Por
Adriane Garcia
QUERIDO BABACA, DE VIRGINIE DESPENTES
Por Adriane Garcia
Querido babaca, de Virginie Despentes, é um romance de estrutura epistolar adaptado às condições tecnológicas de troca de mensagens no mundo contemporâneo. Nele, ao invés da troca de cartas, há uma troca de mensagens em redes sociais e e-mails, além da leitura de publicações em blog. Tudo começa quando o escritor de relativa fama Oscar Jayack faz, no Instagram, uma publicação ofensiva à atriz de cinema Rebecca Latté, diva de meia-idade e ícone de grupos feministas. A publicação de Oscar introduz alguns dos principais assuntos que serão desenvolvidos no livro: cinema e etarismo, feminismo, machismo, misoginia, padrão de beleza, redes sociais e patriarcado. Com a resposta de Rebecca ao post de Oscar, inicia-se uma comunicação extensa entre os dois, um verdadeiro diálogo, acrescido das publicações da blogueira Zoé Katana, ex-assessora de Oscar em uma editora. Quando jovem, Zoé teria sido assediada sexualmente por ele e, por isso, denuncia-o no movimento #MeToo.
A comunicação violenta que ocorre entre Rebecca e Oscar vai se tornando constante, adquirindo outros tons e a leitura permite ver as transformações que esse diálogo promove em ambos. Virginie Despentes consegue criar uma história em que personagens antagônicos mostram-se em sua crueza, complexos, sendo que deles concordamos e discordamos, vemos excessos e falhas, sentimos empatia e compreensão, ainda que pensem de modo diferente de nós. Ao mesmo tempo, Virginie Despentes escreve sem qualquer condescendência. Com muita coragem, expõe as mazelas de um masculinismo frágil e decadente, assim como debate falhas do feminismo, ou melhor, dos feminismos. Os personagens, aprofundados cada vez mais, mostram suas vulnerabilidades, seu pensamento, suas incoerências, sua solidão, fazendo-nos lembrar, em um mundo de redes sociais, que a vida real ainda é de carne, osso, angústia e tentativas de acertar, de obter amor. Em torno da fragilidade humana, o contexto da pandemia favorece ainda mais a reflexão sobre os rumos da humanidade.
Querido babaca é um livro excelente, com um ritmo que favorece a leitura, entre réplicas e tréplicas. A autora consegue expor temas, argumentos, tratar de assuntos polêmicos sem cair no didatismo ou na palestra do politicamente correto. Um ótimo exemplo disso é a forma como é discutida entre Rebecca e Oscar a questão do uso de drogas. Uma obra ousada em tempos de vigilância cerrada sobre o que a autoria pode ou não escrever, quiçá pensar.
“Oscar
Crônica de um desastre
Cruzei com a Rebecca Latté em Paris. Fiquei lembrando as personagens extraordinárias que ela interpretou, essa mulher que podia ser perigosa, mas também venenosa, vulnerável, comovente ou heroica — quantas vezes me apaixonei por ela, quantas fotos tenho com ela, em quantas casas estivemos juntos, em quantas camas —, personagens às quais me afeiçoei e que me fizeram sonhar. Metáfora trágica de uma época que foi pro saco — essa mulher sublime que em seu auge apresentou a tantos adolescentes o fascínio da sedução feminina acabou virando um sapo. Não apenas velha. Mas gorda, descuidada, a pele nojenta, uma personagem imunda e estridente. Fim de carreira. Ouvi falar que ela agora é a musa das jovens feministas. A Internacional das piolhentas ataca novamente. Nível de surpresa: zero. O máximo que faço é ficar em posição fetal no sofá ouvindo “Hypnotize”, do Notorious B.I.G, em loop.
Rebecca
Querido babaca,
Eu li o que você publicou no seu Insta. Você é tipo um pombo que cagou no meu ombro enquanto eu passava. Sujo e muito desagradável. Aham, eu não passo de uma imbecil por quem ninguém mais se interessa e que se esgoela como um chihuahua porque a única coisa que quer é chamar a atenção. Glória às redes sociais: você teve seus quinze minutos de fama. Tanto é que estou te escrevendo. Tenho certeza de que você tem filho. Um cara do seu tipo se reproduz, acha que a linhagem não pode ser interrompida. Já percebi que, quanto mais idiota e inútil a pessoa é, mais ela se sente obrigada a continuar a linhagem. Então eu espero que seus filhos morram atropelados por um caminhão e que você assista à agonia deles sem poder fazer nada, e que os olhos deles saiam das órbitas e que seus gritos de dor te persigam todas as noites. Isso é o que eu te desejo de bom. E, por favor, deixe o Notorious B.I.G. fora dessa, palhaço.”
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Querido babaca
Virginie Despentes
Trad. Marcela Vieira
Romance
Ed. Fósforo
