O
livro Uma breve história da humanidade Sapiens, de Yuval Noah
Harari, é excelente. Yuval, é professor de história na
Universidade Hebraica de Jerusalém.
Além
de traçar a história, desde o surgimento dos primeiros grupos de
humanos, as várias raças das quais apenas o homo sapiens
sobreviveu, até o advento da possibilidade de um novo ser, por meio
da inteligência artificial ou da tecnologia genética, o autor
instiga à reflexão quanto à nossa condição e aos rumos que se
poderia tomar.
Inteligente
e corajoso, Yuval Noah Harari nos traz um livro essencial para
compreender nossa estadia neste planeta que, erroneamente, achamos
que é feito exclusivamente para nosso usufruto.
Livro
absolutamente imperdível.
“Vítimas
da revolução
A
barganha faustiana entre humanos e grãos não foi o único pacto
feito por nossa espécie. Descobriu-se outro pacto com relação ao
destino de animais como ovelhas, cabras, porcos e galinhas. Os bandos
nômades que caçavam ovelhas selvagens pouco a pouco alteraram a
composição dos rebanhos capturados. Esse processo provavelmente
teve início com a caça seletiva. Os humanos aprenderam que era
vantajoso para eles caçar apenas carneiros adultos e ovelhas velhas
ou doentes. Eles poupavam as fêmeas férteis e os cordeiros jovens
para proteger a vitalidade do rebanho a longo prazo. O segundo passo
talvez tenha sido defender ativamente o rebanho de predadores,
afastando leões, lobos e bandos humanos rivais. Depois, o bando
talvez tenha encurralado o rebanho em um desfiladeiro para
controlá-lo e defendê-lo melhor. As pessoas começaram a fazer uma
seleção mais cuidadosa das ovelhas para adaptá-las às
necessidades humanas. Os carneiros mais agressivos, aqueles que
mostravam mais resistência ao controle humano, eram abatidos
primeiro, como também as fêmeas mais curiosas e mais magras. (Os
pastores não gostam de ovelhas cuja curiosidade as leva para longe
do rebanho.) A cada geração, as ovelhas se tornaram mais gordas,
mais submissas e menos curiosas. Voilà! Mary tinha um
carneirinho e a todo lugar que ela ia, ele ia também.
Outra
possibilidade é que os caçadores capturassem e “adotassem” um
cordeiro, engordando-o durante os meses de fartura e abatendo-o em
época de escassez. Em algum momento, eles começaram a manter um
número maior de tais cordeiros. Alguns deles chegavam à puberdade e
começavam a procriar. Os mais agressivos e rebeldes eram abatidos
primeiro. Os mais submissos e atraentes tinham a chance de viver mais
tempo e procriar. O resultado foi um rebanho de ovelhas domesticadas
e submissas.
Tais
animais domesticados – ovelhas, galinhas, jumentos e outros –
forneciam comida (carne, leite, ovos), matérias-primas (pele, lã) e
força muscular. O transporte, o arado, a moenda e outras tarefas,
até então realizadas por força humana, foram progressivamente
executadas por animais. Na maioria das sociedades agrícolas, as
pessoas priorizavam o cultivo de espécies vegetais; criar animais
era uma atividade secundária. Mas um novo tipo de sociedade também
apareceu em alguns lugares, tendo por base primordialmente a
exploração de animais: tribos de pastores.
À
medida que os humanos se espalharam pelo mundo, os animais
domesticados também o fizeram. Há dezenas de milhares de anos, não
mais de alguns milhões de ovelhas, vacas, cabras, javalis e galinhas
viviam em nichos seletos na África e na Ásia. Hoje o mundo tem
cerca de um bilhão de ovelhas, um bilhão de porcos, mais de um
bilhão de cabeças de gado e mais de 25 bilhões de galinhas. E eles
estão pelo mundo todo. As galinhas domesticadas são as aves mais
disseminadas até hoje. Depois do Homo Sapiens, o gado, o
porco e a ovelha são, nessa ordem, os grandes mamíferos mais
difundidos no mundo. De uma perspectiva estritamente evolutiva, que
mede o sucesso de uma espécie pelo número de cópias de DNA, a
Revolução Agrícola foi uma grande vantagem para galinhas, vacas,
porcos e ovelhas.
Infelizmente,
a perspectiva evolutiva é um parâmetro de sucesso relativo. Julga
tudo segundo os critérios de sobrevivência e reprodução, sem
considerar o sofrimento e a felicidade individuais. As galinhas e as
vacas domesticadas podem ser um história de sucesso evolutivo, mas
também estão entre as criaturas mais miseráveis que já existiram.
A domesticação de animais se baseou numa série de práticas
brutais que só se tornaram cada vez mais cruéis com o passar dos
séculos.
A
expectativa de vida natural de galinhas selvagens é de 7 a 12 anos,
e de bovinos é de 20 a 25 anos. Na natureza a maioria das galinhas e
das vacas morria muito antes disso, mas ainda tinha uma boa chance de
viver por um número respeitável de anos. Já a grande maioria das
galinhas e vacas domesticadas é abatida com algumas semanas ou no
máximo alguns meses de vida, porque essa sempre foi a idade ideal
para abatê-las de uma perspectiva econômica. (Por que continuar
alimentando um galo por três anos se ele já chegou a seu peso
máximo depois de três meses?).
Galinhas
chocadeiras, vacas leiteiras e animais de carga às vezes têm chance
de viver por muitos anos. Mas o preço é a sujeição a um estilo de
vida completamente alheio a suas necessidades e desejos. É razoável
supor, por exemplo, que os bois preferem passar seus dias vagando por
pradarias abertas na companhia de outros bois e vacas do que puxando
carroças e arados sob o jugo de um primata com chicote.
