Por
Adriane Garcia
Já
na epígrafe, Matheus Arcaro nos coloca em contato com a Filosofia. Um fragmento
póstumo de Nietzsche, uma frase do Ética, de Espinosa. Tanto quanto o tema da
morte, as referências da Filosofia atravessam os contos de Amortalha, naturalmente, numa escrita fluida (nem sempre linear)
que usa analogias bem construídas: “Bete
arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma verdade da calçada”, “sua boca, uma metralhadora de Deus”. O
leitor versado em Filosofia encontrará alusões que enriquecem a narrativa; o
que não for, também aproveitará a leitura, pois as histórias sustentam-se sem
as referências. Aqui, vale exemplificar com a ironia presente no conto Má educação, em que o professor de Filosofia,
em greve, é agredido pelo policial que foi seu aluno. A Filosofia não salvou o militar,
nem o professor, mas as consciências foram aguçadas.
Por
toda a leitura, chama a atenção a capacidade de Matheus Arcaro para emocionar.
Os contos permitem que o leitor não só “entre” na narrativa, mas que estabeleça
contato com sentimentos e situações dos personagens. Parte deste alcance se
deve ao fato de o autor conseguir manter a tensão e o mistério enquanto conta. No
conto Como fugir? o narrador sente a
beleza de forma tão avassaladora que chega a doer. A arte é absurdamente um ápice
da capacidade humana de produzir beleza: “Antes
a cegueira que os girassóis de Van Gogh.” A beleza da arte é comparada à beleza
da natureza, Michelângelo, um deus “torturador”,
como o deus que fez o vulcão e a lava vermelha que incandesce: “É deus esfregando a beleza na cara da gente”.
Na
coletânea, sobressai a dor da morte nas nossas variadas experiências. A morte
de nosso cão, de nosso ente amado, de nosso pai, de nosso filho, mãe, avó. A morte
também do amor e a morte em seu avesso: o nascimento. É interessante notar que
se no conto Alemão, o filho reage de
forma racional à morte do pai, a ponto de parecer não senti-la, no conto
seguinte, A flor, a epígrafe de Simone
de Beauvoir já desmente toda a situação do conto anterior: “É inútil pretendermos integrar a morte na
vida e conduzirmo-nos de maneira racional em face de uma coisa que não o é: que
cada um se vire como possa na confusão de seus sentimentos.”, ressaltando a
pluralidade dos personagens e dos conflitos. A flor, é um conto belíssimo, em que o amor por Princesa, uma gata,
cresce na mesma medida que a solidão de sua dona, Clara, aumenta. As duas se tornam
tão ligadas que estabelecem uma linguagem entendida por ambas e até pelo leitor.
Matheus Arcaro nos faz acompanhar a dor dos últimos dias da companheira de
Clara, doente e à beira do sacrifício. A morte poderá se tornar, então, gesto
de amor.
Escritor
que não foge ao seu tempo, Matheus Arcaro traz preocupações com relação ao
presente e ao futuro das mulheres; seus personagens, não raro, são filhos de mães
fortes ou pais de meninas: “Não sei teu
sexo e te chamo assim! Ilustração de como será tua jornada caso sejas Camila. É
mais profunda a cicatriz de fêmea, filha amada”. Também os cenários são
construídos na sociedade das desigualdades econômicas, sociais e políticas. No
hospital, a enfermeira de “A graça de
Benedito” cuida de todos, indistintamente, inclusive dos moradores de rua
que sempre voltam, doentes de novo. Em Fora
do ar, o autor nos lembra, criticamente, através do seu jardineiro, que a
beleza só poderá ser vista se desligarmos a TV.
Trabalhando
também com humor, em Linha da vida, Amortalha traz um conto engraçadíssimo, em que Arthur, atendente em um programa
contra suicídio, no seu primeiro dia, conversa com um provável suicida, Francisco
(que ele insiste em chamar de Frederico).
Porém, pela conversa dos dois, o conhecimento de Filosofia de Arthur (referência
a Schopenhauer) só faz piorar.
Amortalha
é um livro sobre os fins, sobre os começos, sobre o amor, a certeza da morte e
sim, a celebração da vida. Também trata do desejo, inclusive do de morrer. Uma
leitura inteligente, envolvente e emocionante.
“Filha, é bom que saibas: o ser humano não é
como apresentam nas histórias de herói. Às vezes, ele pratica o mal em nome da
justiça, às vezes diz uma coisa e faz outra, às vezes enterra um punhal no
peito de quem ama. É bom que saibas que, enquanto algumas pessoas apanham
migalhas para tapar os buracos do estômago, outras descartam comida como se
fosse água barrenta. É bom que saibas que há pessoas que julgam importante a
cor da outra pessoa e o que ela carrega nos bolsos. Saibas, Antonella, que, por
seres mulher, o mundo, diversas vezes, vai te esfregar a proibição nas vistas.
Vai te trancar portas e podar possibilidades. Vai esconder por trás de discursos
coerentes o cimento que ergue a intransigência.
Não, não quero borrar tua visão com
meus juízos. Não quero mostrar-te apenas a parte suja dos fatos. Estou certo de
que não te assustarás com minhas palavras, mas as usará como combustível pro
teu combate diário. Além disso, tu provarás, feito um faminto, a porção
suculenta da vida e, com ela, lambuzarás a alma. De alguns destes momentos, sei
que vou participar. Passearemos no parque em muitos finais de tarde, iremos ao
cinema, falaremos sobre as danças da existência e, com tua mãe e teu irmão,
chegaremos à ousada conclusão de que a vida, justamente pela ausência de
sentido prévio, tem o vigor de uma bailarina.”
Excerto do conto A gestação de um
pai, pag. 114/115
***
Amortalha
Matheus Arcaro
Contos
Ed. Patuá
2017
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