quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Todos que conheço são suicidas, de Cristiano Silva Rato






Por Adriane Garcia


Certa vez, fui a uma apresentação de SLAM, em um evento que trazia vozes da periferia, e ouvi um poema que contava o cotidiano e a dor de uma filha cujo pai era um presidiário. A menina trazia uma dor real, não era ali o “fingidor” de Pessoa. Era a pessoa, a própria.

Lugar de fala” é um conceito que tem causado bastante irritação e revolta, sobretudo para aqueles que detinham a palavra com exclusividade e agora se veem dividindo espaços e, vez em quando, até cachê.  Pessoas que, por exemplo, brancas, sempre se arrogaram o direito de dizer o que é ser negro no Brasil, como verdade absoluta, e agora se veem contestadas pelas – que audácia – pessoas negras (!).

Lugar de fala” também é um conceito enriquecedor para os que têm ouvidos para ouvir, e ouvem. Aqueles que foram silenciados e tiveram seus pontos de vista emulados por outros são – até por isso – os donos da novidade. Não novidade no sentido supérfluo e banal da palavra, mas novidade na sua raiz primeira: o novo (que é o velho oculto). Ouvir esses pontos de vista (lugar de escuta) acrescenta-nos o outro lado da moeda; afinal, o mundo branco, macho, hetero, patriarcal, cristão não é um mundo completo e essa versão já temos.

Em Todos que conheço são suicidas, Cristiano Silva Rato traz um livro cujos poemas são, em sua maioria, confessionais. Entre as dores dos fracassos amorosos, a voz de um eu-lírico que tem no seu cotidiano a familiaridade com os tiros, com a violência policial, com o Estado liberal ocultando na meritocracia o genocídio da população negra, com a morte prematura dos seus amigos e a angústia permanente de saber que pode ser o próximo. No título o poeta já dá a referência sobre os que, lançados à categoria de “cidadãos” de segunda classe, são induzidos ao autoextermínio.

De dentro da realidade dos locais (e do corpo negro) em que a lei é aplicada apenas para prosseguir no antigo projeto brasileiro de exterminar a população negra, a vida é de alta pressão (com alterações da pressão arterial e maior risco cardíaco, inclusive). No poema introdutório, toda a carga da denúncia e a explicitação do sentimento dessa vivência:

Sobre uma pergunta

Ainda não cortei os pulsos.
Você está bem?
Eu
ainda
não cortei.

O poeta usa, em poemas vários, versos inequívocos para demonstrar o estrago que o racismo faz no corpo negro, transformando-o numa espécie de campo minado: “e no peito/ um pino/ arrebento”; “um sentimento de desprezo por mim”; “em mim tudo está trincado”; “só um dia/sem nada temer”; “em nome do povo,/ pisoteiam meu corpo”; “Sinto um ódio profundo em mim”; “sem poesia, longe das vidas interrompidas”; “o amanhã chega,/ com a guilhotina enfileirada”; “aguarda o julgamento dos bancos./Dos brancos”.

Todos que conheço são suicidas traz um tom de “in memorian” e é dedicado àqueles que foram induzidos pela sociedade e pelo Estado a se matar. Mas também é ofertado aos que completam mais um ano de vida.

Ah! Por que querem que eu fale sobre o ódio?” Pergunta o poeta que deseja – como tantos o fazem – apenas “dizer coisas ridículas”. Porém, a luta de quem se manifesta deste lugar que Cristiano fala é outra.

Ainda assim, mesmo em guerra, um poeta sempre nos descortina o pôr do sol:

E quem acredita em poesia
se ela não possui
sua freguesia?

Bem, à tarde, os prédios
escondem o pôr do sol.


***
Todos que conheço são suicidas
Cristiano Silva Rato
Poesia
Ed. Caos e Letras
2019






6 comentários:

  1. Estou ansiosa pela chegada do meu exemplar. Muito boa a resenha. Parabéns!

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  2. Um convite à leitura. Essa dor precisa ser (re)conhecida. Parabéns pela resenha.

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    1. Olá, querida Virgínia. Sim, é preciso ouvir sobre isso, de quem vive e elabora, com arte, isso.

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  3. Desde Machado de Assis, Cruz e Sousa, a Carlos Machado e Elisa Lucinda, temos vozes negras na poesia do Brasil. Com certeza Machado de Assis não passou pela violência policial e estes dois últimos também não. Mas há muitas vozes poéticas por aí querendo ser ouvidas. Precisamos dar ouvidos a elas.

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