A
fim de transformar bois, cavalos, jumentos e cavalos em animais de
carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de
ser destruídos, sua agressão e sexualidade contidas e sua liberdade
de movimento, restringida.
Os
criadores desenvolveram técnicas como trancar animais em jaulas e
currais, contê-los com rédeas e arreios, treiná-los com chicotes e
aguilhadas e mutilá-los. O processo de domesticar quase sempre
envolve a castração dos machos. Isso restringe sua agressividade e
permite que os humanos controlem seletivamente a procriação do
rebanho.
Em
muitas sociedades da Nova Guiné, a riqueza de uma pessoa é
tradicionalmente determinada pelo número de porcos que ela possui.
Para garantir que os porcos não fujam, os criadores no norte da Nova
Guiné cortam um pedaço do focinho do animal. Isso causa dor intensa
sempre que o porco tenta cheirar. Como os porcos não conseguem
encontrar comida ou mesmo se orientar no espaço sem cheirar, essa
mutilação os torna completamente dependentes de seus proprietários
humanos. Em outra região da Nova Guiné, é costume arrancar os
olhos dos porcos, para que eles não possam nem ver para onde estão
indo.
A
indústria de laticínios tem sua própria maneira de forçar os
animais a fazerem sua vontade. Vacas, cabras e ovelhas produzem leite
só depois de parir bezerros, cabritos e cordeiros e apenas enquanto
seus filhotes mamam. Para ter uma oferta contínua de leite animal,
um fazendeiro precisa ter bezerros, cabritos ou cordeiros para
amamentar, mas deve impedi-los de monopolizar o leite. Um método
comum ao longo da história foi simplesmente abater os filhotes logo
após o nascimento, extrair todo o leite da mãe e então fazer que
ela fique prenha novamente. Essa é, ainda hoje, uma técnica muito
usual. Em várias fazendas de laticínios modernas, uma vaca leiteira
vive cerca de cinco anos antes de ser abatida. Durante esses cinco
anos, ela está prenha constantemente e é fertilizada entre 60 e 120
dias depois de parir, a fim de preservar a máxima produção de
leite. Seus bezerros são separados dela logo após o nascimento. As
fêmeas são criadas para se tornar a próxima geração de vacas
leiteiras, ao passo que os machos são entregues aos cuidados da
indústria da carne.
Outro
método é manter os bezerros e os cabritos perto da mãe, mas
evitar, por meio de vários estratagemas, que eles suguem muito
leite. A maneira mais simples de fazer isso é permitir que o filhote
comece a mamar, mas afastá-lo assim que o leite começa a fluir.
Esse método geralmente encontra resistência do filhote e da mãe.
Algumas tribos de pastores costumavam matar o filhote, comer sua
carne e empalhá-lo. O filhote empalhado era então presenteado à
mãe para que sua presença encorajasse a produção de leite. A
tribo dos núeres, no Sudão, chegava ao ponto de espalhar urina da
mãe nos animais empalhados, para que tivessem um odor vivo e
familiar. Outra técnica dos nuéres era atar uma coroa de espinhos
ao redor da boca do bezerro, apar que ele furasse a mãe e fizesse
com que ela resistisse à amamentação. Os tuaregues, povo criador
de camelo no deserto do Saara, costumavam perfurar ou cortar partes
do focinho e do lábio superior do camelo para tornar a alimentação
dolorosa, evitando, assim, que consumissem muito leite.
Nem
todas as sociedades agrícolas foram tão cruéis com seus animais. A
vida de alguns animais domesticados podia ser muito boa. Ovelhas
criadas para lã, cachorros e gatos de estimação, cavalos de
guerra e cavalos de corrida muitas vezes desfrutavam de condições
confortáveis. O imperador romano Calígula supostamente planejou
nomear seu cavalo favorito, Incitatus, ao posto de cônsul. Pastores
e agricultores ao longo da história mostraram afeição por seus
animais e cuidaram muito bem deles, assim como muitos senhores
sentiram afeição e preocupação por seus escravos. Não foi nenhum
acaso reis e profetas se apresentarem pastores e compararem o modo
como eles e seus deuses cuidavam de seu povo com o cuidado de um
pastor com seu rebanho.
Mas
do ponto de vista do rebanho, e não do pastor, é difícil evitar a
impressão de que para a grande maioria dos animais domesticados a
Revolução Agrícola foi uma catástrofe terrível. Seu “sucesso”
evolutivo não significa nada. Um raro rinoceronte selvagem à beira
da extinção provavelmente é mais feliz do que um boi que passa sua
breve vida dentro de uma jaula minúscula, alimentado para produzir
carnes suculentas. O rinoceronte não é menos contente por estar
entre os últimos de sua espécie. O sucesso numérico da espécie
bovina é pouco consolo para o sofrimento que o indivíduo padece.
Essa
discrepância entre sucesso evolutivo e sofrimento individual é,
talvez, a lição mais importante que podemos tirar da Revolução
Agrícola. Quando estudamos a história de plantas como trigo e
milho, talvez a perspectiva puramente evolutiva faça sentido. Mas no
caso de animais como bois, ovelhas e sapiens, cada um com um mundo
complexo de sensações e emoções, temos que considerar em que
medida o sucesso evolutivo se traduz em experiência individual. Nos
capítulos seguintes, veremos mais uma vez como um aumento drástico
no poder coletivo e o visível sucesso de nossa espécie andaram de
mãos dadas com muito sofrimento individual.”
***
Uma
breve história da humanidade Sapiens
Yuval
Noah Harari
Tradução
: Janaína Marcoantônio
Editora
L& PM
2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário