terça-feira, 6 de novembro de 2018

Começa em mar, de Vanessa Maranha




Por Adriane Garcia



Começa em mar (ed. Penalux), romance da escritora Vanessa Maranha, traz para bem perto do leitor mais de uma viagem. Não só a viagem a que um bom livro leva, mas a própria viagem que a personagem Alice Zuma empreenderá. Filha de mãe espanhola e pai português, fugidos do salazarismo, a criança Alice se vê refugiada em uma ilha da Bahia. Ali começará sua história de inadaptação, cujo sentimento constante será o do exílio.

Os pais de Alice, no Brasil, não se adaptam. O conflito é interessante, pois mistura humilhação secreta com externação de sentimento de superioridade. O pai, com o tempo, definha, cada vez mais “diminuto”. A mãe insiste em narrar as glórias do passado europeu, enquanto se recusa a partilhar dos hábitos locais, inclusive não vestindo a filha como as outras crianças. Alice irá para a escola com a indumentária espanhola, mesmo que isso lhe aumente a inadequação de uma infância visivelmente forasteira. Essa infância determinará o cenário de Alice, esteja ela onde estiver: o não-lugar.

Simultaneamente à figura do pai que se enfraquece até desparecer, a mãe vai se “emasculando” naquilo em que ele se omite e retira; autoritária e cruel: “Para Concha, sofrimento era pedagogia (...)”. A influência (ou a falta de influência) do pai medíocre será determinante para o modelo de casamento da filha, cujo marido, também medíocre, escreve livros que ninguém lerá, preso no porão do hotel, agora, negócio em que Alice ganha a vida.

Assim como a incompletude está presente desde o início da narrativa, o mar é o constante contraponto: Alice sabe que ele é a possibilidade de encontro, chegada e partida e nele deposita esperanças de curar uma vida inteira de faltas.

Deste modo, planeja partir e descobrir suas origens na Ibéria, mas, inexorável, acaba por descobrir que também não pertence à Europa. No entanto, é em pleno mar e somente nele, a bordo de um navio, que Alice descobre uma natureza sexual desconhecida, sua sexualidade libertina, farta como as águas do oceano, onde é absoluta senhora de si e de seu corpo.

É interessante notar o destaque das personagens femininas em Começa em mar, todas trazendo relacionamentos conflituosos entre si e seus homens, entre si e seus filhos; também entre patroas e empregadas: “não se pode amar quem nos chefia, é antinatural”, sogra e nora. Situações muito próprias da experiência das mulheres como maternidade, estupro, aborto, objetificação são abordadas.

A linguagem se aproxima da prosa poética, às vezes trazendo construções parecidas com o português de Portugal; utilizando, amiúde, a inversão sintática. Uma história envolvente sobre despertencimento e solidão, ainda que nossos pés estejam em terra e que uma multidão nos acompanhe. Começa em mar também fala do desejo humano pela volta ao princípio. É a água o nosso primeiro lugar.

A ideia era atirar-se no mar, tornar à água, ninguém nesse mundo suspeitava que em Jordana tal intenção fermentasse tão lenta e longamente. Eram planos que desenhava desde muito antes, o perigo, nela, jazia acomodado, sem iminências nem rompantes, uma fera dormente, delicadamente alimentada em autofagia, de pouco em pouco a devorando por dentro.
A Jordana sempre sentira viver uma vida que não lhe pertencia. Nascida em negativo. Ainda mulher. Muito olho contra, quem sabe perecesse semente mesmo vingasse não. Desenvolvida para não ser. A mulher era só superfície de alisar. A mulher era vaso onde despejar tremores líquidos, sua carne de fundo infinito aberta em rasgo. Pra baixo de réptil, imbecil, amordaçar-lhe a sua muita fome.” (pg. 120)


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Começa em mar
Vanessa Maranha
Romance
ed. Penalux
2017
Menção honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016.












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