terça-feira, 2 de outubro de 2018

Amortalha, de Matheus Arcaro



Por Adriane Garcia

Já na epígrafe, Matheus Arcaro nos coloca em contato com a Filosofia. Um fragmento póstumo de Nietzsche, uma frase do Ética, de Espinosa. Tanto quanto o tema da morte, as referências da Filosofia atravessam os contos de Amortalha, naturalmente, numa escrita fluida (nem sempre linear) que usa analogias bem construídas: “Bete arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma verdade da calçada”, “sua boca, uma metralhadora de Deus”. O leitor versado em Filosofia encontrará alusões que enriquecem a narrativa; o que não for, também aproveitará a leitura, pois as histórias sustentam-se sem as referências. Aqui, vale exemplificar com a ironia presente no conto Má educação, em que o professor de Filosofia, em greve, é agredido pelo policial que foi seu aluno. A Filosofia não salvou o militar, nem o professor, mas as consciências foram aguçadas.

Por toda a leitura, chama a atenção a capacidade de Matheus Arcaro para emocionar. Os contos permitem que o leitor não só “entre” na narrativa, mas que estabeleça contato com sentimentos e situações dos personagens. Parte deste alcance se deve ao fato de o autor conseguir manter a tensão e o mistério enquanto conta. No conto Como fugir? o narrador sente a beleza de forma tão avassaladora que chega a doer. A arte é absurdamente um ápice da capacidade humana de produzir beleza: “Antes a cegueira que os girassóis de Van Gogh.” A beleza da arte é comparada à beleza da natureza, Michelângelo, um deus “torturador”, como o deus que fez o vulcão e a lava vermelha que incandesce: “É deus esfregando a beleza na cara da gente”.

Na coletânea, sobressai a dor da morte nas nossas variadas experiências. A morte de nosso cão, de nosso ente amado, de nosso pai, de nosso filho, mãe, avó. A morte também do amor e a morte em seu avesso: o nascimento. É interessante notar que se no conto Alemão, o filho reage de forma racional à morte do pai, a ponto de parecer não senti-la, no conto seguinte, A flor, a epígrafe de Simone de Beauvoir já desmente toda a situação do conto anterior: “É inútil pretendermos integrar a morte na vida e conduzirmo-nos de maneira racional em face de uma coisa que não o é: que cada um se vire como possa na confusão de seus sentimentos.”, ressaltando a pluralidade dos personagens e dos conflitos. A flor, é um conto belíssimo, em que o amor por Princesa, uma gata, cresce na mesma medida que a solidão de sua dona, Clara, aumenta. As duas se tornam tão ligadas que estabelecem uma linguagem entendida por ambas e até pelo leitor. Matheus Arcaro nos faz acompanhar a dor dos últimos dias da companheira de Clara, doente e à beira do sacrifício. A morte poderá se tornar, então, gesto de amor.

Escritor que não foge ao seu tempo, Matheus Arcaro traz preocupações com relação ao presente e ao futuro das mulheres; seus personagens, não raro, são filhos de mães fortes ou pais de meninas: “Não sei teu sexo e te chamo assim! Ilustração de como será tua jornada caso sejas Camila. É mais profunda a cicatriz de fêmea, filha amada”. Também os cenários são construídos na sociedade das desigualdades econômicas, sociais e políticas. No hospital, a enfermeira de “A graça de Benedito” cuida de todos, indistintamente, inclusive dos moradores de rua que sempre voltam, doentes de novo. Em Fora do ar, o autor nos lembra, criticamente, através do seu jardineiro, que a beleza só poderá ser vista se desligarmos a TV.

Trabalhando também com humor, em Linha da vida, Amortalha traz um conto engraçadíssimo, em que Arthur, atendente em um programa contra suicídio, no seu primeiro dia, conversa com um provável suicida, Francisco (que ele insiste em chamar de  Frederico). Porém, pela conversa dos dois, o conhecimento de Filosofia de Arthur (referência a Schopenhauer) só faz piorar.

Amortalha é um livro sobre os fins, sobre os começos, sobre o amor, a certeza da morte e sim, a celebração da vida. Também trata do desejo, inclusive do de morrer. Uma leitura inteligente, envolvente e emocionante.



Filha, é bom que saibas: o ser humano não é como apresentam nas histórias de herói. Às vezes, ele pratica o mal em nome da justiça, às vezes diz uma coisa e faz outra, às vezes enterra um punhal no peito de quem ama. É bom que saibas que, enquanto algumas pessoas apanham migalhas para tapar os buracos do estômago, outras descartam comida como se fosse água barrenta. É bom que saibas que há pessoas que julgam importante a cor da outra pessoa e o que ela carrega nos bolsos. Saibas, Antonella, que, por seres mulher, o mundo, diversas vezes, vai te esfregar a proibição nas vistas. Vai te trancar portas e podar possibilidades. Vai esconder por trás de discursos coerentes o cimento que ergue a intransigência.
Não, não quero borrar tua visão com meus juízos. Não quero mostrar-te apenas a parte suja dos fatos. Estou certo de que não te assustarás com minhas palavras, mas as usará como combustível pro teu combate diário. Além disso, tu provarás, feito um faminto, a porção suculenta da vida e, com ela, lambuzarás a alma. De alguns destes momentos, sei que vou participar. Passearemos no parque em muitos finais de tarde, iremos ao cinema, falaremos sobre as danças da existência e, com tua mãe e teu irmão, chegaremos à ousada conclusão de que a vida, justamente pela ausência de sentido prévio, tem o vigor de uma bailarina.”

Excerto do conto A gestação de um pai, pag. 114/115

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Amortalha
Matheus Arcaro
Contos
Ed. Patuá
2017





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