terça-feira, 15 de maio de 2018

Álbum, de Ana Elisa Ribeiro





Por Adriane Garcia

Diante da leitura dos originais de Álbum, de Ana Elisa Ribeiro (ed. Relicário, 2018), resolvi adiantar essa resenha. A poesia de Álbum é um primor. Trata-se, a princípio, de um livro temático em volta da fotografia, do ato de fotografar e de ser fotografado.

Tenho uma predileção por livros temáticos, por sabê-los difíceis de serem construídos: neles há sempre o risco de, justamente pela repetição, cansar o leitor. Escrever um livro temático interessante requer que o escritor alcance inúmeras nuances sobre um mesmo objeto, olhares que o alcancem, perpassem e ultrapassem. É então que o leitor descobre que o objeto sobre o qual o escritor se debruçou é apenas uma boa desculpa para falar de uma vida imensa e universal.

Já nos primeiros poemas, Ana Elisa Ribeiro compara o ato de fotografar com o ato de escrever; a exatidão das palavras teria que ser como a exatidão da luz para um fotógrafo, a fim de produzir a melhor imagem. Trabalho técnico, trabalho que envolve conhecer, estudar, traçar um caminho. Não por acaso, Álbum é o livro mais pensado da autora, segundo ela própria declara e podemos perceber. Que luz o poeta lançará, em que quantidade? Em qual cenário? Sobre que personagens? Porém, somente o trabalho técnico, sem o olhar poético, crítico ou instigante do fotógrafo não garantiria uma imagem que emocionasse. Assim é o trabalho com a palavra poética e, assim, Ana Elisa Ribeiro a realiza.

Em seguida, a autora nos leva à reflexão quase instantânea de quando nos deparamos com um álbum de família: o tempo. O interessante é que Ana Elisa Ribeiro nos entregará alguns paradoxos: o tempo visitado na fotografia não é o tempo vivido, mas o tempo vivido só pode se eternizar na fotografia, pois a memória não nos é confiável.  Que tempo exatamente a fotografia captura? Se é que captura. E como acreditavam certas tribos indígenas, qual espírito ali se prende? Começamos a suspeitar de que é o espírito daquele que contempla.

Nos poemas de Álbum, evoca-se uma educação para a fotografia (educação para a vida), aprender a olhar, ver além da foto, ter atenção com o elemento ausente, o fotógrafo, os objetos reincidentes.

De modo sensível e profundo, Ana Elisa Ribeiro desenvolve o tema das imagens fotográficas e sua relação com as lembranças e nosso entendimento do passado, levando-nos a perceber a fragilidade de tudo o que consideramos memória, a fragilidade da experiência humana, em cujas pontas encontram-se nascimento e morte. A fotografia é aquilo que sobra quando o acontecimento já se foi.

Inevitavelmente, lembrei-me de Rilke e sua frase: “O modelo parece, a coisa de arte é.” Influenciado pela arte de Rodin, Rilke queria para sua poesia o que o escultor alcançava com a pedra. O que Rodin fazia, declarou Rilke em suas cartas, era prender o tempo, prender a beleza efêmera para que ela durasse, transformar aquilo que passa naquilo que fica.

Uma das leituras possíveis deste livro, é a de que Ana Elisa Ribeiro traz este Álbum em retribuição a outro. Assim como sua mãe passa as férias organizando fotografias antigas que sejam heranças dos filhos, Ana Elisa Ribeiro prepara o livro de poemas que registra a preparação de sua mãe, pois “nenhuma fotografia/ se mede/ em segundos”. Ela, ao rever o passado, movimenta-se em gratidão. E é por haver um encontro com o amor, com a dor, com a frustração, com a morte, com a resignação e com a alegria, que a poeta escreve. Há sempre mais em uma fotografia do que a própria fotografia, há sempre mais na palavra do que a própria palavra. Rever um álbum exige coragem. Dessa coragem, ela também nos fala.



PROCESSOS

O amor é um processo químico.

O amor é um processo biológico.

O amor é explicável pela história,

com implicações geoespaciais.

O amor é uma questão híbrida.



A fotografia é um processo químico.

A fotografia é um processo físico.

A fotografia é uma questão artística,

jornalística e tecnológica,

com implicações éticas e financeiras.

A fotografia é uma questão híbrida.



O que dizer de nossas fotografias rasgadas?

O que dizer destas fotos em que não estamos

lado a lado, e nem podemos nos tocar?

O que dizer das fotos que não tiramos

daqueles dias de amor nascente?

E destas fotos em que estamos

com os pares errados?



O que não é fotografia

dependerá da memória.



A memória é um processo químico.

A memória é um processo biológico.

A memória é uma questão para nós,

com implicações para o futuro.



O amor é um processo.

A fotografia é um processo.

A memória não é confiável.

O amor é sempre um processo.

A fotografia, não.

Olhar minuciosamente a fotografia

é um processo híbrido.

A memória é um processo que falha.

Resta confiar na ciência e no amor





INSTANTÂNEO #5

Só mesmo uma foto

para nos flagrar

no auge

de um quase





MENOS DUAS

sete irmãos

e irmãs

quase abraçados

tímidos no ato

da fotografia



meio posados

meio não

muito limpos

em suas roupas

bem passadas



cinco moças

dois rapagões

orgulhosos de suas

calças suspensas



sete irmãos e irmãs

na fotografia

em cima do piano



as duas irmãs —

mortas em acidentes —

continuam limpas

e desafiadoras

sobre o negro

piano fechado



os demais

irreversivelmente

envelhecem



***
Álbum

Poesia

Ana Elisa Ribeiro

Ed. Relicário

2018


2 comentários:

  1. lembrei da mixteca que conheci em Oaxaca se benzendo antes de aceitar que a fotografássemos. lembrei da Rachel de Blade Runner e de suas preciosas e falsas fotografias para atestar sua real humanidade. existência e fotos... "Olhar minuciosamente a fotografia é um processo híbrido."... parabéns pela resenha. convite aceito para conhecer o maravilhoso livro da Ana Elisa.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vai gostar, Virginia. E que bom que a resenha despertou essa vontade. Um beijo. Obrigada pela leitura e o retorno por aqui.

      Excluir