segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Terno novo, de André Luiz Pinto





Por Adriane Garcia


O livro Terno novo, de André Luiz Pinto, se apresenta, já no projeto gráfico, sóbrio. Um livro vestido de terno (não um terno velho, mas um terno novo), que poderia ser soturno, preto, marrom, cinza, mas é discretamente verde. A capa (edição da 7 Letras) traduz bem a ambiguidade da palavra terno, termo bem escolhido pelo poeta para compor não só o título, mas para acolher parte das reflexões feitas em seus poemas. Terno, palavra que pode pertencer à classe dos substantivos, dos numerais, ou dos adjetivos.


Os dilemas que atravessam essa coletânea podem ser abarcados pelos sentidos vários de um simples vocábulo dissílabo. Terno, na mão de um hábil poeta, se torna uma palavra que é um pequeno poema de si própria.


Assim, é o eu-lírico que se confessa terno, afetuoso e precisado de afeto, o eu-lírico não só capaz da ternura, mas sensível a ponto de saber que para a poesia “Um mínimo de lastro de vento é o ponto de partida”. Não se trata simplesmente de um terno: trata-se de um terno novo. Uma nova tentativa, ou uma nova reincidência.


Reconheça
tudo é só afeto
até porque
detrás da coxia
dezenas de famigerados seres
relutam em dizer
toda uma manhã que nasce.
Toda uma manhã – durante a noite.”




Terno é também palavra para dizer da frustração da vida, da inadequação de viver sob um sistema econômico e político onde não há espaço para a ternura. O poeta vê uma coisa no lugar de outra, sabe que “Viver é sempre um delírio”, e mesmo aceitando jogar o jogo, tem dificuldade de se vestir como manda o figurino. O acerto de três números, casas ou pontos em certos jogos leva o participante a acertar algo, mas a não alcançar algo maior. Nem a quadra, nem a quina. Terno é o quase. É uma espécie de prêmio de consolação. Em Terno novo, André Luiz Pinto expõe a angústia de não se poder viver plenamente nem a poesia, nem a continuidade dos sonhos de juventude, quando “minha vida já teve um destino maior”. E o terno novo se torna a materialização desse prêmio que se ganhou pela metade.


Fim das contas – ou para pagar as contas –, o poeta veste a roupa de três peças: paletó, colete, calças. E como claustrofobia pouca é bobagem, acrescenta-se uma gravata. O poeta não é mais poeta, ou o é apenas do lado de dentro, discretamente verde. Quem olha de fora, vê o homem crescido, cooptado. Internamente, insubordinado, ele continua a se perguntar a inútil e bela questão: De onde vem a poesia? Como apreender o efêmero? O que acontece no espírito para despertá-la? Sabendo que o próprio surgimento do poema é um mistério e que o artefato da poesia só vai se realizar se ele mesmo (o poema) o quiser, em contraponto com a sociedade tecnocrata de padrões, metas, ordens e manuais de instrução para se construir a infelicidade.


A poesia entra em constante conflito com as normas sociais e o poeta não pode fugir deste pensamento que renitentemente assoma à lucidez: Nada disso vale/ a pena: moedas, salário/o bárbaro e o convívio.” Toda a poesia é incerteza e o eu-lírico de Terno novo pensa a condição humana, recusa-se, por suposto conforto, a abraçar falsos deuses. Declara “Não trago fé alguma”, exceto essa: “é preciso ter a fé de que nada vai dar certo/ para escrevermos”.


Então, com essa fé, escreve, e seus temas vão desde a procura do verso até as questões dos relacionamentos, da crítica social, das despedidas, da morte. No poema Em família, fala de um neto fora da árvore genealógica, acolhido pela ternura. No velório da avó, se vê rechaçado pela família biológica como se não pertencesse àquele lugar:


Agora veio Cláudia
em púlpito
querendo convencer
que os netos não compareceram?
Que neto não compareceu?
Sequer tinham ideia sobre quem era.
Vou lhes contar:
Leda adorava pôr panos quentes
no batente da casa, no podre
das famílias, debatíamos
sobre isso
até porque
(deu pra notar)
dou
a mínima.


Terno novo é um livro muito bonito, cuja leitura nos chama sempre um pouco mais. Traz uma poesia tecnicamente trabalhada, versos limpos, uma exatidão por não conter supérfluos – e uma expressão clara, sem hermetismos. Mas há ainda aquele algo que é o que realmente nos faz gostar de poesia. Aquele algo que está nos silêncios, na maneira secreta com que os versos se ditaram. Esse algo é intraduzível.


Paul Valéry afirmava que “O poder do verso é consequência de uma harmonia indefinível entre o que ele diz e o que ele é”. W. H. Auden, sobre a afirmação de Valéry completava dizendo que “a impossibilidade de definir a relação juntamente com a impossibilidade de negá-la, constitui a essência da frase poética”. A poesia de André Luiz Pinto tem essa harmonia.


RETORNO


Olhe a tua volta: as raízes
das árvores foram arrancadas
até não sobrar nada.
Nem o silêncio que tilintava
das folhas, na laguna de uma poça
a fauna microscópica não sobrou.
Olhe a tua volta. Silêncio
do rumorejo das águas a preamar.
Olhe ao redor: tudo explode
no mesmo lugar, não há razão
para certezas, o mundo está em greve.
Olhe mais um pouco, contemple
o relicário de um ovo, nunca pergunte
haverá misericórdia? Olhe, peço de novo
aquele ovo, a brisa te envenena
acariciando os cabelos. Olhe na hora
do martírio as contorções do corpo.
Olhe bem de perto, você aguenta.


(p. 14)




***
Terno novo
André Luiz Pinto
Poesia
Ed. 7 Letras
2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário