sábado, 30 de março de 2019

Uma breve história da humanidade - Sapiens, de Yuval Noah Harari (tradução Janaína Marcantônio)




O livro Uma breve história da humanidade Sapiens, de Yuval Noah Harari, é excelente. Yuval, é professor de história na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Além de traçar a história, desde o surgimento dos primeiros grupos de humanos, as várias raças das quais apenas o homo sapiens sobreviveu, até o advento da possibilidade de um novo ser, por meio da inteligência artificial ou da tecnologia genética, o autor instiga à reflexão quanto à nossa condição e aos rumos que se poderia tomar.

Inteligente e corajoso, Yuval Noah Harari nos traz um livro essencial para compreender nossa estadia neste planeta que, erroneamente, achamos que é feito exclusivamente para nosso usufruto.

Livro absolutamente imperdível.

Vítimas da revolução

A barganha faustiana entre humanos e grãos não foi o único pacto feito por nossa espécie. Descobriu-se outro pacto com relação ao destino de animais como ovelhas, cabras, porcos e galinhas. Os bandos nômades que caçavam ovelhas selvagens pouco a pouco alteraram a composição dos rebanhos capturados. Esse processo provavelmente teve início com a caça seletiva. Os humanos aprenderam que era vantajoso para eles caçar apenas carneiros adultos e ovelhas velhas ou doentes. Eles poupavam as fêmeas férteis e os cordeiros jovens para proteger a vitalidade do rebanho a longo prazo. O segundo passo talvez tenha sido defender ativamente o rebanho de predadores, afastando leões, lobos e bandos humanos rivais. Depois, o bando talvez tenha encurralado o rebanho em um desfiladeiro para controlá-lo e defendê-lo melhor. As pessoas começaram a fazer uma seleção mais cuidadosa das ovelhas para adaptá-las às necessidades humanas. Os carneiros mais agressivos, aqueles que mostravam mais resistência ao controle humano, eram abatidos primeiro, como também as fêmeas mais curiosas e mais magras. (Os pastores não gostam de ovelhas cuja curiosidade as leva para longe do rebanho.) A cada geração, as ovelhas se tornaram mais gordas, mais submissas e menos curiosas. Voilà! Mary tinha um carneirinho e a todo lugar que ela ia, ele ia também.

Outra possibilidade é que os caçadores capturassem e “adotassem” um cordeiro, engordando-o durante os meses de fartura e abatendo-o em época de escassez. Em algum momento, eles começaram a manter um número maior de tais cordeiros. Alguns deles chegavam à puberdade e começavam a procriar. Os mais agressivos e rebeldes eram abatidos primeiro. Os mais submissos e atraentes tinham a chance de viver mais tempo e procriar. O resultado foi um rebanho de ovelhas domesticadas e submissas.

Tais animais domesticados – ovelhas, galinhas, jumentos e outros – forneciam comida (carne, leite, ovos), matérias-primas (pele, lã) e força muscular. O transporte, o arado, a moenda e outras tarefas, até então realizadas por força humana, foram progressivamente executadas por animais. Na maioria das sociedades agrícolas, as pessoas priorizavam o cultivo de espécies vegetais; criar animais era uma atividade secundária. Mas um novo tipo de sociedade também apareceu em alguns lugares, tendo por base primordialmente a exploração de animais: tribos de pastores.

À medida que os humanos se espalharam pelo mundo, os animais domesticados também o fizeram. Há dezenas de milhares de anos, não mais de alguns milhões de ovelhas, vacas, cabras, javalis e galinhas viviam em nichos seletos na África e na Ásia. Hoje o mundo tem cerca de um bilhão de ovelhas, um bilhão de porcos, mais de um bilhão de cabeças de gado e mais de 25 bilhões de galinhas. E eles estão pelo mundo todo. As galinhas domesticadas são as aves mais disseminadas até hoje. Depois do Homo Sapiens, o gado, o porco e a ovelha são, nessa ordem, os grandes mamíferos mais difundidos no mundo. De uma perspectiva estritamente evolutiva, que mede o sucesso de uma espécie pelo número de cópias de DNA, a Revolução Agrícola foi uma grande vantagem para galinhas, vacas, porcos e ovelhas.

Infelizmente, a perspectiva evolutiva é um parâmetro de sucesso relativo. Julga tudo segundo os critérios de sobrevivência e reprodução, sem considerar o sofrimento e a felicidade individuais. As galinhas e as vacas domesticadas podem ser um história de sucesso evolutivo, mas também estão entre as criaturas mais miseráveis que já existiram. A domesticação de animais se baseou numa série de práticas brutais que só se tornaram cada vez mais cruéis com o passar dos séculos.

A expectativa de vida natural de galinhas selvagens é de 7 a 12 anos, e de bovinos é de 20 a 25 anos. Na natureza a maioria das galinhas e das vacas morria muito antes disso, mas ainda tinha uma boa chance de viver por um número respeitável de anos. Já a grande maioria das galinhas e vacas domesticadas é abatida com algumas semanas ou no máximo alguns meses de vida, porque essa sempre foi a idade ideal para abatê-las de uma perspectiva econômica. (Por que continuar alimentando um galo por três anos se ele já chegou a seu peso máximo depois de três meses?).

Galinhas chocadeiras, vacas leiteiras e animais de carga às vezes têm chance de viver por muitos anos. Mas o preço é a sujeição a um estilo de vida completamente alheio a suas necessidades e desejos. É razoável supor, por exemplo, que os bois preferem passar seus dias vagando por pradarias abertas na companhia de outros bois e vacas do que puxando carroças e arados sob o jugo de um primata com chicote.

