terça-feira, 16 de maio de 2017

O mar não sofre coisa morta – O pesadelo humano na literatura de Leonardo Paiva.



Por Adriane Garcia

Que coisa feliz é quando um livro curto, com poucas páginas, é suficiente. Assim é O mar não sofre coisa morta, de Leonardo Paiva.

A edição caprichada da editora Moinhos traz uma capa que chama a atenção, um naufrágio, uma tempestade, o cinza engolindo o azul e um barco com pessoas que tentam sobreviver à sua tragédia.

O mar não sofre coisa morta é composto por nove contos, de tamanho médio.  Já no primeiro conto, Lourdes, o leitor poderá perceber a força da narração de Leonardo Paiva, que publica pela primeira vez.  A cena de Lourdes matando uma galinha e aguardando que os coelhos mortos, e devidamente limpos, cheguem para a refeição que preparará, mais que bem descrita, revela a crueza de uma linguagem atenta à palavra e à frase. O texto de Leonardo é preciso e cuidado. Interrompida pela notícia da morte de um familiar que é “persona non grata”, Lourdes precisa pausar seus afazeres para ir reconhecer-lhe o corpo. É isso, O mar não sofre coisa morta é um livro em que os personagens não têm tempo ou mesmo oportunidade de não seguir em frente, ainda que a frente seja mais crueldade, o mundo, sabemos, não sai da frente e eles vão.

No conto Véspera de Páscoa, mulheres que precisam lidar com a violência que lhes é imposta. Além da história curiosa, cujo cenário nos coloca num presídio de paredes brancas, em cima de uma colina, a condução do conto é uma delícia rítmica, o texto respira, enquanto nossa respiração fica tensa pela realidade surreal e tão próxima das “mulheres da vez”. Em O ciúme, Leonardo consegue mesmo nos surpreender quanto à voz narradora, o que universaliza o amor de forma comovente. Mas é em Afogados que ele nos faz chorar. Tão próximos, os meninos Iago e Ricardo atravessam a estrada e a adolescência; com muita sutileza, Leonardo Paiva sugere o amor homoerótico, tão naturalmente, que compreendemos a violência silenciosa do que para Iago é um interdito: ele não pode demonstrar o amor por outro menino, nem mesmo manifestar o que possa ser entendido como desejo; mas tudo é sugestão, Leonardo Paiva revela mesmo é uma amizade pura e profunda, que não poderia aceitar a morte.

Em Os primos, reforça-se uma característica curiosa da linguagem do autor. Em muitos contos, e também neste, as pessoas são, naturalmente (e não desde o princípio), no meio da narrativa, tomadas por coisas ou por suas partes; como numa fábula ao contrário, de repente, alguém é uma minhoca branca ou uma boca de batom, ou três crianças passam a ser os seis pés que pisam as pedras quentes. O mais interessante é que ele consegue tirar qualquer efeito de artificialismo que isso poderia ter.

Em O mar não sofre coisa morta, conto que dá nome ao livro, Leonardo traz a história de um pai cujo filho é hidrocéfalo e vítima da maldição que acomete geneticamente a família, “a linhagem de homens doentes, que, a partir da herança do bisavô, definhavam antes dos vinte anos como fossem plantas secas”. Uma espécie de escravidão, quando tudo tem que ser suportado e vivido, um pesadelo que faria até mesmo as águas do mar se retraírem.

Em O cavalo, sussurros e segredos numa noite agitada colocam um menino no centro de histórias que envolvem xenofobia e não poupam sua infância já irremediavelmente maculada. Em Brasília, conto que remete à história de tantos operários que deixaram suas famílias para a construção da capital, o leitor encontrará mistério e loucura. Em Jacarandá, um sequestro com tentativa de estupro e a reflexão sobre o que perdura na natureza humana.

O mar não sofre coisa morta é um livro bem construído, que delineia a vida no território da violência e dos enganos, das tragédias inevitáveis e das tragédias que, não satisfeitos, criamos; um livro cuja compaixão está justamente em não tê-la. Um trabalho de arte que, sendo-o, traz revelação, essa palavra de raiz ligada a desnudar, destapar, mostrar.

“Na sala fria seguiu o homem até alcançarem a mesa de aço e o pano branco estendido. O homem levou o pano branco da cabeça até o púbis liso do morto. O homem disse que esse é o Antônio Oliveira? Reconhece seu irmão?
Lourdes podia dizer que sim, mas talvez estivesse enganada. Podia dizer que ela era aquele corpo deitado.
Ela era aquele corpo deitado. Reconheceu-se no rosto de Antônio, embora fosse bonito e jovem. Os cabelos tão compridos, era desejo de Lourdes ter cabelos longos, mas sempre tivera aqueles cabelos curtos, que não tinham força para crescer. Antônio tinha peitos bonitos, grandes, de bicos escuros como os dos peitos secos de Lourdes. Não tinha pelo qualquer naquele corpo sem cor. Abaixo os furos na barriga, furos tão grandes que era possível enfiar em um deles o punho fechado.
Ela era aquele homem deitado.”

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O mar não sofre coisa morta
Leonardo Paiva
Editora Moinhos

2016

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