Por Adriane Garcia
Em
O avesso da lâmpada, Demetrios Galvão constrói uma poesia inteligente, rica e
sensível. Seu vocabulário, recheado de metáforas e construtor de belíssimas imagens,
utiliza combinações que alcançam um lirismo bem medido, sendo, ao
mesmo tempo, atual e contundente. Dos termos coloquiais aos da biologia ou
geometria, Demetrios dispõe de suas ferramentas realizando um projeto bonito e
coeso.
Três
ideias me chamaram a atenção durante a leitura: a memória, o silêncio, a
cidade. Neste livro, o poeta expõe a necessidade do silêncio e da memória como
formas de sobreviver no espaço que chamamos cidade, entendida tanto como espaço
real, demarcado, quanto cidade vivenciada, única porque subjetiva, pela qual
transitam o poeta e seus afetos.
Do
exercício da memória e do silêncio, a fantasia, a poesia, o poema. “Varandas”
para embelezar o cotidiano cinza na cidade precária e em decomposição. Em O
avesso da lâmpada, o poeta sabe que guarda tesouros para poder prosseguir entre
“dragões” de cobiça e poder, que tudo destroem. Nas entrelinhas, toda uma
crítica social e política, que envolve a frieza do capitalismo, a destruição
das comunidades indígenas (o passado, a memória), a exclusão dos menos
favorecidos, a continuidade de um sistema de capitanias hereditárias. Ao mesmo
tempo, a resistência, a amizade:
“nós,
rinocerontes da ternura
nós,
rinocerontes prometidos para a extinção
conhecemos
bem os dragões da cidade,
os
seus disfarces alcalinos, suas gírias oblíquas...”
Não
há ingenuidade. A poesia de Demetrios sabe o chão onde pisa – sabe, inclusive,
sobre o chão da literatura brasileira, seus círculos de luta por manutenção de
poder – e constrói beleza a partir do dilaceramento dos sonhos, com a
insistência nos sonhos:
“na
margem do silêncio esférico
as
árvores frutificam
uma
espiritualidade indomável”
Forças
primitivas são evocadas, a liberdade, a própria poesia cuja proximidade maior é
alcançada pela criança. Provavelmente, é desse olhar infantil, tão íntimo da
magia e do encantamento, que Demetrios conseguiu uma imagem como esta, aliado,
obviamente, de muita leitura:
“quando
o fogo alteia, sobrenatural se torna
tua
arcada de medusa.
As
tatuagens arcaicas grafadas nos ossos
emergem
faiscando.”
O
mundo interior se apresenta munido de soluções muito particulares para conviver
com a dor, a insuficiência, a solidão, os fantasmas da insônia, a miséria. É no
avesso que algo simples como tomar um café pode se transformar num ritual de
lembrança e mesmo num exercício reflexivo sobre a história; é também no avesso
que se dá o silêncio, capaz de estabelecer a comunicação consigo próprio, com
os livros ou com a natureza. Aliás, no livro de Demetrios, a natureza apresenta
seu potencial xamânico, de forte ligação com o sagrado, tudo em contraste com a
artificialidade e a parafernália que, o tempo inteiro e sem descanso,
transformam, remodelam, formam e deformam os espaços urbanos, deixando o ser
perdido e em busca de referências. No avesso da lâmpada o seu escuro, o seu
silêncio, o grito da identidade, a sua arma. O antídoto para a multidão sem
rosto das cidades.
“a
voz do abismo
como
pensar no futuro
sem
pronunciar a palavra medo?
a
harmonia da morte não desafina
as
águas não trazem alívios.
conheço
uma mulher
que
não sai mais de dentro de si.
desaprendeu
a pronunciar “felicidade”.
–
a família teve que sepultar alguns nomes.
o
desencanto assalta a multidão
o
terror estremece as fibras do afeto
e
esperamos a queda em um campo minado.
–
existe um abismo que não se cala.
as
mães se pintam para a guerra
com
o leite que alimenta a humanidade.
levantam
o punho e perfumam as ruas
com
sua coragem iluminada.
–
a esperança transpõe as fronteiras armadas
resiste
em assentamentos de plástico
e
se salva em um abraço sem idioma.”
***
O
avesso da lâmpada
Demetrios
Galvão
2017
ed.
Moinhos
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