Por
Adriane Garcia
elemento
em fúria
indignar-me
riscar o
fósforo
centelha
restauradora
em campos
de figos
e fel
É com
esse poema, acima, que o livro tempo em fúria, de Dalila Teles Veras,
se inicia. Na contracapa, outro poema, Motes, diz a que veio:
a rotina exige
a indignação ordena
o afeto impele
a criação impõe
motores
A
publicação de tempo em fúria é uma resposta que a poeta dá ao seu tempo –
este específico: 2018/2019. Resposta urgente de uma poesia colada na realidade,
no acontecimento, no cotidiano, na vida humana enquanto fenômeno coletivo,
social e político.
Com
poemas construídos a partir de uma linguagem objetiva – uma característica da
poesia de Dalila Teles Veras – raro o uso das palavras ditas “poéticas” –
tempo em fúria faz ponte direta com o leitor, sem que ele precise ser um
“iniciado”, quiçá “iluminado”, em poesia. Nesse sentido, a forma também diz do
conteúdo: Dalila é uma militante da democracia. E a palavra não deve criar
percalços, deve muito mais comunicar-se com o maior número de pessoas, a fim de que
a poesia também seja democratizada. O desafio, vencido pela poeta, é justamente
oferecer uma poesia simples e complexa, trabalhada para ser acessível, como
quem bem sabe a lição de Graciliano Ramos: “a palavra não foi feita
para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Os poemas
de tempo em fúria relacionam-se diretamente com a eleição presidencial
no Brasil de 2018 e o primeiro ano de governo, 2019. A eleição foi marcada pelo
uso massivo das fake news, investigadas e denunciadas ao Tribunal Superior
Eleitoral; pela participação do atual Ministro da Justiça, à época juiz, na
prisão do principal adversário do presidente eleito, agindo de modo parcial e fora
dos ritos legais; pela ação da mídia, construindo, ao longo de mais de uma
década, toda uma narrativa de corrupção contra o Partido dos Trabalhadores. Como se não bastasse, o problema do pouco tempo de propaganda política do candidato de extrema-direita na TV ficou resolvido quando levou uma misteriosa facada no abdômen e tomou conta dos noticiários, tirando-o providencialmente dos debates a que já não ia. Esses fatores combinados, mais a crise econômica (em muito
fabricada pelos opositores ao governo de Dilma Rousseff), além do
aumento da expectativa de crescimento individual gerada pelo crescimento econômico
que vinha constante e em determinado momento decrescia, produziram uma crise
política que prejudicou até mesmo partidos de direita e alçou Jair Messias Bolsonaro ao poder.
Sim, a
poesia pode falar de tudo. Dalila fala desse monstro, o fascismo, que
saiu do armário de muitas famílias brasileiras, principalmente da tal orgulhosa
“gente de bem”, em cujos preconceitos o discurso de ódio do capitão expulso do Exército
caiu como uma luva. Fala da falta de competência desse governo, dos seus crimes
ambientais, da banalidade da sua violência, da sua omissão, da sua corrupção,
da parcialidade de seu servo juiz, dos seus ministros fundamentalistas
religiosos cristãos e ensandecidos. Dalila também fala da resistência,
da esperança de que a História os coloque em seus devidos lugares: a obscura
toca dos ratos.
A edição
ainda oferece uma segunda parte chamada “uma estação no purgatório”. Nesse
conjunto, cuja epígrafe não poderia deixar de ser de Arthur Rimbaud, a
poeta nos conta da condição de acompanhantes e pacientes nos hospitais, esses ambientes
antissépticos, alienígenas, cheios de aparelhos e barulhos estranhos, procedimentos
invasivos e tantas vezes autoritários, onde estamos completamente vulneráveis
com nossos corpos.
Um livro
necessário, de uma poeta que domina o verso e registra sua posição: “ditadura,
nunca mais... tortura, nunca mais... generais, nunca mais, nunca mais...
para que
fique justificada a publicação dos poemas deste tempo em fúria, como um grito,
para além dos meus umbrais.”
recusa
há qualquer coisa
de interlúdio
nesta ópera
trágica/bufa
sem libreto
só prelúdio
para a qual
não fui convidada
não ouço
não quero
não vou
***
tempo em fúria
Dalila Teles Veras
Poesia
Alpharrabio Edições
2019
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