“O coração do poeta é um
hospital
Onde morreram todos os
doentes.”
Por
Adriane Garcia
Delícia
que foi voltar a este Eu, de Augusto dos Anjos, depois de três décadas. Poder sorvê-lo muito melhor que quando jovem, com mais maturidade para
compreender temas e forma.
Seus
versos, tão meticulosamente trabalhados e cheios de musicalidade, falam da
precariedade humana, da efemeridade da matéria. Há um entendimento panteísta do
universo, uma integração de tudo, na dança cósmica em que se insere a vida e que
inclui, por necessário, a morte: uma obsessão em seus versos.
Augusto
dos Anjos traz um pessimismo elevado em sua poesia. A morte e a
finitude fazem com que a vida humana não encontre sentido. A saída, afirmada em
sua obra, é a memória e a arte; de resto, tudo vai parar no festim dos vermes:
Budismo
moderno
Tome, Dr.,
esta tesoura, e... corte
Minha
singularíssima pessoa.
Que
importa a mim que a bicharia roa
Todo o
meu coração, depois da morte?!
Ah! Um
urubu pousou na minha sorte!
Também,
das diatomáceas da lagoa
A
criptógama cápsula se esboa
Ao contato
de bronca destra forte!
Dissolva-se,
portanto, minha vida
Igualmente
a uma célula caída
Na aberração
de um óvulo infecundo;
Mas o
agregado abstrato das saudades
Fique
batendo nas perpétuas grades
Do último
verso que eu fizer no mundo!
O poeta
destaca em sua poesia a força dos instintos, a característica animalesca do ser
humano na luta ingrata para vencer sua natureza. É uma poesia impregnada de
filosofia. Estudioso e erudito, trouxe para seus versos termos oriundos de
diversas ciências, com destaque para a Biologia. Deixou o legado do antilirismo
e da antipoesia de maneira original, ampliando as possibilidades do gênero e
inovando a linguagem poética. Eu foi seu único livro publicado em vida,
em 1912. Identificado como pré-modernista na História da Literatura Brasileira,
Augusto dos Anjos foi um criador singular.
Soneto
Ao meu primeiro filho
nascido morto
com sete meses incompletos
2 fevereiro 1911
Agregado
infeliz de sangue e cal,
Fruto
rubro de carne agonizante,
Filho da
grande força fecundante
De minha
brônzea trama neuronial,
Que poder
embriológico fatal
Destruiu,
com a sinergia de um gigante,
Em tua
morfogênese de infante
A minha
morfogênese ancestral?!
Porção de
minha plásmica substância,
Em que lugar
irás passar a infância,
Tragicamente
anônimo, a feder?!...
Ah!
Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente
dissolvido
Na noumenalidade
do NÃO SER!
Debaixo
do tamarindo
No tempo
de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma
vela fúnebre de cera,
Chorei
bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos
trabalhos!
Hoje,
esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda,
como uma caixa derradeira,
O passado
da Flora Brasileira,
E a
paleontologia dos Carvalhos!
Quando
pararem todos os relógios
De minha
vida, e a voz dos necrológios
Gritar
nos noticiários que eu morri,
Voltando
à pátria da homogeneidade,
Abraçada
com a própria Eternidade
A minha
sombra há de ficar aqui!
***
Eu
Augusto dos Anjos
Poesia
Edição Círculo do Livro
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