quinta-feira, 18 de julho de 2019

Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo – de Pedro Bomba



Por Adriane Garcia


Muita poesia em sessenta páginas: Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo (editora Urutau) traz 23 poemas que mantém o leitor em alerta. Sim, alerta. Da poesia de Pedro Bomba nenhuma palavra pode ser perdida; nelas, no encadeamento dos versos e sentidos, a surpresa, o alumbramento, o susto se tornam parte do jogo da leitura.

O livro, já no primeiro poema, parte da ideia quântica de energia e probabilidade. A palavra é esse “quantum” que desperta outros, motor e criação. O que parece aleatoriedade chega no exato lugar que o poeta premedita, dando a impressão de que todo o caminho trilhado só poderia ter dado ali. Ou não. Na verdade, alquímico e brincante, o poeta poderia ter nos oferecido o resultado que quisesse, mas sempre faz isso de modo inusitado. É esse trabalho que Pedro Bomba utiliza em toda a coletânea, no qual a palavra tem energia suficiente e surpreendente para trazer outra:

aqui instaura-se a imagem microscópica da matéria quân-
tica em escala subfrontal descritas tal qual o fenôme-
no macroscópico diversos casos apontam que a palavra
quântica quer dizer a quantidade na mecânica a palavra
refere-se a uma concordância discreta que a presunção atribui
a certas racionalidades:

1. como a energia de um elétron contido num átomo em repouso
2. como a energia de seu dialeto contido num átomo de meu
pouso

(...)”


Há um descompasso entre o poeta e o mundo. Na “gruta de chauvet” a primeira pintura rupestre registra o homem inconsolável e inconstante. A arte é remédio e sintoma e, também por ela, o poeta registra sua crítica contumaz ao capitalismo. Ao ser que não possui propriedade alguma, a palavra surge como representação – um modo de possuir a si, sua própria história. Os poemas guardam coisas que não temos ou nos foram tiradas e que passam a ser nossas. Em “desenho” A menina indígena desenha sua casa arrastada pelo trator, toda a vida se recria em seu desenho. Tanto a injustiça social quanto a violência contra os vulneráveis permeiam os mesmos versos cujo lirismo alcança imagens de beleza e desconstrução do senso comum:

à margem da br dois quatro sete quilômetro cinco
deita o desenho feito pela criança da aldeia

aqui descansa nossa casa ou a representação dela

observem nesta imagem como olham os animais
são olhos espantados embora estejam de costas
sei pelo cheiro colorido em seus focinhos (...)”


Poeta inquieto, nos versos de Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo, a insaciedade da mente, a busca maníaca pela palavra, pelo verso, pela própria poesia, a necessidade de nominar as coisas, os gestos, os atos se tornam também tema. Não há função alguma para a poesia dentro da engrenagem colocada (eis sua rebelião inata), esta que nos rouba essência; essência que nem chegamos a descobrir qual é:

(…) penso como seria
se a gente não precisasse ser
alguma coisa nessa vida
digo
seria como pensar
se na vida a gente fosse alguma coisa
sem precisar ser (…)

Pedro Bomba lança um olhar para aquilo que se recusa a participar do que está posto, para os que podem ser confundidos com os loucos ou os descartáveis: um homem que dorme no colo de uma estátua ou um pano de chão feito com uma camisa velha. Também para os rebeldes, poetas da existência, como aquele personagem do poema “distraiu jesus e roubou um carro”, uma espécie de Exu, mensageiro que instaura a quebra no cotidiano e a profanação na vida comezinha da cidade. Cidade que tanto pode ser imaginária quanto real, tanto a cidade de origem, quanto a cidade onde se está.

Também sobre a geografia afetiva, o poeta se debruça. Nascido em Aracaju, Sergipe, e hoje vivendo em Belo Horizonte, Pedro Bomba traça seu mapa tecendo referências à cidade natal e aos “viadutos” internos; pontes que o ligam aos lugares para onde foi. O poema “mapa de uma cidade impregnada” é cheio de lembrança e saudade:

(…) 2. viver vinte e sete anos dentro da cidade que te levou ao país
pela procura de algo de alguma capital de algum mundo no
interior da poesia. (...)

Ler Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo é ficar por instantes absorvido pelo poder da poesia. Um livro de encontro, desses que encontramos a humanidade de alguém na nossa humanidade.

No mundo quântico, não existe separação e a forma é uma espécie de ilusionismo dos sentidos; mas sem os sentidos, não haveria o que chamamos de mundo, apenas um mar de átomos. O mundo precisa de nós para ser mundo? Se tudo que existe é resultado de nossas abstrações (nem mesmo o dinheiro existe – crença na qual todos “combinaram” acreditar), por que vivemos tão miseravelmente e não criamos abstrações melhores? A poesia é um desses fazeres inúteis que procura dar conta dos nossos sentidos duvidosos, dos nossos mistérios profundos, daquilo que não sabemos – linguagem – se é maldição ou bênção.

Pedro Bomba contribui com sua rebeldia e estudo, inversão e potência, irreverência e refinamento, emprestando à palavra sua mente, corpo e voz. Poesia para ler e reler.



morar na literatura

resolvemos o problema com a dívida do banco
decidimos ontem que não iremos pagar

faremos poemas eletrônicos nos extratos e saldos
e depositaremos nos caixas

os funcionários lerão os versos sem fundos
nada escrito nada nadinha só viagem da minha cabeça

resolvemos ontem que vamos morar juntos no mesmo barco
eu confessei sobre meus medos e lemes e cais meus sais

falei de quando quebrei o braço três vezes
e como um empurrão é uma coisa potente

falei do murro na cara que levei do ex namorado da menina
que eu me apaixonei na escola, os óculos caíram
e eu não vi mais nada

o bom de apanhar numa briga é que para o resto da vida
a possível vingança será instaurada

mas eu prefiro as noites e os encontros
o prato que se come frio é demais para os meus sentimentos

resolvemos correr riscos e eu opto por um apito
ao invés do medo
o som do apito vai e volta

você chamou atenção
isso que vai e volta é um boomerang seu doido

pode ser também o estado permanente
dos últimos três anos afirmei
o qual faço poemas sobre coisas
que não existem palavras revuntáveis

coisas que eu vou longe demais
e no fim volto como se estivesse recitando poemas
para uma multidão de pessoas

elas me olham eu as vejo
e quero que todas elas te conheçam e
criem carinho por sua fome contínua
por preferir verde e roxo ao invés de propriedade privada

resolvemos morar na literatura um do outro
é isso que esse poema quer dizer

é algo gravíssimo, um erro, um equívoco
um descuido literário

morar na literatura um do outro é como confiar no vento
quase ninguém consegue enxergar, mas é óbvio que está aqui
vejam como balançam os versos de meu cabelo.”


***

Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo
Pedro Bomba
Poesia
Editora Urutau
2018


Nenhum comentário:

Postar um comentário