A fim de transformar bois, cavalos, jumentos e cavalos em animais de carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de ser destruídos, sua agressão e sexualidade contidas e sua liberdade de movimento, restringida.

Os criadores desenvolveram técnicas como trancar animais em jaulas e currais, contê-los com rédeas e arreios, treiná-los com chicotes e aguilhadas e mutilá-los. O processo de domesticar quase sempre envolve a castração dos machos. Isso restringe sua agressividade e permite que os humanos controlem seletivamente a procriação do rebanho.

Em muitas sociedades da Nova Guiné, a riqueza de uma pessoa é tradicionalmente determinada pelo número de porcos que ela possui. Para garantir que os porcos não fujam, os criadores no norte da Nova Guiné cortam um pedaço do focinho do animal. Isso causa dor intensa sempre que o porco tenta cheirar. Como os porcos não conseguem encontrar comida ou mesmo se orientar no espaço sem cheirar, essa mutilação os torna completamente dependentes de seus proprietários humanos. Em outra região da Nova Guiné, é costume arrancar os olhos dos porcos, para que eles não possam nem ver para onde estão indo.

A indústria de laticínios tem sua própria maneira de forçar os animais a fazerem sua vontade. Vacas, cabras e ovelhas produzem leite só depois de parir bezerros, cabritos e cordeiros e apenas enquanto seus filhotes mamam. Para ter uma oferta contínua de leite animal, um fazendeiro precisa ter bezerros, cabritos ou cordeiros para amamentar, mas deve impedi-los de monopolizar o leite. Um método comum ao longo da história foi simplesmente abater os filhotes logo após o nascimento, extrair todo o leite da mãe e então fazer que ela fique prenha novamente. Essa é, ainda hoje, uma técnica muito usual. Em várias fazendas de laticínios modernas, uma vaca leiteira vive cerca de cinco anos antes de ser abatida. Durante esses cinco anos, ela está prenha constantemente e é fertilizada entre 60 e 120 dias depois de parir, a fim de preservar a máxima produção de leite. Seus bezerros são separados dela logo após o nascimento. As fêmeas são criadas para se tornar a próxima geração de vacas leiteiras, ao passo que os machos são entregues aos cuidados da indústria da carne.

Outro método é manter os bezerros e os cabritos perto da mãe, mas evitar, por meio de vários estratagemas, que eles suguem muito leite. A maneira mais simples de fazer isso é permitir que o filhote comece a mamar, mas afastá-lo assim que o leite começa a fluir. Esse método geralmente encontra resistência do filhote e da mãe. Algumas tribos de pastores costumavam matar o filhote, comer sua carne e empalhá-lo. O filhote empalhado era então presenteado à mãe para que sua presença encorajasse a produção de leite. A tribo dos núeres, no Sudão, chegava ao ponto de espalhar urina da mãe nos animais empalhados, para que tivessem um odor vivo e familiar. Outra técnica dos nuéres era atar uma coroa de espinhos ao redor da boca do bezerro, apar que ele furasse a mãe e fizesse com que ela resistisse à amamentação. Os tuaregues, povo criador de camelo no deserto do Saara, costumavam perfurar ou cortar partes do focinho e do lábio superior do camelo para tornar a alimentação dolorosa, evitando, assim, que consumissem muito leite.

Nem todas as sociedades agrícolas foram tão cruéis com seus animais. A vida de alguns animais domesticados podia ser muito boa. Ovelhas criadas para lã, cachorros e gatos de estimação, cavalos de guerra e cavalos de corrida muitas vezes desfrutavam de condições confortáveis. O imperador romano Calígula supostamente planejou nomear seu cavalo favorito, Incitatus, ao posto de cônsul. Pastores e agricultores ao longo da história mostraram afeição por seus animais e cuidaram muito bem deles, assim como muitos senhores sentiram afeição e preocupação por seus escravos. Não foi nenhum acaso reis e profetas se apresentarem pastores e compararem o modo como eles e seus deuses cuidavam de seu povo com o cuidado de um pastor com seu rebanho.

Mas do ponto de vista do rebanho, e não do pastor, é difícil evitar a impressão de que para a grande maioria dos animais domesticados a Revolução Agrícola foi uma catástrofe terrível. Seu “sucesso” evolutivo não significa nada. Um raro rinoceronte selvagem à beira da extinção provavelmente é mais feliz do que um boi que passa sua breve vida dentro de uma jaula minúscula, alimentado para produzir carnes suculentas. O rinoceronte não é menos contente por estar entre os últimos de sua espécie. O sucesso numérico da espécie bovina é pouco consolo para o sofrimento que o indivíduo padece.

Essa discrepância entre sucesso evolutivo e sofrimento individual é, talvez, a lição mais importante que podemos tirar da Revolução Agrícola. Quando estudamos a história de plantas como trigo e milho, talvez a perspectiva puramente evolutiva faça sentido. Mas no caso de animais como bois, ovelhas e sapiens, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, temos que considerar em que medida o sucesso evolutivo se traduz em experiência individual. Nos capítulos seguintes, veremos mais uma vez como um aumento drástico no poder coletivo e o visível sucesso de nossa espécie andaram de mãos dadas com muito sofrimento individual.”

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Uma breve história da humanidade Sapiens
Yuval Noah Harari
Tradução : Janaína Marcoantônio
Editora L& PM
2018

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