quarta-feira, 17 de junho de 2015

A poesia de ouro de líria porto




    Um agraciamento. A sensação mesma de encontrar uma pepita de ouro, de ter obtido sucesso de tanto bater bateia: eis como me sinto lendo delícias.
    Uma vez, Rubem Alves falou numa palestra – eu assistia: o que é um saber sem sabor? Nunca mais me esqueci, talvez por isso, grave apenas o saber que saboreio, o resto uso para provas burocráticas e, em seguida, esqueço. Mas garimpo, este livro de líria porto (assim mesmo, em minúsculas, como ela subverte e gosta) não é possível de ser esquecido, porque ainda estoura na língua, em versos dourados, de mil sensações.
    Há tempos digo que líria porto é uma representante muito legítima da poesia contemporânea, que sua poesia é forte, precisa, corajosa, bem-humorada, profunda, objetiva, nova e cheia das aprendizagens anteriores. Ávida leitora, líria não é dos poetas que desprezam mestres e esta é para mim a melhor Escola: saber ser reverente sem ser subserviente.
  Dona de um ritmo perfeito e de formas variadas, seus poemas cantarolam, desfiam palavras numa dança e apontam, escondem, sugerem, contam significados. Há sempre um pouco mais do que aquilo que está escrito.

garimpo


esta procura tem um nome insanidade
passei da idade de tentar fazer sonetos
eu só consigo descrever cinzas e pretos
acho que o verso não alcança claridade

pelas gavetas prateleiras escondidos
ainda agarro pelo rabo alguns cometas
quero as estrelas não encontro suas tetas
sinto as fissuras dos pequenos desvalidos

a minha escrita sempre foi penosa esgrima
desde menina que não tenho paradeiro
eu caço sapo com bodoque o dia inteiro
nesta esperança de catar melhores rimas

vasculho as glebas
os grotões e quem diria
bateio o sol chego a pensar
que a noite é dia

  A ideia de garimpo é, principalmente, trabalhar a metalinguística, o que é feito do início ao fim sem cansaço algum para o leitor. A palavra, a poesia, a poeta, o poema dizem-se falando de outras mil coisas, o que atesta a versatilidade desta autora. A vida revelada sem ingenuidade e a poesia alcançada também na difícil rotina diária, no cotidiano realista do nosso fardo nas minas, de insucessos nas buscas, na força necessária dos desbravamentos e dos burilamentos de nossas pedras.

traumas

tantos fatos
decorrentes
das correntes
da memória
são imbróglios
são algemas
que nos prendem
a nós próprios
e nos tornam
tão parados
e inativos
quanto as rochas

    O lirismo de líria porto – que com este nome parece mesmo predestinada – é raro e sem exageros. A medida exata entre falar de maneira bela (um ouro polido) e falar para o tempo de agora (metal frio). Lê-la é poder amaciar os olhos com mensagens duras, que falam de ausências, de morte, de velhice, de amores não vividos, de degradação ecológica, de liberdade e aprisionamentos.

namoro

de encontro ao vento
ando lento pra sentir seus dedos finos
e seu corpo sem matéria
eleva-me do chão alguns centímetros

    Para completar, e não podendo ser diferente, a edição da Lê é um luxo, com ilustrações da também talentosíssima escritora e ilustradora Silvana de Menezes, que soube exatamente captar a alma de um conjunto tão imagético.

    O livro é um perigo, porque denuncia: as joias ficam na estante.



líria porto - professora, poeta, natural de araguari – mg – autora dos livros borboleta desfolhada e de lua, publicados em portugal – 2009 – e garimpo e asa de passarinho, publicados no brasil pela editora lê – 2014.


3 comentários:

  1. enfim consigo o espaço do comentário - tentei ontem, muitas vezes, não foi possível - vim para te agradecer adriane - obrigada!
    beijo grande pra ti!

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    1. Querida. Nunca seria justo eu falar de livros que li e amei e não falar deste seu. Um ouro mesmo.

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  2. Que lindíssimo. O texto e o livro (imagino).

    Parabéns, Adriane & Líria.

    Um beijo,

    Marlon O.

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