sábado, 22 de fevereiro de 2020

Eu, de Augusto dos Anjos




“O coração do poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.”

Por Adriane Garcia

Delícia que foi voltar a este Eu, de Augusto dos Anjos, depois de três décadas. Poder sorvê-lo muito melhor que quando jovem, com mais maturidade para compreender temas e forma.

Seus versos, tão meticulosamente trabalhados e cheios de musicalidade, falam da precariedade humana, da efemeridade da matéria. Há um entendimento panteísta do universo, uma integração de tudo, na dança cósmica em que se insere a vida e que inclui, por necessário, a morte: uma obsessão em seus versos.

Augusto dos Anjos traz um pessimismo elevado em sua poesia. A morte e a finitude fazem com que a vida humana não encontre sentido. A saída, afirmada em sua obra, é a memória e a arte; de resto, tudo vai parar no festim dos vermes:

Budismo moderno

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esboa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

O poeta destaca em sua poesia a força dos instintos, a característica animalesca do ser humano na luta ingrata para vencer sua natureza. É uma poesia impregnada de filosofia. Estudioso e erudito, trouxe para seus versos termos oriundos de diversas ciências, com destaque para a Biologia. Deixou o legado do antilirismo e da antipoesia de maneira original, ampliando as possibilidades do gênero e inovando a linguagem poética. Eu foi seu único livro publicado em vida, em 1912. Identificado como pré-modernista na História da Literatura Brasileira, Augusto dos Anjos foi um criador singular.


Soneto

Ao meu primeiro filho nascido morto
 com sete meses incompletos
2 fevereiro 1911

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!


Debaixo do tamarindo

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira,
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!


***

Eu
Augusto dos Anjos
Poesia
Edição Círculo do Livro


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