Por Adriane Garcia
Sempre
que gosto bastante de um livro, procuro escrever sobre ele. Primeiro para
deixar um registro para mim, depois, porque minha leitura pode despertar
interesse pelo livro em algum outro (onde estará?) leitor.
Li
o livro Aqui, no coração do inferno (ed. Patuá, 2016), de Micheliny Verunschk,
durante dois dias desta semana. O livro é envolvente, tem fluidez e o que mais
gostei: tem uma tensão daquelas em que a gente enquanto lê sabe que está meio
refém da autora.
Tudo
começa quando o delegado da cidade, pai de uma menina de 15 anos, a narradora
(cujo nome não falarei, já que é uma descoberta essencial para um dos prazeres
dessa leitura), traz um garoto de 14 anos, acusado de vários assassinatos, para
ficar preso provisoriamente na cozinha de sua própria casa. A narradora, a
madrasta e a irmã ficam, por alguns dias, convivendo com essa presença
esdrúxula.
É
pelos olhos da menina adolescente que vamos conhecer a história, e é por seus
olhos e palavras que, enquanto queremos saber mais sobre o suposto assassino, tomamos
ciência da vida da própria menina: as lembranças que tem da mãe, a relação com
a família, com a cidade, o lugarejo violento de fim de mundo para onde o pai
foi transferido, o horror e o mistério que ela colhe, em segredo, da gaveta de
inquéritos do pai.
Micheliny
constrói sua história na cidade de Santana, em um cenário onde a violência está
naturalizada, onde o machismo – essa forma de violência que agrupa outras
tantas – está naturalizado, onde o painel político da ditadura militar aparece
deixando rastros, angústias e suspeitas sobre os desaparecidos. Tudo isso
transformando e sendo transformado, na usina interior que é sua protagonista,
menina sagaz, inteligente, questionadora que fala tanto de masturbação feminina
quanto da dúvida sobre o papel que escolherá para si, mas de antemão já
adiantando que essa escolha será dela.
Sem
dar respostas, Aqui, no coração do inferno, faz com que indaguemos sobre nossa
sociedade, nossa liberdade, nossas meninas e meninos, neste país que parece
obra de ficção.
Ah,
não posso me esquecer de dizer que vamos ávidos caminhando para o final deste
volume e ficamos surpreendidos com a habilidade com a qual a romancista o termina.
Recomendo
muitíssimo.
“Fui
à cozinha e perguntei pra ele baixinho
Tu
quer me comer?
Dessa
vez, eu não saí correndo. Esperei uns cinco segundos pela resposta que não veio
e emendei outras perguntas, apressadamente
Vai
me dar uma dentada, vai?
É
verdade que você comeu um cara?
Que
gosto tem carne de gente?
Será
que papai bateria em mim se sonhasse que eu tava na cozinha de papo com o
garoto doido e assassino? Será que me amarraria ao pé da mesa feito uma bela
galinha de domingo?”
(p. 81)
***
Aqui,
no coração do inferno
Micheliny
Verunschk
Romance
Ed.
Patuá
2016
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