Por Adriane Garcia
Foi
com alegria e curiosidade que recebi o livro “Ainda”, de Laura
Cohen Rabelo, edição bonita da Impressões de Minas, pelo selo
Leme. O desejo de lê-lo já me havia sido despertado pela indicação
de outra escritora, Cristina Agostinho. Cristina havia ficado
impressionada pela riqueza do livro – vocabular e de conhecimentos.
Já
nas primeiras páginas, dei razão à Cristina; Laura conta uma
história com fluidez e mantém aceso o interesse do leitor. Seu
texto é permeado de “pequenas tensões”, e ela sabe bem manejar
esse tempo, dar-nos a conhecer em momento exato, de maneira que,
enquanto acompanhamos sua protagonista Marina e a forma como se dá
seu relacionamento com Felipe, outras questões, questões profundas
e importantes, perpassam a narrativa.
Marina
é uma estudante de grego antigo, indo em direção ao mestrado.
Felipe é restaurador, amigo da irmã de Marina, Martinha, com quem
divide o apartamento até sua ida para Portugal e Grécia. Nesse ínterim,
Marina e Felipe se conhecem melhor e, visto em primeira camada, o
romance de Laura Cohen é a história do desenvolvimento desse afeto.
Porém, lido em segunda camada, há uma ferida que não se cicatriza:
o passado. Não o das personagens, propriamente (que, por sinal, são
historiadores, restauradores, estudantes de grego antigo...), mas o
passado da humanidade.
Com
muita competência, Laura reflete e faz refletir sobre a angústia
causada pela nossa impotência diante do passado. Em determinado
momento, sua personagem Marina nos indaga: “O que é menos
danoso – receber sempre os restos das coisas antigas ou não
receber absolutamente nada, encarando o esquecimento total como um
fato absoluto e inevitável? Como dói menos na memória: quando
falta a maior parte ou quando há o mais completo silêncio e
ignorância de registros? Por fim: seria mais danoso esquecer-se de
tudo ou lembrar-se de absolutamente tudo?”
Ainda
é um romance que trata de esquecimento e memória; permanência e
passagem; o ser, a morte e a imortalidade; a falibilidade das
reconstituições. Não raro, recorrem em “Ainda” as bibliotecas,
estantes de instituições ou particulares, o livro aparecendo como
esse artefato carregado de tempo e de tentativas de dar conta do que
nos antecedeu.
Laura
Cohen Rabelo constrói um romance que emociona. Perante o mistério,
somos convidados a refazer o nada, a encontrar uma narrativa diante
das ruínas do nada, para que tenhamos alguma coisa, algum sentido. O
passado, depois de narrado, se nos apresenta. Está diante de nós
com sua ferida aberta e nos pede para tocá-lo, quer se provar
verdadeiro, quer continuar existindo. É interessante notar que, em
Caravaggio, na pintura “A incredulidade de Tomé”, a ferida de
Jesus, apesar de aberta, não sangra. É Jesus que ser quer crido. No
romance de Laura, a ferida de Felipe sangra, e muito. É o sangue que quer ser crido.
Como não creríamos na angústia de tudo o que nos é irrecuperável?
“(...)
Com o mesmo mármore que eles construíram as colunas do templo
preenchem-se os espaços vazios dilacerados pela duração dos dias.
No séc. XIX tinham colocado grampos de ferro para unir os pedaços
caídos, grampos de ferro que, como você bem sabe, dilatam com o
calor e oxidam com o tempo, avermelhando o branco imaculado do
mármore. Ah, os bem-intencionados do século XIX e sua pressa, sua
ciência inquebrável que provoca mais mal do que bem. Mas eu me
pergunto, Marina, estamos nós provocando mais estrago do que
consertando? E será que é necessário consertar as coisas assim? De
qualquer forma, apesar da quantidade assustadora de gente que passa
por aqui, a sensação é de uma absurda harmonia. Equilíbrio,
civilidade. São as colunas que todo artista copiou, a arquitetura
que todo construtor desejou, invejou, odiou, e como peregrinos de uma
religião absurda (uma religião que nem parece realmente poder ser
chamada de religião, uma religião que parece jamais ter existido),
todos caminhavam pisando as pedras no mais pleno silêncio ou com os
mais tímidos sussurros, dizendo palavras das mais diversas línguas.
O perfume das oliveiras, ácido, mas também meio doce no fim, toma o
ar e se mistura ao cheiro seco da areia quente. Amo o calor mais do
que qualquer pedra, mais do que qualquer ruína. Pelo excesso de luz,
José consegue ver bem melhor do que em Portugal, abrindo bem os seus
olhos miúdos pelos óculos de muito aumento. Vez ou outra ele parava
para descansar, contemplar o que podia contemplar e me contar uma
história, e eu lhe dava água e pistaches (os melhores que já
comemos, Marina). Ele disse uma coisa bonita que quero guardar com
você: é que todo mundo ergue suas colunas já ansiando que elas
virem ruínas, ansiando que no futuro as pessoas se lembrem de nós
(...)” p.70/71
***
Ainda
Laura
Cohen Rabelo
Edições
de Minas
Romance
2012
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