sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A teoria da felicidade, de Kátia Borges

 



 

Por Adriane Garcia

 

 

Gênero muitas vezes subestimado, a crônica bem escrita é capaz de nos alertar, nos encantar, nos emocionar. É o que acontece no livro A teoria da felicidade, de Kátia Borges, no qual a jornalista, poeta e prosadora consegue unir características dos textos dessas três atividades para compor crônicas tomadas de inteligência, capacidade de comunicação, sensibilidade e beleza.

 

Ao começar com “A centralidade da poesia e sua poderosa força”, em uma narrativa que fala do encantamento diante do novo e das possibilidades de aprendizado, Kátia Borges nos dá as pistas sobre aquilo que vai se constituir a sua teoria da felicidade. Mais de uma vez, o texto é povoado por avós, tios, primas e primos, amigas e amigos de infância, destacando questões de memória e ancestralidade na construção do sujeito. A isso, soma-se um olhar muito peculiar da narradora, por quase todo o conjunto: é a poesia que faz observar a aerodinâmica das aves, é o alumbramento diante da magia do mundo e o sentimento de empatia que faz com que a pessoa não possa prosseguir com a violência do apedrejamento de um pássaro. A grande recorrência é a da palavra infância, pois é nela que A teoria da felicidade se apoia. O tesouro para suportar os exames da realidade, destruidores de tantos sonhos e ilusões, são as fotografias de memória, tiradas por “Polaroides sentimentais”.

 

É de se notar, que a “playlist mnemônica” destacada em “Uma menina vinda de Marte”, que também poderia se chamar playlist afetiva (pois é desta memória que a autora nos fala), marca uma série de outras crônicas, mostrando o quanto o referencial da música compõe A teoria da felicidade, assim como referenciais do cinema e da literatura, constituintes de uma história pessoal no seu encontro/desencontro com o mundo. Poderíamos até dizer que Kátia Borges escreveu um livro de “crônicas de formação”, nas quais uma menina cresce e se educa, e cujo papel educacional mais importante é demonstrado na personagem da mãe, aquela que diante do inseto verde ensina para a menina “Sobre a fragilidade da esperança”, o respeito pela vida. Assume-se assim o inseto verde e sua simbologia, o cuidado que deve ser ensinado para tratar o mais frágil – a vida é frágil. Esse aprendizado é formador de caráter. A mãe educa para a vida. O inseto representa esperança, mas também sorte. O aprendizado ético continua em “Minha mãe possuía uma coragem que não se acha fácil”. Kátia Borges nos mostra que a infância, também lugar de crueldade, de forças destrutivas que ainda estão aprendendo a encontrar caminhos menos perigosos e fatais para sua realização, pode se encaminhar para o exercício criativo, a generosidade e o altruísmo, aula que a mãe ministrou de mãos dadas com a filha e com o olhar atento ao outro. A teoria da felicidade inclui solidariedade. Uma vez li que o contrário do amor não é o ódio, que o contrário do amor é o medo. A filha queria a coragem da mãe, porque coragem é um outro nome para amor.

 

No conjunto das quarenta e três crônicas, o tempo se apresenta quase em linearidade, não fosse a insistência da memória em atravessar portais e dimensões. Olha-se para trás, lá onde a teoria da felicidade deve se ancorar porque houve um aprendizado, uma capacidade. O pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott diria que houve a nossa bendita ilusão de onipotência, quando a fantasia precedeu toda realidade. Nas crônicas de Kátia Borges, parece sempre haver esse lugar maravilhoso de voltar, cujo encontro (reencontro) se torna possível nas palavras “veraneio” ou “mãe”, no que elas evocam, no prazer das férias, da família reunida, da saciedade, do tempo mítico e do prazer. Depois – já que falamos de tempo – o mundo se coloca para nossos embates, Kátia Borges escreve sobre a estranheza dos rostos de ontem, esse fenômeno afetivo de, nas fotografias de antes, não reconhecermos mais nem a nós nem aos outros, habitantes do presente.

 

Descobrimos que a Teoria da Felicidade foram conselhos de Albert Einstein escritos em bilhetes para um camareiro, no lugar de gorjetas. Alcançando a idade adulta, a narradora – que nos parece única – estará à procura de tal teoria (e prática), intuindo que a felicidade está nas coisas simples, nos pequenos gestos do cotidiano, no protesto contra a pressa capitalista: “Em câmera lenta, venceremos, se é que se há de”.

