sexta-feira, 27 de abril de 2018

A máquina de existir – de Fabrício Marques




Por Adriane Garcia


Demorei mais que o tempo habitual, lendo A máquina de existir (ed. Pedra Papel Tesoura, 2018), de Fabrício Marques. Por cerca de três dias, eu não saía da leitura do poema Minha humanidade e sempre que terminava, voltava a ele novamente. É poema de não se querer perder nada.

Minha humanidade também dá nome à primeira parte do livro, dividido em quatro, sendo as outras: O manto branco de espanto, Pólen e Duas visitas a Minas.

No poema Minha Humanidade, já de início, Fabrício Marques nos situa nos paradoxos de nossa condição humana, aquilo que é humanidade e que, portanto, seria desejável, “é o pior de mim”. O poema traz contraposições inequívocas do que somos: puro conflito, “É tão pequenina a minha humanidade/ e é logo ali o oceano”. Esse conflito tem por base o encontro de uma humanidade individual com a humanidade do outro. No poema, a repetição do pronome possessivo “minha” marca e intensifica o movimento que é todo interior, “a víbora interna/ que carrega consigo”. Explorando tanto a profundidade do tema, como imagens e sonoridades, o poeta constrói um poema grandioso, que enquanto diz e desdiz, alcança em si movimento e transformação. A humanidade desse eu-poético é exigente e, ao mesmo tempo, simples, quer “o paraíso móvel e o tempo indomável”, mas ficaria satisfeito com “um cão e um pouco de café”.

Quando o leitor consegue se desapegar do primeiro poema, percebe que o livro continua instigante e povoado de versos surpreendentes, em sentido e beleza. Em Nós, o desocidentado, “O sol que nasce ensina/O sol que se põe ensina”, e a busca é pela origem, pela fagulha original que nos habita em comum. Em A máquina de existir (o poema), o poeta trabalha uma ideia central no livro, a noção de mecanismo, sendo certa da causa de existir a sua sabida consequência: “vai ter seu dia/ no deserto/ no vale dos ossos”. O poema busca uma compreensão profunda sobre a vida, que é dolorida, mas também pode ser iluminada. Em Camadas, a palavra busca entender como as coisas funcionam, com ciência e poesia, o que há dentro do dentro parte do mecanismo da chuva para a explicação do amor e, novamente, tudo retorna à origem para recomeçar. Assim, o poeta descobre tudo para, no fim, saber que tudo principiou, e talvez não tenha descoberto nada, afinal existir é mistério. Em Mais-valia, a poesia, respiradouro na perversidade de um sistema baseado na exploração e no consumo, canta a sua inutilidade, louva a sua menos-valia em um mundo que escolhe “o carro, a faca, a bolsa e o míssil”. O poeta segue usando a palavra como recurso imaginativo, na investigação de “o que se passa dentro e fora”, podendo transmutar-se em tantos personagens, ter tantos nomes quanto em “Totem para o homo zapping”, porque é “uns e outros a seu dispor”, porque a poesia pode mostrar-nos nossos nascimentos sucessivos em uma única existência. Em Uma vida, o autor nos conduz, com maestria, a um poema cuja última estrofe é destruidora de tudo o que nos levava a pensar. Por fim, fecha a primeira parte do livro com Deslimites, um poema tecnicamente impecável, um diálogo certeiro e conclusivo entre o vivente e a vida.

Na segunda parte, o poema Parcas, harpias traz essas figuras em contato com a morte e profecias terríveis. As harpias, sabemos, também são símbolo das paixões obsessivas, aguardam os mortos cujo fio vital foi cortado pelas parcas. Os versos olham tanto da terra para o céu, quanto do céu para a terra, e o que vêem está ligado à finitude, sobretudo: “Lá vão as parcas./ Acima as harpias”, a humanidade se situa apenas no perigo. Em False Start, o poeta oferece cenas de encadeamentos, conexões, como engrenagens em pleno funcionamento. Seria todo o movimento que observamos uma ilusão? A manhã é que “lança seu manto branco de espanto” sobre si mesma, pois toda manhã é nova e imprevisível, mesmo quando “todas as coisas recomeçam e recomeçam e recomeçam.” Em Gatilhos, a reafirmação da mudança sem cessar, da consciência grave da efemeridade; não à toa, aparece um inseto no poema, bicho de vida tão breve. No poema Felizes, Fabrício Marques nos apresenta a poesia como espaço de invenção e fantasia:

Um flamingo
que acabei de inventar –
ergue o pescoço e morde
a parte mais frágil
da tua pele.
Mesmo mordida
por um flamingo imaginário
eras feliz, e sabias.

