Por Adriane Garcia
Certa vez,
fui a uma apresentação de SLAM, em um evento que trazia vozes da
periferia, e ouvi um poema que contava o cotidiano e a dor de uma filha cujo
pai era um presidiário. A menina trazia uma dor real, não era ali o “fingidor”
de Pessoa. Era a pessoa, a própria.
“Lugar
de fala” é um conceito que tem causado bastante irritação e revolta,
sobretudo para aqueles que detinham a palavra com exclusividade e agora se veem
dividindo espaços e, vez em quando, até cachê.
Pessoas que, por exemplo, brancas, sempre se arrogaram o direito de
dizer o que é ser negro no Brasil, como verdade absoluta, e agora se veem
contestadas pelas – que audácia – pessoas negras (!).
“Lugar
de fala” também é um conceito enriquecedor para os que têm ouvidos para
ouvir, e ouvem. Aqueles que foram silenciados e tiveram seus pontos de vista
emulados por outros são – até por isso – os donos da novidade. Não novidade no
sentido supérfluo e banal da palavra, mas novidade na sua raiz primeira: o novo
(que é o velho oculto). Ouvir esses pontos de vista (lugar de escuta)
acrescenta-nos o outro lado da moeda; afinal, o mundo branco, macho, hetero, patriarcal, cristão não é um mundo completo e essa versão já temos.
Em Todos
que conheço são suicidas, Cristiano Silva Rato traz um livro cujos
poemas são, em sua maioria, confessionais. Entre as dores dos fracassos
amorosos, a voz de um eu-lírico que tem no seu cotidiano a familiaridade com os
tiros, com a violência policial, com o Estado liberal ocultando na meritocracia
o genocídio da população negra, com a morte prematura dos seus amigos e a angústia
permanente de saber que pode ser o próximo. No título o poeta já dá a referência
sobre os que, lançados à categoria de “cidadãos” de segunda classe, são
induzidos ao autoextermínio.
De dentro
da realidade dos locais (e do corpo negro) em que a lei é aplicada apenas para
prosseguir no antigo projeto brasileiro de exterminar a população negra, a vida
é de alta pressão (com alterações da pressão arterial e maior risco cardíaco,
inclusive). No poema introdutório, toda a carga da denúncia e a explicitação do
sentimento dessa vivência:
Sobre uma
pergunta
Ainda não
cortei os pulsos.
Você está
bem?
Eu
ainda
não
cortei.
O poeta
usa, em poemas vários, versos inequívocos para demonstrar o estrago que o
racismo faz no corpo negro, transformando-o numa espécie de campo minado: “e
no peito/ um pino/ arrebento”; “um sentimento de desprezo por mim”; “em mim
tudo está trincado”; “só um dia/sem nada temer”; “em nome do povo,/ pisoteiam
meu corpo”; “Sinto um ódio profundo em mim”; “sem poesia, longe das vidas
interrompidas”; “o amanhã chega,/ com a guilhotina enfileirada”; “aguarda o
julgamento dos bancos./Dos brancos”.
Todos que
conheço são suicidas traz um tom de “in memorian” e é dedicado
àqueles que foram induzidos pela sociedade e pelo Estado a se matar. Mas também
é ofertado aos que completam mais um ano de vida.
“Ah!
Por que querem que eu fale sobre o ódio?” Pergunta o poeta que deseja –
como tantos o fazem – apenas “dizer coisas ridículas”. Porém, a luta de
quem se manifesta deste lugar que Cristiano fala é outra.
Ainda
assim, mesmo em guerra, um poeta sempre nos descortina o pôr do sol:
E quem
acredita em poesia
se ela
não possui
sua
freguesia?
Bem, à tarde,
os prédios
escondem
o pôr do sol.
***
Todos que
conheço são suicidas
Cristiano
Silva Rato
Poesia
Ed. Caos
e Letras
2019
Estou ansiosa pela chegada do meu exemplar. Muito boa a resenha. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Irka, querida.
ExcluirUm convite à leitura. Essa dor precisa ser (re)conhecida. Parabéns pela resenha.
ResponderExcluirOlá, querida Virgínia. Sim, é preciso ouvir sobre isso, de quem vive e elabora, com arte, isso.
ExcluirDesde Machado de Assis, Cruz e Sousa, a Carlos Machado e Elisa Lucinda, temos vozes negras na poesia do Brasil. Com certeza Machado de Assis não passou pela violência policial e estes dois últimos também não. Mas há muitas vozes poéticas por aí querendo ser ouvidas. Precisamos dar ouvidos a elas.
ResponderExcluirSim. Muitas vozes e cada vez mais! Ainda bem.
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