Forte
apache (Cia das Letras), de Marcelo Montenegro é
dividido em três partes; a primeira homônima do livro
(2017) e as outras duas com poemas de seus trabalhos anteriores:
Garagem lírica (2012) e Orfanato portátil (2003).
Oferecendo
uma viagem sobre a produção de Marcelo Montenegro,
Forte apache permite verificar que a voz do autor já
vinha definida e diferenciada, que se manteve e se fortaleceu naquilo
que parece centrar seu projeto poético: o olhar. Marcelo
Montenegro é o poeta da cena, da imagem, dos “takes”, dos
pequenos momentos que passariam despercebidos se sua sensibilidade
não os flagrasse e, como alguém que seleciona as cenas,
o poeta também pensa as trilhas sonoras.
Utilizando-se
do humor, do contrassenso, das antíteses, das constatações
inusuais, da ironia, Marcelo Montenegro retira da realidade, do fato
banal, aquilo que deveríamos ter visto e não vimos,
ocupados demais que estamos em viver nossos dias atropelados. Seus
versos são para acordar, avisar, assustar. O que é
importante? O que não é importante? No que não
reparamos? Quando algo é ressignificado pode mudar de valor.
Com
aquilo que, via repetição dos gestos, já nos
acostumamos, a poesia de Forte apache alerta: tudo pode ser
muito estranho e novo, cada ato banal que todos praticam no mundo
particular. É ao dar visibilidade para esses atos que o poeta
denuncia a normatização (e diluição) como
estratégia do coletivo para cegar, afinal, a singularização
nos torna loucos (e tão mais interessantes) diante do mundo.
Em
Forte apache, a atenção se volta para o
cotidiano mais comum, o que não é a nossa atuação
calculada, do palco; é, antes, o que estamos fazendo nas
coxias. Desse cotidiano, o poeta extrai sentido e delicadeza e o
leitor percebe que há também grande ternura naquele que
observa.
Uma
poesia feita com a linguagem do nosso tempo, permeada pela prosa que
capta o lírico, com referências do cinema, da música
e da literatura, na busca dos pequenos conceitos e definições
que ajudam a compreender o mundo, grifando os livros para achar as
frases, grifando a vida para achar o verso.
Bruxismo
Isto
podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por
exemplo.
NÃO, não uma bebedeira, mas o começo
encantador
da embriaguez. Um dia bom, qualquer
motivo,
a vida irrigando o corpo com nicotina.
Podia
ser uma baleia encalhada na praia
do
amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.
Podia
ser uma antena em estado de coma.
Ou
cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo
desolado
por não estar com sua câmera
naquele
momento. Ou um menino sentado
na
ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.
Podia
ser uma seleção de crônicas publicadas
em
lugar nenhum. Um deus discotecando
instantes.
Um hidrante aberto no agora.
Podia
ser uma mulher suspendendo a barra
da
calça para saltar uma poça. Aqueles insetos
que
morrem após a picada. Uma adega de
ausências
que o tempo elabora. Podia ser
um
exame que, buscando uma coisa, diagnostica
outra.
SIM, podia ser isso tudo. Uma solidão
acesa
no abajur da melodia. Um macaco
se
olhando na água no primeiro dia do mundo.
Buquê
de presságios
De
tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que
nunca toca no rádio.
Cabaré
para
Paulo de Tharso (in
memoriam)
e
Ester Laccava
E
se apenas cantássemos
como dois cansaços
num “deserto sem bússola”?
E se inscrevêssemos nosso sopro
na vidraça suja do mundo?
E se parássemos
de gastar nossas fichas nesta máquina?
E se apenas fingíssemos
como dois copos tingidos
de vinho no fundo?
E se nos anunciássemos
com bocejos sinceros em reuniões de negócios?
E se apenas sangrássemos
feito fiapos de riso
que escapam do choro?
E se topássemos, entre abandonos,
com o prenúncio invisível
de um poema lindo?
Resistiríamos, desistindo?
como dois cansaços
num “deserto sem bússola”?
E se inscrevêssemos nosso sopro
na vidraça suja do mundo?
E se parássemos
de gastar nossas fichas nesta máquina?
E se apenas fingíssemos
como dois copos tingidos
de vinho no fundo?
E se nos anunciássemos
com bocejos sinceros em reuniões de negócios?
E se apenas sangrássemos
feito fiapos de riso
que escapam do choro?
E se topássemos, entre abandonos,
com o prenúncio invisível
de um poema lindo?
Resistiríamos, desistindo?
***
Forte
apache
Marcelo
Montenegro
Poesia
Cia
das Letras
2018
Maravilha! Como não pude ir ao lançamento aqui em BH, vou procurar nas livrarias.
ResponderExcluirVai gostar. Uma dicção bem contemporânea.
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