A leitura segue com Esgotados, o lugar do cansaço na máquina de existir, o esgotamento das saídas e das possíveis soluções. Legado traz uma crítica política contundente, com um poema que, para além do tema, revela um ritmo perfeito. A música do acaso reflete a identidade desse eu-poético, que é a soma do passado, do presente, do futuro e do convívio com as outras pessoas, nunca fácil a construção de si próprio quando os “sapatos confortáveis/ escondem cicatrizes”. 4 quartetos é outro poema fabuloso que, como peças de encaixe, faz com que os personagens das estrofes se encontrem, pois tudo está ligado, ainda que o próprio título sugira, propositalmente, uma separação. Em GPS, a poesia vem nos localizar ruínas nacionais e mundiais, localizar a direita e a esquerda. Atualíssimo, nele, o autor nos diz que à direita “as principais saídas estão fechadas” e à esquerda se pode entrar “e encontrar tudo/ por fazer”. Com Cave Carmen, a homenagem aos que fazem, a solidariedade e o convite à ação: “Repare à sua volta:/ não é só com a palavra/ que é preciso lutar”.

A terceira parte, Pólen, é dedicada ao amor, aos afetos do poeta e à angústia da incomunicabilidade deste mesmo amor. Enquanto dormes, além de poema cheio de sensualidade, explora em palavra o corpo como geometria. Diante da pessoa amada, o poeta revela seu maravilhamento, que também é ternura, que também é constatação de que o que interpretamos sobre o outro é obra nossa. Amor como esperança de necessário alheamento quando o mundo rui: “e úmida província: teu corpo, minha obra,// aquela mesma que com mil chamas/ permanece alheia a um mundo em que tudo ruísse/ e ainda assim vibrássemos em paz,/ até que despertasses, e o teu corpo todo risse.” Em Trocas, um poema em que o pássaro é signo para a viagem. O sobrevoo é o necessário distanciamento que possibilita, finalmente, ver, criando a metáfora para a despedida de um amor. Em Pólen, o amor é coisa tão antiga e tão nova, pois tão em uso e desuso, assim como a letra cursiva. Logo mais, lemos Faltou dizer, o poema que reflete sobre a dificuldade de confessar o amor, quando se pensa que o amor é uma questão de palavras, já que escrever (falar) e viver são coisas tão distintas. Apenas vem em seguida e reforça, indubitavelmente, essa ideia. Com Voo, a homenagem aos avós, ao avô, principalmente. A máquina de existir nos traz a velhice e com ela a despedida fatal dos que amamos. Em Juventude, a consciência das estações de uma vida bem cumprida e a resignação diante do que não pode ser modificado, enquanto condição humana, o envelhecimento e a partida. A melhor saída, talvez seja mesmo a receita de tantos místicos e alguns filósofos, o carpe diem, viver o agora, presentemente, tema do poema Life long learning. Não por acaso, o poema que segue é Olhar absoluto, a contemplação da beleza de um coral de meninos azuis, suas vozes infantis e os sons dos instrumentos de bambus e, então, a esperança, sobre a qual fala o poema Algo, esperança sempre intacta. Ao encerrar a terceira parte, Fabrício Marques faz uma homenagem à Língua e sua sonoridade. Eu-leitor ela-língua é deliciosamente lúdico e atravessa a paisagem:

Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé

que foi isso, maquinista?

São só trilhos a ranger no entressonho
São vagões metálicos percorrendo a paisagem corrompida
São as primeiras folhas que brotam, depois da chuva
É o ruflar de plumas a erguerem-se em voo
É o murmúrio de mil corações batendo
Uns nos outros

A máquina de existir, termina com dois poemas na seção Duas visitas a Minas. Neles, as montanhas, as nuvens, os monumentos e a transformação dos cenários. O que seria de Congonhas se se levantassem, um a um, seus profetas de pedra-sabão, e abandonassem a cidade? Essa a imaginação que o poeta exercita. Fatalmente, lembramo-nos de quando Drummond disse “Minas, não há mais”.

A máquina de existir de Fabrício Marques, indagadora, criativa e inquieta, produziu esta A máquina de existir, livro de uma poesia potente, em beleza, profundidade e forma. Um leitor não se esquece de que esteve com um livro que moveu suas próprias engrenagens.

UMA NOITE

Ela voltará para casa
e eu a reconhecerei
de longe,

o plissê do vestido
se destacando
de todo o conjunto.

O sorriso aberto,
sem esconderijos,
sem farpas de amor.

Uma noite
ela voltará para casa
e se enroscará

no edredom,
pedindo café,
sonhando quieta.

Por ora,
todos a procuram
num raio de 16 quilômetros.

(p.28)

***
A máquina de existir
Poesia
Fabrício Marques
Ed. Pedra Papel Tesoura
2018




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