sábado, 11 de novembro de 2017

Aqui, no coração do inferno, de Micheliny Verunschk


Por Adriane Garcia

Sempre que gosto bastante de um livro, procuro escrever sobre ele. Primeiro para deixar um registro para mim, depois, porque minha leitura pode despertar interesse pelo livro em algum outro (onde estará?) leitor.

Li o livro Aqui, no coração do inferno (ed. Patuá, 2016), de Micheliny Verunschk, durante dois dias desta semana. O livro é envolvente, tem fluidez e o que mais gostei: tem uma tensão daquelas em que a gente enquanto lê sabe que está meio refém da autora.

Tudo começa quando o delegado da cidade, pai de uma menina de 15 anos, a narradora (cujo nome não falarei, já que é uma descoberta essencial para um dos prazeres dessa leitura), traz um garoto de 14 anos, acusado de vários assassinatos, para ficar preso provisoriamente na cozinha de sua própria casa. A narradora, a madrasta e a irmã ficam, por alguns dias, convivendo com essa presença esdrúxula.

É pelos olhos da menina adolescente que vamos conhecer a história, e é por seus olhos e palavras que, enquanto queremos saber mais sobre o suposto assassino, tomamos ciência da vida da própria menina: as lembranças que tem da mãe, a relação com a família, com a cidade, o lugarejo violento de fim de mundo para onde o pai foi transferido, o horror e o mistério que ela colhe, em segredo, da gaveta de inquéritos do pai.

Micheliny constrói sua história na cidade de Santana, em um cenário onde a violência está naturalizada, onde o machismo – essa forma de violência que agrupa outras tantas – está naturalizado, onde o painel político da ditadura militar aparece deixando rastros, angústias e suspeitas sobre os desaparecidos. Tudo isso transformando e sendo transformado, na usina interior que é sua protagonista, menina sagaz, inteligente, questionadora que fala tanto de masturbação feminina quanto da dúvida sobre o papel que escolherá para si, mas de antemão já adiantando que essa escolha será dela.

Sem dar respostas, Aqui, no coração do inferno, faz com que indaguemos sobre nossa sociedade, nossa liberdade, nossas meninas e meninos, neste país que parece obra de ficção.

Ah, não posso me esquecer de dizer que vamos ávidos caminhando para o final deste volume e ficamos surpreendidos com a habilidade com a qual a romancista o termina.

Recomendo muitíssimo.


Fui à cozinha e perguntei pra ele baixinho

Tu quer me comer?

Dessa vez, eu não saí correndo. Esperei uns cinco segundos pela resposta que não veio e emendei outras perguntas, apressadamente

Vai me dar uma dentada, vai?

É verdade que você comeu um cara?

Que gosto tem carne de gente?

Será que papai bateria em mim se sonhasse que eu tava na cozinha de papo com o garoto doido e assassino? Será que me amarraria ao pé da mesa feito uma bela galinha de domingo?”
(p. 81)

***
Aqui, no coração do inferno
Micheliny Verunschk
Romance
Ed. Patuá

2016

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