domingo, 10 de junho de 2018

Interrompidos – de Alê Motta






Por Adriane Garcia


Interrompidos (ed. Reformatório), de Alê Motta, é um livro de contos curtos, compostos de 4 a 7 parágrafos. Elaborando uma maneira de contar, quase uniforme, por todo o livro, Alê Motta condensa até o penúltimo parágrafo histórias que conduzem a emoção do leitor. É com maestria que a autora o leva a pensar exatamente o que ela quer que ele pense, porém é no último parágrafo de cada conto que ela o trai, que ela o engana, que ela lhe aplica uma espécie de inversão e susto. Ao não subestimar o leitor, Alê Motta não fala tudo, deixa espaço para o leitor continuar as histórias, ou compor o que não foi dito, mas sugerido. Na forma, Interrompidos também cumpre seu projeto temático: os contos interrompem expectativas.

Como assunto central, o livro destaca a morte, interrupção por excelência, seja por acidente, doença, velhice, suicídio ou, principalmente, assassinato. É ainda interessante notar que a maioria dos assassinatos, em Interrompidos, é cometido por mulheres, contra homens. O homem de Interrompidos é quase sempre aquele que trai, abandona ou maltrata.  

Nesta obra de Alê Motta não existe Deus, tampouco a culpa cristã, nenhuma moralidade que não seja a do alívio de se livrar da opressão. O desaparecimento do outro é solução recorrente e revisitada, histórias que poderiam ser de amor tornam-se histórias de vingança; mágoas infantis são guardadas como combustível para futuros desaparecimentos. A morte também se apresentará como solução para os conflitos entre irmãos, pais e filhos, pais e filhas, colegas de trabalho. Já a morte da mãe, não. A morte da mãe é sempre como a despedida de nossa única nave e o sentimento de se estar sem saída no mundo.

Em O erotismo, de Georges Bataille, Tanatos está sempre abraçado com Eros. Mal disfarçamos isso, mas sempre disfarçamos: “Um conjunto de condições nos conduz a fazer do homem (da humanidade) uma imagem igualmente afastada do prazer extremo e da extrema dor: os interditos mais comuns atingem a vida sexual e a morte, de modo que uma e outra formaram um domínio sagrado, pertencente à religião.” Disso também advém o aspecto grave que damos à morte. Ler Interrompidos é ter esse contato com uma narrativa sobre a interrupção definitiva chamada morte sem a presença do julgamento. Alê Motta disfarça a gravidade, inclusive do crime, escrevendo também com algum humor. Desvia nosso olhar do julgamento e nos mantém no fato (e no desejo). Quem é que nunca pensou na utilidade de (matar) morrer alguém? Os personagens de Alê Motta matam e são mortos. Por trás do “horror que intensifica a atração” há a vida. E a vida é tão difícil, quando nos é negado o amor.

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Prato principal

Frango assado com batatas portuguesas. Arroz branco, bem soltinho. Salada de rúcula e palmito. Molho de mostarda.
Fiz seu prato. Enquanto comia, falou do seu carro na revisão, do CD novo da sua banda predileta, reclamou do seu patrão e emendou na chuva que, se viesse, atrapalharia seu futebol.
Sentada na cadeira, ao seu lado, acompanhei a revisão, a banda, a possível chuva, a reclamação. Sou ótima para acompanhar. Sou como o molho de mostarda.
Ele terminou de comer. Eu sorri. O veneno demora uns minutos para fazer efeito.





Meu avô

Meu avô morava num sítio. Uma casa amarela com varanda. Portas e janelas brancas.
Ele amava andar a cavalo. Num dia calorento de janeiro ele cavalgou muitos quilômetros. Quando o sol se pôs voltou para casa. Caiu na soleira da varanda.
Depois do enterro ninguém encontrou o cavalo. Reza a lenda que ele é o único cavalo do mundo que cavalga todos os dias até o pôr do sol. E chora quando vê uma casa com varanda.

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Interrompidos
Alê Motta
Contos                                                          
2017
Reformatório



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