Por Adriane Garcia
Nenhum espelho reflete seu
rosto (editora
Arribaçã), de Rosângela
Vieira Rocha,
discute as relações tóxicas, o narcisismo, a psicopatia doméstica
e a importância da construção de uma identidade centrada no
autovalor.
A narradora, Helen, uma
joalheira e designer na faixa dos quarenta anos, está preparando sua
primeira coleção, quando recebe um misterioso telefonema. Deste
telefonema em diante, terá que pensar no homem que tanto fez para
esquecer: Ivan Hernández, um argentino que conheceu na internet e
com quem manteve um relacionamento virtual.
Apesar de não ser exclusivo
de um gênero, o narcisismo apresenta-se mais comumente nos homens,
que valorizam qualidades como dominação, violência e controle,
educados pelo machismo e pela masculinidade tóxica. Engana-se quem
pensa que o termo psicopata aplica-se somente aos modelos
hollywoodianos de serial-killers;
na verdade, é raro que alguém já não tenha tido contato com um
psicopata doméstico ou integrado, pois estão mais perto do que
costumamos imaginar. Saber que existem, dentro de uma “normalidade”,
aumenta nossas chances de reconhecê-los.
Enquanto o serial-killer
usa da violência física para dar fim à vida de suas vítimas, o
psicopata doméstico utiliza inúmeros e conhecidos subterfúgios
para destruir seu alvo (podendo
levar ao suicídio):
sedução, desprezo, confusão, implacabilidade. Conhece e aplica uma
coleção de abusos psicológicos. Como
um habilidoso jogador, conduz
sua vítima a um turbilhão emocional de estilhaçamento, enquanto
lhe suga
todas as energias (muitas vezes, financeiramente). Ao não conseguir
ver o próprio rosto, o narcisista procura se ver no rosto alheio;
porém, não suporta nada que seja inteiro e que se apresente melhor
do que ele
mesmo. O narcisista é
também um grande invejoso.
É neste contexto que
Rosângela Vieira
Rocha nos faz
acompanhar sua personagem. Temos apenas o relato em primeira pessoa,
mas
a existência de uma segunda vítima faz com que o leitor não duvide
de Helen. E é ouvindo Helen que o leitor imagina os horrores pelos
quais a segunda vítima passou, pois seu estado é ainda pior que o
da protagonista.
Não há cura conhecida para
um psicopata. Tudo que ele aprender em tratamento será usado como
nova habilidade contra suas vítimas. A única salvação é
interromper completamente, e o mais cedo possível, o contato, a
despeito da força exercida pelo narcisista que é a de afastar e
trazer para si, conhecendo de antemão (eles se preparam muito bem)
as fraquezas do alvo.
Com uma narração dinâmica e
informações curiosas
sobre a gemologia e o setor joalheiro, alternando entre o presente da
narradora de criar a coleção de joias e a correspondência
eletrônica pela qual dá a saber sobre Ivan Hernández, Nenhum
espelho reflete seu rosto
cria um ambiente em que o leitor também se torna uma voz gritando
para sua protagonista: – Saia daí!
“A varanda do novo
apartamento não era ao ar livre, como a anterior. Tinha uma porta
que a separava do quarto de hóspedes, que estava desocupado, e podia
ser trancada, mas possuía janelas, com persianas. Fumar era mais
difícil nesse local, mesmo abrindo totalmente as janelas. Todas as
vezes que o fazia, depois que apagava o cigarro e abria a porta,
mesmo se estivesse na cozinha, Ivan forçava uma tosse e reclamava.
Comecei a me sentir extremamente mal e acabei não fumando mais na
varanda. Descia e ia até à rua quando podia, mas naqueles dias
chovia muito. Senti-me lograda. Se era para não ser usado, por que
me presenteara com o isqueiro de rodocrosita? Que piada de mau gosto
teria sido aquela?
A atmosfera entre nós
tinha sido de alguma maneira modificada, sem eu entender as razões.
Não o tempo todo, para ser exata, mas algo me fazia trancar o
maxilar e selecionar o que devia ou não dizer. Ivan se mostrava
imperturbável, mesmo quando lhe dizia que ficaria no máximo uma
semana em Buenos Aires, que não tinha ido para passear e sim para
ajudar numa cirurgia que não houve.
Eu usava com frequência um
vestido estampado, rodado e muito prático. Em certo momento ele
disse que era feio, pondo defeito na combinação das cores. Fazia
essas observações em meio a conversas longas sobre outros temas,
como se tivessem pouca importância.”
(p. 191/192)
***
Nenhum espelho reflete seu
rosto
Rosângela Vieira Rocha
Romance
Editora Arribaçã
2019
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