Por
Adriane Garcia
O
livro Terno
novo,
de André
Luiz Pinto,
se apresenta, já no projeto gráfico, sóbrio. Um livro vestido de
terno (não um terno velho, mas um terno novo), que poderia ser
soturno, preto, marrom, cinza, mas é discretamente verde. A capa
(edição da 7 Letras) traduz bem a ambiguidade da palavra terno,
termo bem escolhido pelo poeta para compor não só o título, mas
para acolher parte das reflexões feitas em seus poemas. Terno,
palavra que pode pertencer à classe dos substantivos, dos numerais,
ou dos adjetivos.
Os
dilemas que atravessam essa coletânea podem ser abarcados pelos
sentidos vários de um simples vocábulo dissílabo. Terno, na mão
de um hábil poeta, se torna uma palavra que é um pequeno poema de
si própria.
Assim,
é o eu-lírico que se confessa terno, afetuoso e precisado de afeto,
o eu-lírico não só capaz da ternura, mas sensível a ponto de
saber que para a poesia “Um
mínimo de lastro de vento é o ponto de partida”.
Não se trata simplesmente de um terno: trata-se de um terno novo.
Uma nova tentativa, ou uma nova reincidência.
“Reconheça
tudo
é só afeto
até
porque
detrás
da coxia
dezenas
de famigerados seres
relutam
em dizer
toda
uma manhã que nasce.
Toda
uma manhã – durante a noite.”
Terno
é também palavra para dizer da frustração da vida, da inadequação
de viver sob um sistema econômico e político onde não há espaço
para a ternura. O poeta vê uma coisa no lugar de outra, sabe que
“Viver
é sempre um delírio”,
e mesmo aceitando jogar o jogo, tem dificuldade de se vestir como
manda o figurino. O acerto de três números, casas ou pontos em
certos jogos leva o participante a acertar algo, mas a não alcançar
algo maior. Nem a quadra, nem a quina. Terno é o quase. É uma
espécie de prêmio de consolação. Em Terno
novo,
André
Luiz Pinto
expõe a angústia de não se poder viver plenamente nem a poesia,
nem a continuidade dos sonhos de juventude, quando “minha
vida já teve um destino maior”.
E o terno novo se torna a materialização desse prêmio que se
ganhou pela metade.
Fim
das contas – ou para pagar as contas –, o poeta veste a roupa de
três peças: paletó, colete, calças. E como claustrofobia pouca é
bobagem, acrescenta-se uma gravata. O poeta não é mais poeta, ou o
é apenas do lado de dentro, discretamente verde. Quem olha de fora,
vê o homem crescido, cooptado. Internamente, insubordinado, ele
continua a se perguntar a inútil e bela questão: De onde vem a
poesia? Como apreender o efêmero? O que acontece no espírito para
despertá-la? Sabendo que o próprio surgimento do poema é um
mistério e que o artefato da poesia só vai se realizar se ele mesmo
(o poema) o quiser, em contraponto com a sociedade tecnocrata de
padrões, metas, ordens e manuais de instrução para se construir a
infelicidade.
A
poesia entra em constante conflito com as normas sociais e o poeta
não pode fugir deste pensamento que renitentemente assoma à
lucidez: Nada
disso vale/ a pena: moedas, salário/o bárbaro e o convívio.”
Toda a poesia é incerteza e o eu-lírico de Terno
novo
pensa a condição humana, recusa-se, por suposto conforto, a abraçar
falsos deuses. Declara “Não
trago fé alguma”,
exceto essa: “é
preciso ter a fé de que nada vai dar certo/ para escrevermos”.
Então,
com essa fé, escreve, e seus temas vão desde a procura do verso até
as questões dos relacionamentos, da crítica social, das despedidas,
da morte. No poema Em
família,
fala de um neto fora da árvore genealógica, acolhido pela ternura.
No velório da avó, se vê rechaçado pela família biológica como
se não pertencesse àquele lugar:
“Agora
veio Cláudia
em
púlpito
querendo
convencer
que
os netos não compareceram?
Que
neto não compareceu?
Sequer
tinham ideia sobre quem era.
Vou
lhes contar:
Leda
adorava pôr panos quentes
no
batente da casa, no podre
das
famílias, debatíamos
sobre
isso
até
porque
(deu
pra notar)
dou
a
mínima.”
Terno
novo
é um livro muito bonito, cuja leitura nos chama sempre um pouco
mais. Traz uma poesia tecnicamente trabalhada, versos limpos, uma
exatidão por não conter supérfluos – e uma expressão clara, sem
hermetismos. Mas há ainda aquele algo que é o que realmente nos faz
gostar de poesia. Aquele algo que está nos silêncios, na maneira
secreta com que os versos se ditaram. Esse algo é intraduzível.
Paul
Valéry
afirmava que “O
poder do verso é consequência de uma harmonia indefinível entre o
que ele diz e o que ele é”.
W.
H. Auden,
sobre a afirmação de Valéry
completava dizendo que “a
impossibilidade de definir a relação juntamente com a
impossibilidade de negá-la, constitui a essência da frase poética”.
A poesia de André
Luiz Pinto
tem essa harmonia.
RETORNO
Olhe
a tua volta: as raízes
das
árvores foram arrancadas
até
não sobrar nada.
Nem
o silêncio que tilintava
das
folhas, na laguna de uma poça
a
fauna microscópica não sobrou.
Olhe
a tua volta. Silêncio
do
rumorejo das águas a preamar.
Olhe
ao redor: tudo explode
no
mesmo lugar, não há razão
para
certezas, o mundo está em greve.
Olhe
mais um pouco, contemple
o
relicário de um ovo, nunca pergunte
haverá
misericórdia? Olhe, peço de novo
aquele
ovo, a brisa te envenena
acariciando
os cabelos. Olhe na hora
do
martírio as contorções do corpo.
Olhe
bem de perto, você aguenta.
(p.
14)
***
Terno
novo
André
Luiz Pinto
Poesia
Ed.
7 Letras
2012
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