sábado, 29 de dezembro de 2018

O som das coisas se descolando, de Casé Lontra Marques





Por Adriane Garcia




Na capa de fundo verde, onde outros olhos podem ver azul, somente o título e o nome do autor. É já ali a primeira pista sobre essa leitura: sinestesia. O som das coisas se descolando exige escuta e, por isso, alude ao silêncio. Ao abrir o livro, o leitor será solicitado a ouvir, mas, também, seguirá por um caminho tátil, gustativo, olfativo, visual. É para aguçar os sentidos. A poesia de Casé Lontra Marques requer o corpo.

Ensina o filósofo Merleau Ponty que nós só sabemos que existimos porque somos um corpo no mundo e que esse corpo único e individual é nossa chave de entendimento, chave pessoal e intransferível, corpo vivido. O corpo do outro é algo, no máximo, familiar, mas é por meu corpo percebendo os outros corpos que o mundo se alonga e se amplia: “um prolongamento milagroso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de se relacionar com o mundo”.

Porém, antes de “saber”, no sentido intelectivo, percebemos, e a percepção é nosso primeiro contato com as coisas. Antes do pensamento elaborado há a sensibilidade, um contato primário muito rejeitado na sociedade contemporânea. Sociedade que sobrevive às custas de não ser percebida, para ser apenas consumida, para ter seus danos nos corpos validados pela ciência.

Entre o chamado mundo adulto, que despreza o encantamento pueril da criança e o mundo da criança, ainda na presença do susto, alumbramento diante das coisas (corpo para sentir), existe uma ponte chamada poesia. Não à toa, Octavio Paz escolheu dois símbolos como o princípio e o fim da linguagem humana: o abraço dos corpos e a metáfora poética: “No primeiro: união da sensação e da imagem, o fragmento apreendido como cifra da totalidade e a totalidade repartida nas carícias que transformam o corpo numa fonte de correspondências instantâneas. Na segunda: fusão do som e do sentido, núpcias do inteligível e do sensível.”

A poesia de Casé Lontra Marques, em O som das coisas se descolando, situa-se nessa ponte, onde o inteligível e o sensível se encontram. Casé Lontra Marques constrói os poemas com as imagens e os elementos dos corpos, aludindo ou fazendo referências, amiúde, aos termos da biologia e contrapondo a angústia à paz na mesma correlação que contrapõe vida orgânica à vida inorgânica: “Nada que respira perdura em paz”.
Há uma fluência de veias funcionando, uma delicadeza de arrepio de poros:

“Nunca inerte, a delicadeza
(pulsando)
se faz deque: sobretudo
quando algum grão
de coragem
chega
na garganta – e aí não para,
ainda
que tampouco
se apresse.”

As palavras são escolhidas com o cuidado de quem conhece o trajeto sensorial da poesia. Aludir ao paladar enquanto o verso trai o senso comum, ao mesmo tempo que a sonoridade, dedicadamente trabalhada, chega aos ouvidos. Concomitante, uma imagem visual feita de absurdos se nos dá, mas já não é mais absurda, e nos cai perfeitamente. Algo anterior ao que valorizamos como entendimento percebe, sente:

Em hora arredia,
arar o que mais arde:
oceano
mordido pela maçã
da face.”

A atenção é constante sobre a saliva, o sangue, o fôlego, a carne, os ossos, a precariedade e a sujeição do ser ao tempo. O desejo, no que concorda com os budistas, é uma grande aflição, a fome não dorme, “sempre insone”. O poeta de O som das coisas se descolando é atento e observador, cada reação e sentimento não lhe escapam. Seus elementos vão do micro ao macro, do grão às galáxias. Casé Lontra Marques trabalha o poema curto, com o mínimo; o que quer é mesmo esse grão que interfere, à flor da pele.

Por trás da composição de seus versos, o poeta reflete a existência, dialoga com informações de vários campos do saber, da filosofia à psicologia, chega à doença como sintoma:  a azia como um aviso de que não se está vivendo corretamente; a sabedoria ancestral de que “Conhecemos com os pulmões”, esse órgão da troca inexorável com o exterior: Ar. E, tendo percorrido, nos poemas, as reflexões que se apoiam em conhecimento intelectual é como se, paradoxalmente, afirmasse: Eu não sei se é assim, eu sinto que é assim. Do nada saber conecta-se com o Mistério; não para o alívio, mas para a plenitude. A vida aparece quase que como um organismo predador e o corpo só pode ser pensado no tempo. É contra o tempo que se apresenta a linguagem:

O tempo se debate
quando conseguimos respirar
 dentro
 de uma frase.”

O som das coisas se descolando permite várias leituras, o reino de suas significações é amplo, mas sob qualquer interpretação, os versos inquietam: “o que se traga sem trauma?”. Viver é um exercício destemido, principalmente porque só funciona se há a coragem de mexer dentro do próprio corpo e não fora dele, no corpo próprio e não no corpo do outro. Da constatação de que fazemos parte não do equilíbrio, mas da “ordem arredia do caos” e que o imperativo absoluto é viver, fecundar, o desafio da compensação: linguagem, poesia, pois a linguagem é necessária, mas a fome é fluente.

Que as frases, anonimamente;
que as frases
infeccionem – uma a uma –
sem
desfalcar a fome (aquela
mais fluente que
de fato funda).”

De tudo se descola uma palavra, como se a palavra fosse a pele das coisas:

Os objetos – assim como
os substantivos
que deles se soltam – nunca
abdicam
de desobedecer.
suas arestas
os arejam (eu que aprenda
a jamais
me apaziguar).

O que seria do corpo/ sem o espanto que o expande?”, pergunta Casé Lontra Marques. Seria a diminuição do corpo, a sua inutilização, a impossibilidade de sua plenitude – e como vive sem plenitude nossa sociedade! Os poemas de O som das coisas se descolando é um convite ao contato com esse espanto e a demonstração de que a poesia é uma maneira de acessar nossa primeira forma de estar no mundo, nosso estágio de percepção, as primeiras práticas de nosso aparato psíquico-biológico. Nossa vida não é toda refletida, nem tudo que acontece acomete nosso intelecto. É a percepção que revela o mundo pela primeira vez.

A poesia quer um corpo vivo. Um corpo vivo o suficiente para se alegrar e para sofrer, para sentir e para tentar entender, também para aceitar que nada entende. Um corpo vivo o suficiente para celebrar-se e se perceber numa espécie de maldição com consciência, em carne viva, ruína se formando no tempo e caminhando para a morte (integração?), vivo o suficiente para ouvir o som das coisas se descolando.

Tragédia veloz, trajetória voraz
– inenfaticamente:
aprender a ruir é já ressuscitar.”


***
O som das coisas se descolando
Casé Lontra Marques
Poesia
Ed. Aves de água
2017


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