Por Adriane Garcia
“você está
fodendo tudo”
“Minha alma
começa a ser íngreme me escalam”
Terminei a leitura,
fluida e absorvente, do livro Os ratos roeram o azul (ed. Letramento,
2016), de César Gilcevi. O título já é um poema inteiro, e o
livro, no formato retangular, todo ilustrado com colagens de Warley
Desali, é bonito e instiga ao manuseio. Livro para ler e para olhar.
Nas epígrafes,
Gilcevi sugere seu universo eclético e vasto de referências, da
tradição canônica da poesia ao rock, da literatura beat ao mundo
católico e transcendente de Adélia Prado. No decorrer das páginas,
encontramos tanto o eco de Drummond como o de Piva, mas em um
exercício antropofágico do autor, emergindo uma poesia rica e de
voz própria.
Assim como o volume
é ilustrado com colagens que trabalham distorções sobre as
fotografias de infância e dos antepassados do poeta, os poemas são
tomados de memória e ancestralidade: “carrego
o retrato empoeirado onde mamãe sorri/ sem dentes carrego este sonho
intranquilo”.
A cidade e seus arredores são o palco, ora atual, ora passado, para
as cenas flagradas pela poesia. Belo Horizonte (e arredores), por
vezes rural, aparece ao lado da metrópole urbana, com seu rio
Arrudas poluído, acordando para a realidade difícil, cheia das
baldeações daqueles que têm que dar conta do pão de cada dia,
pois “o
senhorio nunca dorme e me aguarda na portaria”.
Em seus versos, o
poeta traça o surreal, o onírico e a realidade mais crua ( que de
tão crua parece surreal). Entre imaginação e denúncia, a poesia
de Gilcevi é um coquetel de excelente mistura. Assim, a igreja de
São Sebastião no Barro Preto, inspira o poeta aos terríveis
versos: “carrego
o revel torso de são sebastião/esfaqueado por michês numa alameda
sem saída do barro preto”.
Os subúrbios o levam às “lolitas
manchadas de acne & batom”.
Em um jogo de empatia, Os ratos roeram o azul é um livro que, ao
falar dos caminhos do poeta, acaba falando de uma cidade inteira,
pelo olhar de quem pisa o seu chão.
A afirmação da
ancestralidade é outro ponto fulcral em Os ratos roeram o azul. Ao
dizer do “clã
dos silva”
e “clã
dos souza”,
dois títulos de poemas do livro, Gilcevi trabalha a profusão de
etnias que compuseram a família, brancos, negros e índios. Em todo
o livro pode-se perceber que o olhar do poeta é marcado pela
experiência da diversidade, do sincretismo religioso e mesmo da
recusa da religião. Também é notável o adensamento de sua
interpretação de mundo quando somou às experiências de infância
as leituras e informações da cultura letrada: “vó
preta macera patuás me benze/ com alquímicas negras vogais”.
Assim como a
infância é tema de vários poemas, ligada, não raro, à pobreza e
à dificuldade econômica, “aqui
as crianças já nascem/desmemoriadas do azul”,
a adolescência ganha versos memoráveis, fazendo-nos pensar que a
chegada do sêmen é, de certa forma, a morte do menino:
“chega o outono
& eles
constroem um cômodo só para mim
(macho apartado
das irmãs & primas & seu jardim
urdindo o incesto
& a orquídea”
A juventude é
retratada em diversos poemas que versam sobre dor, frustração
amorosa, drogas e derrota, quase sempre ligada, direta ou
indiretamente, à solidão: “se
continuar assim morrerei/ perdulário poeta acoólatra velho/ &
brocha recitando de cabeça lament for my cock/ acovardado no beliche
de uma pensão no centro”.
Tudo isso em poemas que, num fluxo, levam o leitor a ler até o fim,
acompanhando a linguagem densa e forte, que sabe medir o lírico e o
antilírico, alinhando-se a uma estética contemporânea.
Os ratos roeram o
azul desperta nossos sentimentos universais, porque sabe cantar a sua
aldeia.
Infância X
(barreiro de
cima)
o meu pai teve a mãe
& o meu pai teve
o pai
só que para ele ter
o pai
ele teve os avós
a única viva é a
mãe da mãe do meu pai
a bisa dasdor que
matou o marido com o pilão
pra se casar com o
primo
ele arrancou uma
costela dela
& do osso nasceu
uma amante
que com ele teve
mais vinte anti-heróis
que sabiam amansar o
azul & a pólvora
& povoaram o
barreiro
deus viu que isso
era bom
& foi-se embora
- clã dos silva
da parte do pai
vinham os de pele escura & parda
índios pegos no
laço ladrões d'além mar capitães do mato
idólatras do cobre
da preguiça & das armas
malvivendo
amontoados naquela casa pau a pique senzala
partiam para o leste
sob a tutela da noche oscura
levavam na matula a
bússola a meiota de cachaça
carcaças de
pequenos animais
sapienciais
pergaminhos: eis que vou agora dormir no pó
se me procurares
pela manhã já não existirei
- clã dos souza
os irmãos da mãe
na fronte acuada traziam sardas
lixo branco
escorraçado das terras de lund
lazarones no monturo
do morro das pedras
ralé de pés
rachados sonâmbulos na encruzilhada
malvivendo
amontoados naquela casa adobe senzala
pico & cola
arranhando as grades da alma
falavam uma gíria
bárbara & cheia de fúria
:o terceiro mundo
vai explodir quem tiver de sapato não sobra
infância XII
(manual da mãe)
se você andar de
costas
vai encontrar sua
mãe morta
em pé atrás da
porta
se pisar numa risca
no chão
a espinha da mãe
quebra
blusa do avesso não
pode
chinelo virado a mãe
morre
tá tudo na bíblia
o que pode
o que não pode
juro pela minha mãe
mortinha
bom é ter mãe
mesmo que seja uma
silva
drogaria
drugstore
ainda bem que vocês
não me viram precoce drogaria drugstore
520 wolts no
terceiro coração sobressalente & inafiançável
revirando vicious no
mundaréu das tretas bocadas & beiras
ventosa vila pinho
nova cintra betânia bonsucesso b.d.i magé
desemprego &
buças feias sob o céu avariado
leréia language de
beats suburbanos roubando carro pra dar um rolê
no olho da rua no
olho do ku na casa do karalho na putaqopariu
o pau príapo
porrete cocaínado a convidada
de xota azul &
nariz guloso
serial killer crime
scene madrugabasura de corpos desovados
ao que tudo indica
devido ao tipo de vestimenta a vítima
era garota de
programa falou na TV o delegado
***
Os ratos roeram o azul
César Gilcevi
Poesia
Ed. Letramento
2016
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