Por Adriane Garcia
Na capa
de fundo verde, onde outros olhos podem ver azul, somente o título e o nome do
autor. É já ali a primeira pista sobre essa leitura: sinestesia. O som das coisas se descolando exige
escuta e, por isso, alude ao silêncio. Ao abrir o livro, o leitor será
solicitado a ouvir, mas, também, seguirá por um caminho tátil, gustativo, olfativo,
visual. É para aguçar os sentidos. A poesia de Casé Lontra Marques requer o corpo.
Ensina o
filósofo Merleau Ponty que nós só sabemos que existimos porque somos um corpo
no mundo e que esse corpo único e individual é nossa chave de entendimento,
chave pessoal e intransferível, corpo vivido. O corpo do outro é algo, no
máximo, familiar, mas é por meu corpo percebendo os outros corpos que o mundo
se alonga e se amplia: “um prolongamento
milagroso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de se relacionar com
o mundo”.
Porém,
antes de “saber”, no sentido intelectivo, percebemos, e a percepção é nosso
primeiro contato com as coisas. Antes do pensamento elaborado há a
sensibilidade, um contato primário muito rejeitado na sociedade contemporânea.
Sociedade que sobrevive às custas de não ser percebida, para ser apenas
consumida, para ter seus danos nos corpos validados pela ciência.
Entre o
chamado mundo adulto, que despreza o encantamento pueril da criança e o mundo
da criança, ainda na presença do susto, alumbramento diante das coisas (corpo
para sentir), existe uma ponte chamada poesia. Não à toa, Octavio Paz escolheu
dois símbolos como o princípio e o fim da linguagem humana: o abraço dos corpos
e a metáfora poética: “No primeiro: união
da sensação e da imagem, o fragmento apreendido como cifra da totalidade e a
totalidade repartida nas carícias que transformam o corpo numa fonte de
correspondências instantâneas. Na segunda: fusão do som e do sentido, núpcias
do inteligível e do sensível.”
A poesia
de Casé Lontra Marques, em O som das coisas
se descolando, situa-se nessa ponte, onde o inteligível e o sensível se
encontram. Casé Lontra Marques constrói os poemas com as imagens e os elementos
dos corpos, aludindo ou fazendo referências, amiúde, aos termos da biologia e
contrapondo a angústia à paz na mesma correlação que contrapõe vida orgânica à
vida inorgânica: “Nada que respira
perdura em paz”.
Há uma
fluência de veias funcionando, uma delicadeza de arrepio de poros:
“Nunca inerte, a delicadeza
(pulsando)
se faz deque: sobretudo
quando algum grão
de coragem
chega
na garganta – e aí não para,
ainda
que tampouco
se apresse.”
As
palavras são escolhidas com o cuidado de quem conhece o trajeto sensorial da
poesia. Aludir ao paladar enquanto o verso trai o senso comum, ao mesmo tempo que
a sonoridade, dedicadamente trabalhada, chega aos ouvidos. Concomitante, uma
imagem visual feita de absurdos se nos dá, mas já não é mais absurda, e nos cai
perfeitamente. Algo anterior ao que valorizamos como entendimento percebe,
sente:
“Em hora arredia,
arar o que mais arde:
oceano
mordido pela maçã
da face.”
A atenção
é constante sobre a saliva, o sangue, o fôlego, a carne, os ossos, a
precariedade e a sujeição do ser ao tempo. O desejo, no que concorda com os
budistas, é uma grande aflição, a fome não dorme, “sempre insone”. O poeta de O
som das coisas se descolando é atento e observador, cada reação e
sentimento não lhe escapam. Seus elementos vão do micro ao macro, do grão às
galáxias. Casé Lontra Marques trabalha o poema curto, com o mínimo; o que quer
é mesmo esse grão que interfere, à flor da pele.
Por trás
da composição de seus versos, o poeta reflete a existência, dialoga com
informações de vários campos do saber, da filosofia à psicologia, chega à
doença como sintoma: a azia como um
aviso de que não se está vivendo corretamente; a sabedoria ancestral de que “Conhecemos com os pulmões”, esse órgão
da troca inexorável com o exterior: Ar. E, tendo percorrido, nos poemas, as
reflexões que se apoiam em conhecimento intelectual é como se, paradoxalmente,
afirmasse: Eu não sei se é assim, eu sinto que é assim. Do nada saber
conecta-se com o Mistério; não para o alívio, mas para a plenitude. A vida aparece
quase que como um organismo predador e o corpo só pode ser pensado no tempo. É
contra o tempo que se apresenta a linguagem:
“O tempo se debate
quando conseguimos respirar
dentro
de uma
frase.”
O som das coisas se descolando permite
várias leituras, o reino de suas significações é amplo, mas sob qualquer
interpretação, os versos inquietam: “o
que se traga sem trauma?”. Viver é um exercício destemido, principalmente
porque só funciona se há a coragem de mexer dentro do próprio corpo e não fora
dele, no corpo próprio e não no corpo do outro. Da constatação de que fazemos
parte não do equilíbrio, mas da “ordem
arredia do caos” e que o imperativo absoluto é viver, fecundar, o desafio da
compensação: linguagem, poesia, pois a linguagem é necessária, mas a fome é
fluente.
“Que as frases, anonimamente;
que as frases
infeccionem – uma a uma –
sem
desfalcar a fome (aquela
mais fluente que
de fato funda).”
De tudo
se descola uma palavra, como se a palavra fosse a pele das coisas:
“Os objetos – assim como
os substantivos
que deles se soltam – nunca
abdicam
de desobedecer.
suas arestas
os arejam (eu que aprenda
a jamais
me apaziguar).
“O que seria do corpo/ sem o espanto que o
expande?”, pergunta Casé Lontra Marques. Seria a diminuição do corpo, a sua
inutilização, a impossibilidade de sua plenitude – e como vive sem plenitude nossa
sociedade! Os poemas de O som das coisas se
descolando é um convite ao contato com esse espanto e a demonstração de que
a poesia é uma maneira de acessar nossa primeira forma de estar no mundo, nosso
estágio de percepção, as primeiras práticas de nosso aparato
psíquico-biológico. Nossa vida não é toda refletida, nem tudo que acontece
acomete nosso intelecto. É a percepção que revela o mundo pela primeira vez.
A poesia
quer um corpo vivo. Um corpo vivo o suficiente para se alegrar e para sofrer,
para sentir e para tentar entender, também para aceitar que nada entende. Um
corpo vivo o suficiente para celebrar-se e se perceber numa espécie de maldição
com consciência, em carne viva, ruína se formando no tempo e caminhando para a
morte (integração?), vivo o suficiente para ouvir o som das coisas se
descolando.
“Tragédia veloz, trajetória voraz
– inenfaticamente:
aprender a ruir é já ressuscitar.”
***
O som das coisas se
descolando
Casé Lontra Marques
Poesia
Ed. Aves de água
2017
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