 

Em uma época na qual os apelos por fórmulas de felicidade abundam, assim como o número daqueles que publicam livros e fazem posts nas redes sociais garantindo ensiná-la, um título como A teoria da felicidade pode parecer, bem à primeira vista, uma promessa. Porém, caso a leitora e o leitor pensem que Kátia Borges possui essa receita, cairão em engano. Trata-se de literatura, não de charlatanismo. Há uma confissão humaníssima sobre a falta e a busca, sobre a transformação que os eventos vão operando em nós – como a morte de nosso tão amado cão; há um humor sem escândalos e sem excessos e que, por isso mesmo, nos surpreende com pitadas deliciosas de riso em meio à leitura:

Sou afeita a aconselhar os outros, confesso; é quase um esporte. Basta um amigo abrir a boca e fazer uma queixa, que elaboro em segundos o plano perfeito. Soluções para espinhela caída, nome no Serasa e amores que não deram certo? Temos.”

 

Entre soluções que quase nunca solucionam e ainda ter que lidar com o esquecimento – que é perder conscientemente um tanto do que somos – o jeito é criar um software de memória chamado livro, registrar alegrias, frustrações, imortalizar os inimigos, por exemplo. Escrever é admitir as falhas. À medida que o livro se encaminha para narrativas que privilegiam a idade adulta, os conflitos vão se agravando, palavras como “depressão” surgem; o meio literário e sua política e mercado comparecem; da adolescência em diante, a tristeza também pode passar a ser alimentada: “Afaguei a tristeza por tanto tempo, que ela se apegou a mim”. Trecho que me remeteu a outro cronista, Paulo Mendes Campos, em Para Maria da Graça: Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado.”

 

Kátia Borges evoca A arte de perder, de Elisabeth Bishop. Ambas sabem que “a arte de perder não é nenhum mistério”, talvez porque perder seja uma de nossas primeiras experiências. Para Freud, “A meta inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe”. Neste sentido, todo encontro é reencontro e, por isso, tomado de saudade.

 

É de saudade também que Kátia Borges nos fala. Há uma nostalgia em A teoria da felicidade, o assombro de um tempo em que, parece, fomos felizes. Chama a atenção também as crônicas de amor aos cães e sobre o amor dos cães. Um destaque especial para estes seres que nos acompanham como verdadeiros amigos, “anjos”, diz a autora. São páginas especialmente emocionantes que falam sobre amizade, entrega, alegria, doença, morte.

 

A teoria da felicidade canta Belchior, “A felicidade é uma arma quente” (ou Happiness is a warm gun, dos Beatles). Nela cabe a admiração por outras mulheres, a vontade de crescer como se houvesse ali uma boa promessa, a diversão, a descoberta da sexualidade. Para descobri-la, vale consultar oráculos, recorrer ao budismo, às teorias que ensinam a fluir sem tanta resistência. A busca incessante por não buscar, com todo o seu paradoxo; desejar não desejar, ter a ambição máxima que é a ambição mínima, encontrar a origem. No princípio era o verbo? Kátia Borges parece nos dizer que no princípio era o silêncio. Por fim, escrever e principalmente publicar na contramão deste desejo de paz, já que é a exibição que rege o que se chama de sucesso: “Desde que entrou nesse labirinto, algumas vezes lhe faltam pernas para ir adiante”. Ser escritora é praticar uma atividade de luta, de condições desiguais entre pares nem tão pares assim, é ter um encontro com a “escritora amarga” e sair correndo de lá para não se tornar mais uma.

 

Não me peçam nada de importante, pois sou apenas uma poeta de província. Meu maior elogio foi o beijo que uma moça me deu no rosto. “É por sua poesia”, ela disse”.

 

Pois vai, Kátia, junto com esta leitura que registro do seu livro, de crônicas habitadas por lirismo, força e delicadeza, o meu beijo: é por sua poesia.

 

Viveremos dessa felicidade doce que nossos pais ensinam nos veraneios desde a infância, quando até os tios mais sisudos mostram as pernas, molham os pés, bebericam e perdem a compostura. É preciso parar um pouco, de vez em quando, feito o Sol no céu no dia mais longo do ano. Como no belo poema de Maiakovski, que virou pop pela mão dos Irmãos Campos, é imperativo criar versos luminosos em um mundo escuro.”

 

(Excerto da crônica O dia mais longo do ano, p. 111/112)

 

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A teoria da felicidade

Kátia Borges

Crônica

2020

Ed. Patuá

 

 

 

 

 

 

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