terça-feira, 30 de outubro de 2018

O corpo descoberto, de Eliane Robert Moraes (org.)




Por Adriane Garcia



Apesar do erotismo ter estado sempre presente na literatura brasileira, foi a partir do final do século XIX que ele se expandiu, coincidindo com um maior exercício da tardia imprensa no Brasil e suas tipografias. O livro, artigo de luxo restrito a uma parcela pequena e privilegiada da população, era, em geral, importado. Com a maior circulação do livro na capital do Império, a autoria nacional cresceu no mercado livreiro.

Os livros tidos como pornográficos já faziam seus adeptos entre os leitores no país; vindos da Europa, tratavam dos temas devassos, da luxúria, da depravação, dos bordéis, das orgias e dos personagens sobre os quais a moral fazia calar: prostitutas, homossexuais, pervertidos, libertinos monásticos e políticos. Em uma sociedade marcada pelo conservadorismo e pelo controle do corpo através da Igreja e do Estado, alguns escritores brasileiros, para desenvolver a temática erótica, optaram por assinar com pseudônimos.  Além dessa estratégia, os escritores do século XIX que se aventuraram a falar do sexo, muitas vezes o fizeram utilizando-se da alusão.

Em O corpo descoberto, seleção organizada por Eliane Robert Moraes, é possível encontrar um grande acervo do que foi essa literatura. A seleção delimita setenta anos de produção do conto erótico brasileiro, de 1852 a 1922, finalizando exatamente com a chegada do Modernismo. Outra delimitação é que somente foram usados textos de domínio público. São 23 autores, notando-se entre eles apenas uma escritora: a carioca Júlia Lopes de Almeida. Em um país com entraves que iam da  deficiente alfabetização das mulheres ao machismo nas relações sociais, é explicável que a autoria feminina ficasse totalmente prejudicada. Não obstante, o conto da autora, O caso de Ruth, é um dos melhores da seleção. O leitor poderá observar a mudança de tratamento no conflito da personagem feminina quando escrito por Júlia. Sua personagem esconde o segredo da violência sexual e diferentemente de, por exemplo, a narrativa de Olavo Bilac, em que o narrador acaba justificando essa violência com a “premiação” de uma gravidez, Júlia nos conta de uma personagem que não escapa do suicídio.

Contextualizados dentro do Romantismo, passando pelo Realismo e Naturalismo, O corpo descoberto traz nomes como Machado de Assis, Raul Pompéia, Cruz e Souza, Aluísio de Azevedo, João do Rio e Lima Barreto, dentre outros, chegando em Mário de Andrade. A organização do livro é temática, abrangendo histórias que envolvem objetos, viúvas, feitiços,  mulheres da vida, descoberta do corpo, assombrações e até a sensualidade dos tísicos (mais especificamente das tísicas). A mulher é o personagem em comum e nisso também o livro se torna interessantíssimo. Como é para o leitor, a leitora de agora, ler essa visão de mulher essencialmente idealizada ou demonizada na literatura do século XIX? Pois é fato que o leitor, a leitora lê com os olhos de agora.

Usando a alusão para praticar uma literatura erótica, os autores em O corpo descoberto mostram os “modos de narrar”, de dizer sem dizer e, ao mesmo tempo, trabalham com a sugestão. O braço nu da mulher sugere o corpo, o vaso de cerâmica sugere a vagina, a comparação com o cisne sugere a mulher elegante, feita para a apresentação na sala, ao mesmo tempo que a comparação com a cabrita sugere a mulher sensual e pecaminosa, feita para a cama. No deslanchar das histórias, quase sempre, o homem é o ser desencaminhado pelas mulheres, assolado e desolado pelas paixões. A mulher bonita é quase invariavelmente branca, loira, no máximo morena, o que quer dizer ter cabelos negros.

Machado de Assis traz uma boa surpresa: Pílades e Orestes, um conto homoerótico sobre dois amigos inseparáveis e Mário de Andrade fecha o livro com O besouro e a rosa. Neste conto, um besouro caminha sobre o corpo de Rosa e se embola nos seus pelos pubianos. É a linha que separa a inocência do desejo consciente do sexo. A organizadora foi sagaz ao encerrar a seleção com um escritor que também representa uma linha divisória.

Um livro especial, feito para leitores e leitoras que para além da ficção, prezam os registros que a literatura efetua e que constituem, também, a nossa história e a história dos nossos modos de narrar.

***
O corpo descoberto
Contos Eróticos Brasileiros (1852-1922)
Seleção de Eliane Robert Morais (Org.)
Cepe Editora
2018


Texto originalmente publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 05 out 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário