domingo, 12 de julho de 2015

Sob o signo do sangue – Carla Diacov em Amanhã alguém morre no samba



por Adriane Garcia



Mostrarei agora quais são algumas espécies de feitiçarias, de modo que os exemplos abram o caminho para a compreensão de todo o tema. Destas, a primeira é o sangue menstrual, do qual consideraremos o valor de seu poder na feitiçaria.” Cornelius Agrippa, Filosofia Oculta, Século XV.



    Na capa branca, pintada de um vermelho rubro, a menina manca, a menina escorrendo as pernas. O vestido festivo, as mangas em estilo “boneca” e a premonição: Amanhã alguém morre no samba. Carla Diacov leu a mensagem profética no escoadouro da menstruação e é sob a perspectiva do sangue, do ciclo findável somente com a morte – pois que tanto a menarca quanto o climatério e a menopausa definitiva não seriam a solução da loucura – que nascerá sua poesia, onde a fecundação se dá exatamente do não fecundo, da frustração, do exercício de morrer antes mesmo da infância e recomeçar, novamente sendo-se:

uma mulher no fim do mundo do fim,
com grãos de areia,
escreve mensagens em garrafas vazias
jogando-as ao mar.
vazias.
minhas ideias pescam a essas garrafas
com anzóis e fisgas do meu mais profundo horror:
sê-la.”

    Uma poética profundamente ligada ao signo e à ressignificação própria. Para ler Carla Diacov é necessário um leitor disposto a estudar um novo dicionário, a refazer com inteligência e intuição a simbologia da autora. Com disposição para estar vivo, a ler coparticipando (atributos essenciais de leitura e de apreciação de linguagens), Amanhã alguém morre no samba vai se revelar em poemas fortes – como o são as verdades – e de intensa sensibilidade.

pelo gesto pela roupa pela chama
não me emboco
troco os santos de lugar
o fogão corre a sala faz
o quarto mais marmita
não bato com ninguém
daí faltar you na imagem
sou suja daí faltar you
eu nunca mais vou escrever
sou suja o fogão corre deixo
os pés no tapetinho da manhã
acordo com cara de mina de carvão
escrava dessa criança
sou suja a mina do carvão
não bato com ninguém e o fogão corre
pelo gesto pela lomba pela cintura eu
nunca mais vou chorar dentro das mãos

se queimar o dedo lambe
conselho de mãe daí faltar you
ou esfrega na franja, criança

    Neste dicionário, que à medida que lemos vamos clareando, cavalo é sempre um homem, antena é o sensível, cão é ela, eu lírico, ovo é possibilidade irrealizada, criança é carência, pássaro é amor que jamais fica... Não se trata de metáfora que acontece num poema em específico, mas de códigos que se repetem no decorrer do livro e que à primeira vista estão desconectados ou intrusos. O aparentemente hermético de alguns versos se desnuda, pois Carla Diacov está renomeando sentimentos e coisas. Sim, coisas, afinal em Amanhã alguém morre no samba, a poesia acontece em dois cenários possíveis: ora no corpo (carne, ossos, cabelos, útero, sangue, vísceras…), ora nos objetos circundantes do espaço mais imediato (mesa, faca, maçã, alho, creme…). Por acontecer neste microcosmo, há um ritmo de claustrofobia onde raramente há espaço de estrofes. O comum é o bloco único da urgência e do grito.


me visto de alçapão e choro
mas estou pelada
mas estou calva
estou feia e fútil
basta
basta quando que sou o alçapão
sou possuída e inquilina
céus
eu sou o alçapão
espia:
o diabo é minha carne pênsil.”

    Degradação do sangue ruim, degeneração, perversão, tragédia diária de não se encontrar saída para o próprio ciclo da vida, a precariedade do estar-se aprisionado ao desejo sexual, a pulsão violenta. Amanhã alguém morre no samba é um livro vermelho como os sinais de trânsito que avisam para os atropelamentos, como as luzes das ambulâncias levando os feridos, como as poças de sangue deixadas pelos crimes passionais.

Menstruada.
Feminina e nua.
E em nada suave.

    Em Das maravilhosas virtudes de algumas espécies de feitiçarias, Cornelius Agrippa avisa que para o sangue menstrual alcançar efeitos benéficos, é preciso que tudo seja feito antes do nascer do Sol. Carla Diacov sabia. Por isso Amanhã alguém morre no samba é destes livros escritos na nossa eterna noite, geralmente na hora em que os suicidas decidem viver mais um dia.


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Amanhã alguém morre no samba
Autora: Carla Diacov
Editora: Douda Correria
2015
Nº Páginas: 183



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