quarta-feira, 19 de abril de 2017

Eis o mundo de fora – O mundo de dentro, de Adrienne Myrtes



Não se entra no reino da morte vestido. Conheci as mãos de Raul, a saliva macia, sua boca aberta, engolindo-me pedaços e líquidos. Acordamos o dia no final da noite gozando o fato de sermos machos. Fomos homem um para o outro.” (Fala de Luis, p. 25)

Com o pouco tempo de que disponho para leituras (para a vida, realmente – visto que a Engrenagem nos assalta à mão armada, cotidianamente), li o romance de Adrienne Myrtes, Eis o mundo de fora, pelo Ateliê Editorial. Em três dias, ou seja, a leitura é muito fluida e instiga a continuar. Também, a autora conhece a sedutora arte dos bons primeiros parágrafos.

Com dois protagonistas que se revezam, Irene e Luis, Adrienne Myrtes, desde a primeira página – que já é o ápice de um drama – nos sequestra: estamos diante de uma tentativa de suicídio e não vamos mais parar. A forma absolutamente natural e verossímil não antagoniza com a linguagem literária tão bem cuidada. Excelente literatura é a que, sendo, nos faz esquecer de que estamos lendo literatura. Irene e Luis nos levam até suas vidas. Seus mundos de dentro atropelados pelo mundo de fora. O mundo de fora, o alimento de suas digestões e digressões.

Irene é a mulher que se tornou fria com relação ao amor, a que repele o amor conscientemente: “o que eu sabia é que me sentia sem corrimão, sem prumo, em resumo, que aquilo não era bom. Até doía. Pior, era um inferno. E aquilo era o amor. O amor cantado e decantado pela natureza humana. Amar para quê? Para dar chance a meu coração de me enforcar?”. Luis é o único amigo de Irene, ator, entre amores e michês, um homem que se recusa a sair da adolescência amorosa, e que vive a vida na intensidade dos cortes. Eros e Thanatos acompanham as personagens, Dionísio dá as caras e algumas cartas. Sim, é um livro sobre vida e morte, sobre amor e morte e também sobre esse amor puro e raro chamado amizade.

No meio da depressão de Luis, que mora com Irene, um telefonema faz com que ela tenha que voltar à cidade de sua infância. Consequentemente, rever a avó, Dona Auxiliadora, Tia Lurdinha, Léa, a mãe que nunca é chamada de mãe e Moacyr, o primeiro homem na vida sexual e amorosa de Irene. Rever a própria infância e a origem das primeiras despedidas. Juntos, ela e Luis encontrarão, nessa visita de uma semana, cada um a seu modo, motivos para novas reflexões e amadurecimentos. Irene terá que enfrentar tudo o que deixou para trás, fatos que a autora soube dosar com maestria, revelando-nos, aos poucos, o passado de sua personagem. Luis encontrará o distanciamento suficiente, e desejado, para se reencontrar e tentar esquecer Raul, ainda que seja para constatar suas repetições: “Na verdade gostaria de ser salvo pela distância. Ficar afastado da vida, receber uma suspensão. Não estar com algumas pessoas, não precisar contar histórias, enredar fatos, encontrar palavras para dar explicações. Explicações que não tenho nem para mim.”

Em Eis o mundo de fora, a dor assume uma questão central , tanto a física quanto a psicológica. Adrienne Myrtes, trabalha, por meio de suas personagens, a consciência de que somente a dor nos acorda para o que somos (iguais) e, ao mesmo tempo, um desejo fracassado de torpor, seja pelo excesso de verdade ou pelo excesso dos sentidos, para não senti-la tanto, pois o que somos não é notícia agradável. Nas palavras de Irene, “Estar vivo é estar doente, mas não sei lidar com a dependência gerada por isso. Odeio lamentação, lamúria, odeio com a mesma intensidade a falta de lamentação, o sofrimento digno, abnegado. Mártir. Alguém que se entrega aos vermes. Passivamente. A dignidade existe em olhar na cara da dor e rosnar”. A sinceridade das palavras dos dois personagens conversa com a nossa sinceridade, assusta-nos, como finalmente o faria um espelho verdadeiro. A autora não sopra a ferida, ela a escancara, até que possamos ver um coração que pulsa, não importa até quando, que, enquanto pulsa, flerta com a morte, mas quer pulsar. A morte é o evento marcado, Irene sabe que é a única coisa que sabemos. E, se Irene encara a morte de frente, Luiz encara a vida: “Descobri que prefiro ser atacado pela morte sem aviso, pelas costas.”

Eis o mundo de fora é também pontuado por paradoxos, ideias que Adrienne Myrtes subverte: a morte não é o desconhecido; a vida é que, sem controle algum, vem, mas não nos diz a que veio. A morte encerra a dor, mas sabê-la não é suficiente para executá-la. Imperativo é viver. Daí a admiração de Irene por Luis, ciente de que ele, sim, enfrenta fera de maior perigo. Luis, por seu lado, encontra em Irene o esteio de lucidez que o salva de tanta vida.

Aqui e ali, muito pontuais, pitadas de um humor inteligente e ácido, como no início do capítulo XXV: “Odeio gente gentil. Gentileza não é coisa natural, é sem princípios. Gentileza é invenção de vendedor.”, ou quando Luis é apresentado a Moacyr: “Essa era Irene tentando me convencer a me comportar como um criado velho, surdo-mudo numa peça renascentista. Fiquei quieto porque o pretenso amigo era um tesão e a vida é vaudeville.”.
As ilustrações, também feitas pela autora, tornam o livro um conjunto íntimo e rico. O romance traz trechos e mais trechos de grande beleza e reflexão. Copio um, entre os inúmeros que marquei (e que marcaram minha leitura).

A criança é a maior prova de que o homem não nasce bom. O homem apenas nasce. Todo o resto é tecido que fabricamos para proteger a pele. Para brincar de esconde-esconde.
Passei a infância me escondendo de minha maldade interior, sentindo pena das lagartixas mortas em favor das experiências necessárias ao exercício de minha curiosidade. A investigação científica era minha forma de brincar de adulto e eu precisava me sentir próxima as pessoas que me rodeavam. A morte fazia-se necessária para as descobertas, mas ela vinha costurada à compunção. A imagem do bicho morto, das vísceras expostas, da gordura do sangue, provocava certo sofrimento em mim. O sentimento corria em círculos, ao redor da irreversibilidade do feito. Uma vez morto, morto até o fim. Durante alguns minutos eu me arrependia e havia verdade nisso, cheguei ao ponto de fazer enterro de alguns animais depois de dissecados, arrumando-os em pequenas caixas cheias de flores. Acendia velas e fazia orações pela metade, imitando minha avó diante de seus santos. Mas isso não me impedia de matar outro quando precisava fazer outra experiência. Eu era criança e criança não tem alma.” (p. 39)

O mundo de fora pode ser também um sonho, sair de si, estar liberto deste jogo chamado vida, onde não há manual ou sentido e onde só nos resta caminhar: "A vida é a possibilidade que tenho no momento, o que me resta. Por isso o que tenho a fazer é me levantar da cama e começar o meu dia." 

Um livro excelente, de uma autora que merece ser lida, porque tem muito a dizer e sabe como.

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Eis o mundo de fora
Adrienne Myrtes
Ateliê Editorial
2011


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