica era
minha forma de brincar de adulto e eu precisava me sentir próxima as
pessoas que me rodeavam. A morte fazia-se necessária para as
descobertas, mas ela vinha costurada à compunção. A imagem do
bicho morto, das vísceras expostas, da gordura do sangue, provocava
certo sofrimento em mim. O sentimento corria em círculos, ao redor
da irreversibilidade do feito. Uma vez morto, morto até o fim.
Durante alguns minutos eu me arrependia e havia verdade nisso,
cheguei ao ponto de fazer enterro de alguns animais depois de
dissecados, arrumando-os em pequenas caixas cheias de flores. Acendia
velas e fazia orações pela metade, imitando minha avó diante de
seus santos. Mas isso não me impedia de matar outro quando precisava
fazer outra experiência. Eu era criança e criança não tem alma.”
(p. 39)
O mundo de fora pode ser também um sonho, sair de si, estar liberto deste jogo chamado vida, onde não há manual ou sentido e onde só nos resta caminhar: "A vida é a possibilidade que tenho no momento, o que me resta. Por isso o que tenho a fazer é me levantar da cama e começar o meu dia."
Um
livro excelente, de uma autora que merece ser lida, porque tem muito
a dizer e sabe como.
***
Eis o mundo de fora
Adrienne Myrtes
Ateliê Editorial
2011
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